Câmeras e histórias transformando consciências

Ao gravar suas biografias indígenas provocam reflexões na vida da comunidade universitária

O tradicional Dia do Índio, comemorado todo 19 de abril, passou a ser chamado oficialmente de Dia dos Povos Indígenas, no ano passado. Quem definiu foi a Lei 14.402/2022. A mudança do nome da celebração tem o objetivo de explicitar a diversidade das culturas dos povos originários e é fruto do projeto da deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR). 

O termo “povos indígenas” é preferido pelas populações originárias, que veem a designação “índio” como preconceituosa. De acordo com a deputada, o termo ‘indígena’, que significa ‘originário’, ou ‘nativo de um local específico’, é uma forma mais precisa para nos referirmos aos diversos povos que, desde antes da colonização, vivem nas terras que hoje formam o Brasil. O termo “índio” foi difundido quando os portugueses chegaram ao Brasil e acharam, erroneamente, que haviam chegado às Índias.

Mas este é um dos menores problemas que enfrentam os povos originários. Nesta semana em que se comemora o Dia dos Povos Indígenas, é fundamental não perdermos de vista a situação que estes vêm atravessando nos últimos anos no Brasil. O marco mais recente foi a constatação da “omissão criminosa” do governo federal na preservação de direitos do povo ianomâmi, entre os anos de 2019 e 2022.

Este é o motivo que levou o C² a lançar holofotes nas ações que focam estes grupos nas universidades paranaenses e encontramos exemplos muito legais ligados a processos de educação.

Neste texto vamos falar de educação não-formal. De como os processos que levam as pessoas a se reconhecerem por meio da integração com o outro possibilitam repensar a própria história. Essa é a tarefa de um grupo de alunos e de uma professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Norte do estado do Paraná.

Experiência única

Após iniciar suas atividades como docente no curso de jornalismo, lá em 2015, a professora Mônica Panis Kaseker teve a oportunidade de conhecer e acompanhar dois estudantes indígenas que passavam naquele momento pelo curso, Yago Queiroz e Gabriela Kríng, ambos da etnia Kaingang. “Na época, fui indicada para representar a graduação de comunicação na Comissão Universidade para Indígenas (CUIA), da UEL, e essa experiência foi crucial para definir meus projetos tal qual eles são hoje”, relembra.

Mônica Panis Kaseker atuou como jornalista em diversos veículos de comunicação do Paraná. Atualmente é representante da CUIA UEL, colaboradora do Ciclo de Formação Acadêmica Intercultural Indígena e professora do Mestrado em Comunicação e do curso de Jornalismo da UEL (Foto/Leonardo de Jesus)

Antes de explicarmos exatamente como o projeto de Mônica funciona, precisamos “começar do começo” para entender de onde ele se insere numa dinâmica maior da Universidade de Londrina.

A UEL possui o Ciclo de Formação Acadêmica Intercultural Indígena, programa associado à CUIA da universidade. Com duração de um ano e separado em quatro eixos, o Ciclo é um curso que antecede o ano letivo dos indígenas com aulas de nivelamento voltado às disciplinas básicas como matemática, português e ciências da natureza, mas também conta com duas disciplinas sobre interculturalidade.

A professora ressalta que o Ciclo surgiu “aos improvisos”, em meados de 2014, com professores voluntários. A ideia era criar um período de iniciação acadêmica em que o indígena pudesse, num processo mútuo, se adaptar às condições e vivência dos brancos ao mesmo tempo em que a universidade se adaptaria a esse tipo de aluno. E assim oportunizar um espaço de interdisciplinaridade e interculturalidade do conhecimento entre o indígena e a universidade.

“Não é somente ele [indígena] que tem que se adaptar. A própria universidade também tem que se adaptar. Por isso que é intercultural, é o encontro, não é para o indígena entrar na caixinha e se formatar. Todos nós nos formatamos na universidade, mas, não é só esse movimento. A universidade também tem que se abrir e olhar para isso”, afirma Mônica.

Estímulos

Todo esse trabalho está envolvendo outros docentes, atraídos pela relevância da iniciativa de acolher, estimular e ensinar ferramentas para os indígenas universitários se expressarem através das técnicas de comunicação.

O professor Wagner Roberto do Amaral, docente do Departamento de Serviço Social da UEL, também atua no primeiro eixo, junto com a professora Mônica, em uma das disciplinas que abordam as questões interculturais. Até 2017, Amaral desenvolvia com os alunos do Ciclo uma autobiografia num outro formato, diferente de como ele é feito hoje.

Os indígenas eram instigados a pesquisar sobre si, sobre a sua comunidade, ancestralidade, etnia e muitos outros elementos que estivessem relacionados à sua origem. Ao final do primeiro eixo, eles apresentavam um trabalho falando sobre o que descobriram. Todo esse trabalho era feito e apresentado por meio de seminários.

Wagner Roberto do Amaral, docente de uma das disciplinas interculturais do Ciclo e do departamento de Serviço Social da UEL
Wagner Roberto do Amaral, docente de uma das disciplinas interculturais do Ciclo e do departamento de Serviço Social da UEL (Foto/Arquivo Pessoal)

Foi aí que a Mônica, que auxiliava no programa, mas ainda não era oficialmente professora, propôs aos seus colegas que essas autobiografias fossem realizadas por meio de vídeos. Mas ela queria ir além, queria dar o suporte necessário para essas produções e, em 2018, idealizou a criação de um projeto de extensão na universidade.

Intitulado “Audiovisual para o fortalecimento da identidade indígena no processo educativo”, o projeto nasce com a proposta de fornecer o aparato técnico aos estudantes do Ciclo e promover a problematização de assuntos pertinentes à temática indígena, visto que alguns alunos possuem vínculos muito frágeis com a própria cultura. 

Até aqui, o projeto já produziu cerca de 25 autobiografias e sete documentários com os povos Kaingang, Guarani Mbya e Avá-Guarani, trazendo diferentes histórias de vida. Todas elas podem ser acessadas gratuitamente no canal oficial do YouTube, da CUIA UEL

Mônica ressalta que os membros do Ciclo participam de todo o processo de produção e que a autoria desses conteúdos são deles, o projeto de extensão apenas faz a mediação para que os alunos contem a história que quiserem. E, claro, fomos acompanhar de pertinho uma delas. 

A história em curso da vez é do estudante de medicina da UEL, Avá-Guarani, Rodrigo Luis, que já apresentou sua biografia em outro momento no modelo antigo e agora está ampliando seu alcance através do vídeo. Foram mais de 45 minutos explorando um pouco das riquezas de vida que ele contou em frente à câmera. O indígena se mostrou muito contente com a experiência que vem tendo com o projeto e destacou sobre a importância das autobiografias em formato de vídeo para combater estereótipos e difundir sua cultura.

Rodrigo Luis está no quinto ano de Medicina e planeja voltar à aldeia onde nasceu para atuar profissionalmente como Agente Indígena de Saúde (Foto/Leonardo de Jesus)
🎧 Rodrigo Luis conta sobre sua experiência no projeto

O mais interessante de todo esse processo é que essas histórias que são contadas acabam mexendo com a vida de muita gente, até de não-indígenas. O projeto de extensão da professora Mônica é aberto aos estudantes do Ciclo, do curso de jornalismo e aos mestrandos em comunicação da UEL. Na visão da doutora em sociologia, ele é tão importante para os indígenas quanto para os não-indígenas, já que a ideia é que ele funcione como uma via de mão dupla, promovendo a interculturalidade entre seus integrantes. 

Muitos são os estereótipos atribuídos aos povos originários do nosso País. Em um Brasil dominado por culturas hegemônicas, os indígenas são retratados em diversos meios, mas principalmente nas produções audiovisuais, como seres primitivos, preguiçosos, afastados da sociedade e marginalizados pelo seu modo de viver.

Quando os alunos não indígenas passam a conviver com representantes de povos originários e a vivenciar as experiências nas aldeias, por exemplo, conseguem perceber que eles não pararam no tempo, reconhecer a sua autenticidade e absorver a vasta riqueza cultural desses povos.

“Essa experiência é de trocas não só entre indígenas e não-indígenas, mas entre os próprios indígenas. Porque eles percebem que tá tudo bem, é assim mesmo ser indígena no século 21”, destaca Mônica. 

Todo o desenvolvimento desse trabalho, segundo ela, é muito bem conversado e feito por meio de oficinas. Existem dias em que todos os participantes conversam sobre “Memórias e Ancestralidade”. Em outra situação, trazem suas músicas e até mesmo dançam. Nesse momento, todos integrantes do projeto conseguem identificar similaridades e diferenças culturais, mas também aprendem sobre elas.

Cinema indígena

Em meio a produção desta reportagem, tivemos uma alegre surpresa: o cineasta Kaingang Cleber Kronun esteve em Londrina no dia 25 de março, para participar da Oficina de Cinema Popular Documentário (@oficinadecinemapopulardoc) e ministrar uma palestra a respeito do cinema indígena. 

Kronun é coordenador do Centro de Memória e Cultura Kaingang em Londrina (CMCK), estuda pedagogia na Universidade Estadual do Paraná (Unespar), é pesquisador e documentarista da cultura indígena Kaingang. Ele já desenvolveu diversos trabalhos no campo da cinematografia, participando de produções como “Ẽg ῖn: nossa casa” (2016), “As marcas Kaingang” (2018) e “A história de João Kỹnin Cândido” (2018). 

Cleber Kronun, cineasta Kaingang da Terra Indígena do Apucaraninha (Wellington Victor/Oficina de Cinema Popular)

O cineasta enfatizou a importância do audiovisual e do cinema na vida dele e dos membros da sua comunidade que, hoje, utilizam esse recurso tecnológico como forma de se defenderem e impedirem que sua cultura seja apagada por outras. 

Ele conta que as pessoas mais velhas de sua aldeia diziam que os homens brancos iam até a sua terra, realizavam inúmeros registros e prometiam fazer a devolução desse material, mas não era o que acontecia. Foi a partir daí que eles tiveram a iniciativa de criar o CMCK tal qual ele é hoje, na terra indígena Apucaraninha, de onde Kronun vem, e começaram a produzir os seus próprios registros e a ensinar audiovisual à comunidade. Você pode conferir esses registros aqui.  

Sob direção de Douglas Noján Cândido, Kronun participou de algumas filmagens do “A história de João Kỹnin Cândido” (2018). O curta-metragem dá espaço às lembranças de infância do Kaingang João Kỹnin Cândido com sua avó. O documentário também traz críticas aos agrotóxicos utilizados de maneira excessiva nos alimentos e à destruição da natureza em decorrência da produção agrícola exacerbada feita por não-indígenas. Assista aqui

Kronun ainda afirma que “o cinema indígena envolve toda a comunidade e isso é importante porque pesquisar sobre a sua cultura é fazer com que a sua história não seja esquecida”.

Todo esse material produzido é transmitido depois na escola indígena da sua aldeia para as crianças da comunidade, permitindo com que suas tradições e costumes sejam passadas à nova geração. 

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Leonardo de Jesus Dias e Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Leonardo de Jesus Dias
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: