Dia da Consciência Negra: resistência e celebração

De 5.568 cidades brasileiras, apenas 1.260 celebram o dia 20 de novembro com feriado

Rejeitado! Esse foi o resultado da proposta levantada pelos vereadores Ana Lúcia Rodrigues, Manoel Álvares Sobrinho, Adriano Bacurau e Belino Bravin Filho, de Maringá, no Paraná, que pretendia criar o feriado da Consciência Negra na cidade. Em uma votação apertada, realizada em julho de 2023, a Câmara Municipal de Maringá rejeitou, em primeiro turno, o projeto, que foi arquivado. A data seria celebrada no dia 20 de novembro e recebeu seis votos contra e cinco favoráveis, enquanto três parlamentares não participaram da sessão. 

O dia 20 de novembro foi instituído como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, oficialmente, pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data foi escolhida por ser o dia que Zumbi dos Palmares, líder quilombola e um dos principais representantes da resistência negra à escravidão no Brasil, foi morto no ano de 1695. Mesmo fazendo parte do calendário oficial brasileiro, não são todos os estados e cidades do país que celebram a data com um feriado. 

Vamos explicar melhor: a criação de um feriado depende da legislação de cada cidade, que pode estabelecer a situação em nível municipal, assim como foi proposto em Maringá. Porém, alguns estados já possuem leis que tornam o 20 de novembro feriado em todos os municípios, não sendo apenas algo facultativo. São eles: Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo.

A professora do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Marivânia Conceição Araujo, formada em Ciências Sociais com mestrado e doutorado na mesma área e atual coordenadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (Neiab/UEM), vê o feriado como fundamental para destacar a importância da população negra na história e na cultura do Brasil. 

“Nós temos vários feriados e todos eles são válidos, não vou questionar nenhum deles. Mas, nós não temos um feriado relacionado especificamente à população negra. Não dá para pensar o Brasil sem o negro. Tem uma frase que eu já ouvi, infelizmente, não me lembro quem falou, que a África sem o Brasil é a África, mas, o Brasil sem os descendentes do continente africano não é o Brasil”, conta a professora.

Professora Marivânia Conceição Araujo coordenadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (Neiab/UEM) (Foto/Maysa Ribeiro Macedo)

Sobre os  patrimônios históricos do Brasil, Marivânia Araujo também destaca a importância da população negra na criação e construção desses marcos tão significativos para o país. “Por exemplo, a da Graciosa, aquela linha de trem famosa [em Curitiba], foi construída por pessoas negras. Os engenheiros que idealizaram, os irmãos André e Antonio Rebouças, eram homens negros. Então, tudo que a gente pensar na história do Brasil tem o esforço, a criatividade, a mão, o trabalho, a arte, a ideia e o conhecimento da população negra. Por isso, ela não pode ser excluída das homenagens feitas por meio dos feriados nacionais ”, declara a coordenadora do Neiab.

A docente, que acompanhou a votação na Câmara Municipal de Maringá, conta que um dos argumentos para que não houvesse feriado nessa data na cidade, é a questão econômica. Alega-se que o comércio perde muito. “Bom, o comércio de São Paulo não perde? São Paulo é a maior cidade da América Latina e tem feriado em 20 de novembro”, lembra a professora Marivânia Araujo. Para ela, a justificativa, infelizmente, é que boa parte da população maringaense e os seus representantes não concordam com a ideia de um feriado reverenciando e homenageando a população negra, porque existe uma dificuldade deles reconhecerem a importância desse povo diante da história.

A rejeição da proposta não choca a professora, que aponta Maringá como uma cidade conservadora em vários sentidos. O que significa, de forma simples, falar que algo é conservador? É aquilo que não quer mudar, não aceita mudanças e é resistente a elas. “O feriado de 20 de novembro é uma mudança na perspectiva da sociedade olhar para a população negra. Tirar a população negra da subserviência, da invisibilidade, da falta de importância. É lançar luz e dar espaço político e econômico para essa população e para tudo que ela fez”, explica Marivânia Araújo.

Para ela, seria de extrema importância a data ser um feriado nacional, resolvendo, assim, toda essa discussão. Vale lembrar que, atualmente, há um projeto de lei em tramitação que debate essa possibilidade. A proposta já foi aprovada pelo Senado e aguarda votação na Câmara dos Deputados.

Neiab UEM

O Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiro (Neiab) da UEM, trabalha há 17 anos fomentando estudos e discussões sobre a população negra no Brasil. Ele é interdisciplinar, ou seja, pessoas de diversas áreas fazem parte da equipe, como professores de história, de administração, das ciências sociais e da economia. Fazendo um convite, a professora Marivânia acrescenta que todas as pessoas são muito bem-vindas para integrar o grupo. 

O Neiab da UEM possui várias atividades, como um grupo de estudos dedicado a leitura de autores/as negros/as, discussão de pesquisas e, além disso, o Núcleo possui dois projetos aprovados pela Universidade Sem Fronteiras (USF). Com atuação nas escolas, o primeiro projeto é voltado para falar sobre diversidade e economia solidária, enquanto o outro aborda a lei 10.639. 

“Nós discutimos relações raciais e a população negra no Brasil de forma geral, mas, de modo bem específico, falamos sobre educação. Aí está a nossa preocupação, por exemplo, com a lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira no ensino fundamental, público e privado. Seja aqui em Maringá ou em uma cidade com o menor percentual de população negra no Brasil. Essa Lei atende a uma reivindicação de anos dos intelectuais, educadores e membros do Movimento Negro de todo o país. Ela reconhece a importância de propiciar esse conhecimento em nosso ensino formal”, afirma a coordenadora do Neiab/UEM.

Em Maringá, o Núcleo possui dois braços de estudo: o feminismo negro e a educação. O Neiab/UEM está integrado a uma rede nacional de consórcio. “Falo com tranquilidade, todas as universidades e institutos de pesquisa no Brasil têm um Neiab.  Algumas universidades têm até dois. Além de estudar a população negra, outros vão incluir também o estudo da população indígena brasileira”, acrescenta a docente.

Os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, vinculados às Instituições de Ensino Superior do Brasil, tiveram o seu início em 1959. Estão distribuídos por todo o país, formando assim um grande consórcio que busca produzir conhecimentos no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão sobre  a África, a diáspora africana, os afro-brasileiros e os indígenas, além de manter o diálogo permanente com estudos negros das Américas, África e outros continentes. 

Semana Afro 2023

Esses Núcleos organizam, em suas universidades, a chamada Semana Afro, durante o mês da Consciência Negra. Na UEM não é diferente. Em 2023, o coletivo vai organizar a XVII Semana Afro-Brasileira, que vai acontecer nos dias 28, 29 e 30 de novembro, com o tema “20 Anos da Lei 10.639/2003: estratégias para uma Educação Antirracista”. 

A Lei 10.639/2003 é muito importante para que, cada vez mais, a população tenha como conhecimento de base a história da cultura afro-brasileira, a formação da população preta no Brasil e a influência dos africanos para a constituição da nossa sociedade. A antropóloga Lélia Gonzalez costuma usar o termo ‘pretuguês’, que explica porque, no Brasil, a língua é diferente de Portugal. Segundo Lélia, diferente de outros países que falam português, aqui nós tivemos a influência direta dos idiomas que vieram da África. Criamos uma mistura que gerou centenas de palavras como: dengo, cafuné, quitanda, dendê e caçula, além de expressões, jeito de agir e cuidar que estão presentes na nossa história. 

Poucos de nós conhece a contribuição dos africanos para nossa cultura. A coordenadora do Neiab, Marivânia Conceição Araújo, relata a importância de mudar esse cenário. “No não cumprimento da lei [que exige o ensino da cultura africana], o que a gente vê é o racismo. O que muitos profissionais da educação vão dizer é: ‘por que eu vou falar sobre isso, se eu não sou negra? Não vejo a importância.’ Primeiro, porque é lei, sendo assim ela deve ser cumprida e não questionada. E, segundo, porque, a história da África é parte da história do Brasil, tem relevância para entendermos a nossa sociedade e tradições. Além disso, antes da lei, no calendário escolar não tinha nada sobre a população negra, ela era citada em relação ao período da escravidão”.

E a professora vai além: “tenho certeza que a maioria não ouviu, falou ou aprendeu muito sobre a história da população negra e da África na formação básica. Não porque não quiseram, não porque acharam chato. Essas pessoas nem tiveram a oportunidade de dizer ‘essa matéria é chata’, porque a lei não foi aplicada. O resultado dessa situação é a perpetuação de uma lacuna na formação dos nossos estudantes, que tem como consequência a manutenção do racismo”. 

Voltando para a Semana Afro, da Universidade Estadual de Maringá, o evento vai trazer à tona a Lei 10.639/2003, que completa 20 anos. Apesar disso, mais de 70% das escolas não cumprem a obrigatoriedade do ensino, da história da África e da cultura afro-brasileira. Isso revela o caráter racista da não representação da população afrodescendente, como disse a professora Marivânia, contar a história do continente africano sem o Brasil é possível, mas, contar a história do Brasil sem a influência do africano nas nossas relações é impossível. 

Pensando em toda a trajetória da Lei, o Neiab vai promover no campus-sede da UEM diversos debates e reflexões, com a presença confirmada da professora Alessandra Pio do Rio de Janeiro, que é uma especialista em educação das relações raciais no Brasil, além de pesquisadores de Maringá e região para falar sobre a implementação da Lei no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e nas universidades.

Relação com a universidade 

Pensando que a Lei 10.639/2003 é voltada para o Ensino Fundamental e Ensino Médio, o que as universidades têm a ver com isso? A professora responde: “Tudo! Porque, embora essa obrigatoriedade seja para o ensino fundamental, a universidade forma profissionais de educação que vão atuar nas escolas de ensino fundamental. Então, a gente precisa formar essas pessoas para que, quando elas cheguem em sala de aula, tenham condições de aplicar a Lei”.

Para Marivânia, a Lei 10.639/2003 tem um caráter óbvio de educação e aprendizado, mas também o de revelar relações hierárquicas, raciais e assim construir uma sociedade menos racista.

Se você ficou interessado em participar da XVII Semana Afro-Brasileira UEM, que vai retomar um tema tão importante que é os 20 Anos da Lei 10.639/2003: Estratégias para uma Educação Antirracista. É só se inscrever clicando neste link.

A importância de falar do dia 20 de novembro

Como já citado no início do texto, o 20 de novembro faz referência ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, o líder do maior quilombo da América Latina, Quilombo dos Palmares, que chegou a ter 20 mil habitantes e era localizado nos estados de Alagoas e Pernambuco, na região nordeste do Brasil. 

Assim, a figura de Zumbi representa a luta e a resistência da população negra, que busca cada vez mais os seus direitos na sociedade brasileira. Envolvida nesse histórico, a data 20 de novembro é marcada pela discussão de uma consciência negra, que busca: reverenciar Zumbi dos Palmares, chamar atenção para a luta de séculos da população negra pela liberdade e a sua inclusão na universidade e nos espaços de poder, que são imprescindíveis. 

A doutora Marivânia conta que “20 de novembro é um momento de celebração da história, da cultura, da permanência, da resiliência da população negra no Brasil. Mas é, também, um dia de reivindicação, para assim chamar a atenção das diferentes formas de opressão que a população negra sofre, como a exclusão. A luta é diária, é constante, eu paro, outra pessoa tem que continuar”, declara a coordenadora do Neiab.

Professora Marivânia Conceição Araujo em entrevista com o C² (Foto/Maysa Ribeiro Macedo)

Presentes em todas as áreas do conhecimento  

Em datas como o Dia da Consciência Negra, é normal vermos as pessoas negras em destaque falando sobre pautas raciais. Porém, é preciso destacar que nas universidades, por exemplo, pesquisadoras e pesquisadores negros não estudam somente temas que envolvem esses temas. Eles são pessoas como qualquer outra, que têm conhecimentos diversos, características distintas uns dos outros e que veem o mundo de diferentes formas. Por isso, também devem ser chamados para discutir outros assuntos de sua expertise, para além desses dias que celebram datas específicas. 

A insistência de colocar pessoas negras falando somente sobre questões raciais, é mais um caráter do racismo, segundo Marivânia. “A nossa sociedade é uma sociedade racista. E uma das coisas que o racismo faz é desumanizar a pessoa negra. Nesse processo de desumanização, coloca as pessoas negras em um único quadrado, em um único registro. Então, a pessoa negra faz uma porção de coisas. Mas, quando é chamada, é somente para debater as questões raciais. Isso é muito cruel, inclusive, porque tem muitas pessoas negras que não fazem essa discussão, mas elas são obrigadas a falar sobre isso”, destaca a professora.

Dessa maneira, o que podemos fazer para que a população preta não fique somente restrita a falar sobre questões raciais é garantir que seja pautada em discussões em todas as áreas do conhecimento, seja na saúde, na matemática ou na política. Vamos ter sempre isso em mente!

Serviço

No site do Neiab, que pode ser encontrado no portal da UEM, é possível ter acesso a livros e fotos das Semanas Afro e dos colóquios realizados pelo Núcleo. Também estão disponíveis os contatos, os integrantes e outras informações importantes. Além disso, é possível conhecer a sede do Neiab, que fica no Bloco 4, sala 7. A professora Marivânia Araujo avisa que serão todos muito bem-vindos!

Glossário

Diáspora: Dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.

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Texto:
Milena Massako Ito e Maysa Ribeiro Macedo
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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