Dormir não é perda de tempo

A qualidade e a quantidade adequada de sono são fundamentais para a manutenção da saúde e do bem-estar

Todo começo de ano é igual, inúmeros planos e metas listadas para serem cumpridas ao longo dele, como se fosse um recomeço e uma nova chance para reorganizarmos a nossa vida. Seja no meu caderninho de anotações, no bloco de notas do celular ou apenas no próprio pensamento, estão listadas coisas do tipo: “dar um gás” na academia, ler com maior frequência, ser organizada financeiramente, dormir cedo para conseguir acordar cedo… e por aí vai. 

Alguns desses objetivos são mais simples de pôr em prática, outros nem tanto, como tentar não dormir tarde. Tanto é que essa é uma meta que se repete a cada ano, porque nunca consigo, de fato, realizá-la. E não é nem por falta de querer, mas sim por conta de tudo que acontece na minha rotina, incluindo trabalho, serviços de casa, e, claro, momentos de lazer. Faço tudo isso e quando vejo já é quase meia-noite, e mesmo assim parece que o dia ainda não terminou. Repito para mim mesma: “Amanhã você tenta de novo”, mas, toda vez, acaba aparecendo algo novo que me impede de ir dormir no horário pretendido. 

O coordenador do Laboratório de Cronobiologia, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Fernando Mazzilli Louzada, explica que um dos fenômenos que transformaram a relação dos indivíduos com o sono foi o advento da energia elétrica. A possibilidade de termos acesso à luz artificial, iluminarmos os ambientes durante a noite, alterou os padrões naturais de sono associados ao ciclo circadiano, que é o ciclo biológico de 24 horas, responsável por regular diversos processos fisiológicos do corpo, incluindo a vontade de dormir. 

Se formos pensar no nosso contexto atual, em que usamos aparelhos eletrônicos como smartphones, tablets e computadores, somos expostos às telas por várias horas do dia e isso pode impactar negativamente o sono. A exposição à luz azul antes de dormir, por exemplo, pode suprimir a produção de melatonina, que é um hormônio regulador do sono. Com certeza, esse é um dos meus maiores problemas quando o tópico é dormir mais cedo, porque as telas ocupam boa parte do meu tempo de trabalho, assim como do meu período de lazer, com incontáveis minutos deslizando os vídeos do TikTok ou assistindo a uma série, em algum streaming

(Foto/Freepik)

A importância do sono

Muitas vezes, não se dá a devida importância ao sono e de como ele é crucial para as nossas atividades do dia a dia. “Ao contrário do que se pensava, o sono não é perda de tempo, é fundamental para a nossa saúde física e mental. Então, pensando no que acontece com o nosso corpo quando a gente dorme, o cérebro não desliga, essa atividade cerebral está a serviço de uma série de funções do nosso organismo”, explica Louzada. 

Durante o sono, vários papéis são “cumpridos”, promovendo a restauração física, a consolidação da memória e o equilíbrio hormonal. Nesse período de repouso, os tecidos se regeneram, fortalecendo o sistema imunológico e facilitando a recuperação muscular. Dormir também contribui para os processos cognitivos, além de ser indispensável para repor energias e regular o metabolismo, fatores essenciais que buscam manter corpo e mente saudáveis.

Diante disso, dá para perceber como dormir não é sinônimo do nosso corpo estar em um completo apagão, visto que, parte dele, continua em atividade para estarmos prontos para um novo dia. E como diversos processos biológicos que acontecem com a gente são constituídos de fases, com o sono não é diferente. Enquanto descansamos, um ciclo começa, que vai desde o cochilo até o sono profundo. 

As três primeiras são as fases não-REM (a sigla REM significa Rapid Eye Movement ou movimento rápido dos olhos, em tradução livre) e se dividem em: N1, N2 e N3. Já a quarta é o sono REM. Cada uma delas têm diferentes características, durações e funções. Quando o ciclo acaba, ele se reinicia ao longo da noite até o momento do despertar. Veja mais detalhes no infográfico abaixo:

Ter as fases do sono bem equilibradas é vital para uma boa saúde. Todo estágio de sono possui seu papel na revigoração do corpo e da mente, no desenvolvimento cognitivo e na saúde mental e física. Essa questão também está ligada à quantidade de horas que dormimos. Às vezes, tento até me convencer de que não importa a hora que vou dormir, sempre vou acordar sonolenta e cansada. Claro que, com isso, estou tentando me enganar e postergando a minha mudança de hábitos para que eu consiga descansar mais.  

Quantas horas devo dormir?

A necessidade de sono varia muito entre as pessoas e isso acontece devido a uma conjunção de fatores: genéticos, biológicos, culturais, ambientais e individuais. Estudos mostram que certos genes podem influenciar a quantidade de sono que uma pessoa precisa. Algumas pessoas possuem genes que as fazem requerer mais horas de sono, enquanto outras têm uma predisposição a dormir menos e se sentirem descansadas.

Condições médicas envolvendo distúrbios do sono (como insônia e apneia do sono1), problemas de saúde mental (como ansiedade e depressão) e doenças crônicas podem afetar a qualidade e a quantidade do sono necessário. Além disso, fatores de estilo de vida, como o nível de atividade física, o estresse, a rotina diária, o uso de substâncias (cafeína, álcool e certos medicamentos) e a exposição à luz artificial também influenciam as necessidades de sono de uma pessoa.

“São várias causas, mas, isoladamente, eu diria que a mais importante é o estresse. A evolução construiu o nosso organismo para que, em situações de estresse, a gente superficializasse o sono”, afirma o pesquisador Louzada. Uma vez que uma pessoa está estressada, seu corpo produz hormônios como cortisol e adrenalina, que estão associados à resposta de luta ou fuga. Esses hormônios podem aumentar o estado de alerta e tornar mais difícil relaxar e adormecer.

Por mais que a recomendação de sono seja de, em média, 8 horas, essa não é uma regra. “É tão absurdo falar que todos precisam dormir 8 horas, como falar que precisam ter 1,65m, que é a altura média da população. Tem pessoa que precisa dormir mais, tem pessoa que precisa dormir menos. Às vezes, se você cria uma recomendação a partir de uma média, cria problemas. Aquele que precisa dormir menos horas vai achar que ele tem insônia. E aquele que precisa dormir 9 ou mais, vai dormir apenas 8 e não vai se sentir bem sem saber o porquê”, alerta o pesquisador.

O coordenador do Laboratório de Cronobiologia da UFPR, Fernando Mazzili Louzada (Foto/Edilson Dantas/O Globo)

O professor, que integra a equipe do Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (Napi) em Neurociências, destaca que deve existir respeito em relação às diferenças individuais, levando em conta o fato da necessidade de sono mudar muito de uma pessoa para outra. Por esse motivo, é aconselhável conhecer melhor o próprio sono, para entender qual é a real necessidade dele. 

O momento ideal para fazer essa autopercepção de horário é nas férias, nos finais de semana ou feriados, períodos em que temos liberdade para dormir e não dependemos de despertador. Nessas situações, existem indivíduos que, por exemplo, ainda continuam acordando às 6 da manhã, bem como existem os que preferem acordar às 10, 11 e… fora de seu horário usual.

A autopercepção nem sempre é uma tarefa fácil. A alternativa é também olhar para como a pessoa dorme, observando o período da vigília, que é quando estamos acordados. “Se você percebe que está muito sonolento, mais irritado, com dificuldade para se concentrar, com menos disposição para trabalhar, para fazer atividade física, houve mudança no humor, é um sinal que talvez você não está dormindo o quanto deveria”, acrescenta Fernando Louzada. 

Problemas ao dormir mal

Fora as pequenas mudanças que podem ocorrer na vigília, noites mal dormidas têm a chance de desencadear uma série de problemas de saúde, afetando tanto o corpo quanto a mente. Em termos físicos, a privação do sono está associada a um maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares, como hipertensão arterial e pode aumentar a probabilidade de desenvolver diabetes tipo 2, devido à criação de uma resistência contra a insulina e contribuir para a obesidade, porque afeta os hormônios que regulam o apetite e a saciedade.

A falta de sono mexe com a imunidade, tornando o corpo mais suscetível a infecções e doenças, já que é no repouso que a energia e os mecanismos metabólicos se direcionam para outras funções do organismo, como o metabolismo das células do sistema imunológico. E distúrbios digestivos, como síndrome do intestino irritável e doença do refluxo gastroesofágico também contam com o risco de serem exacerbados. 

Para o aspecto mental, a privação de sono pode contribuir para o desenvolvimento de transtornos como depressão, ansiedade e irritabilidade excessiva, do mesmo modo que eles se caracterizam como agentes que tiram o sono. Além disso, a função cognitiva é afetada, prejudicando a memória, a concentração e o raciocínio. No dia a dia, a sonolência resultante da falta de sono aumenta o risco de acidentes de trânsito e no local de trabalho, colocando a vida e a segurança em risco.

O neurocientista ainda menciona um estudo que relaciona o sono à Doença de Alzheimer.  “Há alguns anos, saiu um artigo mostrando que uma noite em claro é capaz de elevar a quantidade da proteína beta-amiloide que está associada ao Alzheimer. Tudo indica que o sono, ao contribuir para a degradação de algumas substâncias, acaba tendo um efeito neuroprotetor.”.

Como ter um sono de qualidade?

A qualidade e a quantidade adequada de sono são fundamentais para a manutenção da saúde geral e do bem-estar. E dormir bem não se resume apenas a fechar os olhos e apagar a luz. O processo envolve todo um conjunto de hábitos e práticas que ajudam a preparar o corpo e a mente para um descanso reparador. Todas elas fazem parte da chamada higiene do sono. Mas, afinal, quais hábitos são esses?

Para começar, recomenda-se tentar ir dormir e acordar no mesmo horário todos os dias, até mesmo no final de semana. Isso depois de já possuir a noção de quantas horas são suficientes para repormos as energias. Dessa forma, o cérebro e o corpo conseguem entrar em um diálogo para ajudar na regulação do relógio biológico. Quanto mais esse horário for alterado, pior é para o organismo se acostumar.

Também não podemos nos esquecer de onde vamos dormir. Então, ter um ambiente confortável, silencioso e escuro colabora para um sono mais profundo. Ademais, nada de ficar mexendo no celular ao ir para cama, porque, como já discutimos aqui, a luz azul emitida por dispositivos eletrônicos pode suprimir a produção de melatonina. O ideal é deixarmos de usar esses aparelhos pelo menos 30 minutos antes de nos deitarmos. Se formos utilizá-los à noite, devemos ajustar as configurações que reduzem ou filtram a luz das telas.

(Foto/Freepik)

Para além da hora de dormir, muitas coisas que fazemos em nosso cotidiano contam bastante. A prática de exercícios e a inclusão de uma alimentação saudável no dia a dia fazem a diferença. Ao anoitecer, devemos encontrar um horário adequado para o jantar que não seja muito próximo da hora de nos deitarmos e é interessante darmos preferência aos alimentos mais leves, nesse período.

Essas são apenas algumas das práticas que podem ser adotadas para conseguirmos ter um bom sono, que, claro, tentarei aderir como parte de uma das minhas metas de 2024 (confira mais em nosso podcast sobre sono). Entretanto, a organização temporal da sociedade continua sendo uma grande questão, quando o assunto é adaptar a rotina cheia de compromissos sociais para dormir bem o suficiente. Talvez, esse seja o elemento que mais dificulta a tentativa de ter um bom sono e que precisa ser repensado para um maior bem-estar da população.

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Texto:
Maria Eduarda de Souza Oliveira
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Lucas Higashi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Glossário

  1. A apneia do sono é um distúrbio caracterizado por pausas temporárias na respiração durante o sono. ↩︎