Educação: caminho para a ressocialização

Universidades estaduais do Paraná trabalham em conjunto com as penitenciárias para levar educação e saúde à população carcerária

Viver em uma cela pequena, com pouca iluminação e compartilhando espaço com pessoas que você não conhece. Essa é a realidade de mais de 644 mil pessoas, de acordo com o 14º Ciclo de Levantamento de Informações Penitenciárias da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). Esse documento traz os dados do primeiro semestre de 2023 sobre o número de custodiados em celas físicas no Brasil. 

O sistema prisional brasileiro, na forma que conhecemos atualmente, tem como objetivo punir quem comete crimes. Nesse modelo, o indivíduo é privado de liberdade e, no cárcere, supostamente, deixa de ser um risco para a sociedade. 

Cela de uma prisão (Foto/Arquivo Pexels)

Mas, além do caráter repreensivo, o isolamento a que essas pessoas são submetidas propõe uma reflexão sobre o crime que elas cometeram e, sob este aspecto, não se pode deixar de pensar, também, na necessidade de políticas de ressocialização, ou, pelo menos, deveria ser assim. 

Enfim, pensa-se no indivíduo após cumprir sua pena, mas pouco sobre como ele vai viver os dias de cárcere. Não é raro vermos notícias das péssimas condições dentro dos presídios, como a superlotação, a falta de serviços básicos de higiene e saúde, além da violência. Esse cenário é a fonte de rebeliões, de fugas e até do surgimento de facções criminosas dentro das prisões. 

Com esses problemas a serem enfrentados, é fundamental que haja, dentro dos presídios, incentivo e suporte necessários para que a pessoa cumpra sua pena com dignidade, além de práticas educacionais e profissionalizantes, que contribuam para que esses indivíduos possam ser reintegrados à vida em sociedade com oportunidades que possam tirá-los do mundo do crime. 

O documento citado acima, o 14º Ciclo de Levantamento de Informações Penitenciárias, registrou uma notícia boa: o aumento de 9,58% da oferta de atividades educacionais no sistema penitenciário brasileiro. Esse número mostra a existência de práticas de ressocialização e de suporte aos apenados, mesmo que ainda sejam de pequeno porte.

No Paraná, algumas Instituições de Ensino Superior têm trabalhado em colaboração com as penitenciárias para levar saúde e conhecimento para a população carcerária. São vários projetos, em diversas áreas, que atuam para levar melhores condições para dentro dos presídios, além de contribuir na formação de alunos e professores. 

Aprendendo sobre o solo

No campus da cidade de Cascavel, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a engenheira agrícola e professora do Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas, Mônica Sarolli Silva de Mendonça Costa, foi colocada em contato com a responsável pelo setor de cursos de capacitação para a população carcerária da Penitenciária Industrial de Cascavel (PIC). A Instituição procurava alguém que pudesse realizar algum trabalho com os apenados na horta do local e acionou Mônica.

A professora aceitou o desafio! O projeto contou com aulas teóricas e práticas, com auxílio de apresentações no computador e lousa de giz, em uma área improvisada na parte externa da PIC. Os encarcerados também tiveram acesso a uma apostila com os assuntos que foram ministrados. 

Além da professora Mônica, coordenadora do projeto, o conteúdo foi dividido entre os docentes do curso de Engenharia Agrícola da Unioeste, Erivelto Mercante e Maritane Prior; dos discentes Humberto Comineti e Tiago Satel; e de membros externos à Universidade, como o professor Luiz Antônio de Mendonça Costa e o egresso do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Agrícola (PGEAGRI), Dercio Ceri Pereira.

“Quando submeti o projeto à Pró-Reitoria de Extensão da Unioeste e convidei os demais professores, visualizei o desafio como sendo uma oportunidade, tanto para docentes como discentes, em enfrentar uma realidade difícil e, ao mesmo tempo, oportunizar a todos a visualização da transformação que o conhecimento pode trazer”, conta Mônica Costa. Como estratégia de aprendizado e visando integrar a extensão com o ensino e a pesquisa, foram conduzidos experimentos envolvendo bolsistas de iniciação científica, alunos de graduação e de mestrado, além de dois bolsistas extensionistas.

As aulas abordaram desde as noções básicas de solos, como os tipos, a formação e capacidade de suporte, até processos biológicos de estabilização de resíduos, compostagem, vermicompostagem1, preparados alternativos para controle de pragas e doenças e outros temas que envolviam o assunto.

O projeto ocorreu na época da pandemia da Covid-19, o que dificultou um pouco as ações. Porém, isso não impediu chegar a resultados importantes, pensando, principalmente, na questão da ressocialização. Afinal, seis apenados conseguiram a qualificação na produção e uso de adubos orgânicos em hortaliças. 

“A experiência vivenciada com este projeto de extensão trouxe grande aprendizado, principalmente, para mim. Inicialmente, de forma bem cautelosa, iniciei as aulas e confesso que, a cada encontro, percebia o aumento da interação com os alunos e vice-versa. Precisei adaptar os conteúdos, modificando a linguagem e buscando por exemplos que os permitissem visualizar o conceito que estava sendo repassado. Enfim, considero que todos ganhamos, foi realmente um aprendizado de ambas as partes”, conclui a coordenadora do projeto.

Educação e Saúde

Continuando na Unioeste, mas, agora, na área da saúde, não podemos deixar de conhecer as atividades que envolvem os “Projetos Transformadores: Saúde e Educação nas Prisões do Paraná”. Essa iniciativa reúne uma equipe dedicada, que tem se empenhado em promover mudanças significativas no sistema penitenciário do Paraná, aproveitando a estrutura da pesquisa, da extensão e do ensino. Os diversos projetos abordam diversas questões relacionadas à saúde física e mental de indivíduos presos, bem como dos profissionais que trabalham nas instituições prisionais e suas famílias. Funcionam por meio de ações de pesquisa, educação, intervenções práticas e colaborações com várias partes interessadas. 

A farmacêutica e doutora em Saúde Coletiva, Lirane Elize Defante Ferreto, do Centro de Ciências da Saúde, é uma das participantes, que atua por meio do Grupo de Estudo em Saúde Coletiva, da Universidade. Ela lembra que “tudo começou com uma investigação pioneira para estimar a prevalência2 e os fatores associados às infecções por HIV e hepatites B e C entre a população carcerária do Paraná. Os resultados desse estudo não apenas forneceram informações cruciais para a saúde pública, mas, também, lançaram as bases para uma série de iniciativas transformadoras”, explica a professora.

Uma das áreas de atuação importante foca profissionais de segurança pública, em particular os policiais penais, que desempenham um papel fundamental na gestão das prisões. “Proporcionar treinamento e conscientização sobre questões de saúde dentro do sistema prisional é uma estratégia para promover um ambiente mais seguro para todos os envolvidos”, acrescenta Liriane.

O projeto também possui uma área de atuação de destaque envolvendo os profissionais da enfermagem que trabalham nas penitenciárias. Esse grupo, igualmente, desempenha ações vitais na prestação de cuidados de saúde aos detentos e, portanto, precisam ser alvo de programas de capacitação e de apoio.

Os familiares das pessoas privadas de liberdade não foram esquecidas. “A separação de um ente querido devido à prisão é uma experiência desafiadora, e essas famílias também recebem suporte e orientação para enfrentar esses momentos difíceis”, afirma Lirane Ferreto.

Mais recentemente, o grande Programa expandiu suas atividades para incluir o ensino no sistema penitenciário. Agora, alunos do curso de medicina têm a oportunidade de realizar parte do seu internato médico em Atenção Básica e Saúde Coletiva no sistema penitenciário. Além da iniciativa oferecer uma experiência de aprendizado única, também contribui para melhorar os cuidados de saúde disponíveis para os detentos.

Enfim, o projeto tem várias frentes: a prevalência e fatores associados à infecção latente da tuberculose (ILTB) em agentes penitenciários do Paraná; qualidade de vida, sofrimento psíquico e vitimização do trabalhador nas instituições de segurança pública; condições de trabalho e saúde em servidores do sistema prisional; entre outros.

As pesquisas envolvem coleta de dados, realização de questionários, análises de exames médicos e avaliações de saúde e, às vezes, revisão da literatura existente sobre os diferentes assuntos. “A pesquisa ajuda a identificar problemas de saúde específicos e entender suas causas e impactos. Em muitos desses projetos, os participantes são entrevistados, preenchem questionários ou passam por exames médicos. Os dados coletados são usados para avaliar a saúde física e mental, identificar problemas de saúde, medir a prevalência de doenças, além de outras informações”, explica Liriane. 

Coleta de sangue dos participantes do projeto (Foto/Arquivo Pessoal)

Após a coleta de dados, os pesquisadores realizam análises estatísticas para tirar conclusões significativas. É possível identificar tendências, fatores de risco, associações e padrões que ajudam a compreender a situação de saúde da população estudada. As pesquisas ainda geram componentes de educação e de conscientização. São base para a elaboração de palestras, workshops, produção de materiais educativos e aconselhamento sobre questões de saúde, práticas seguras e prevenção de doenças. 

“Dependendo dos resultados da pesquisa, os projetos podem envolver, também, intervenções diretas. Isso pode incluir encaminhamento para tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, aconselhamento em saúde mental, promoção de hábitos de vida saudáveis, entre outras medidas para melhorar a saúde. E mais: a avaliação contínua é essencial para medir o impacto das intervenções”, conta ela.

Com base nos resultados e nas lições aprendidas, é possível garantir o aprimoramento das ações; isto é, as iniciativas são adaptadas às necessidades da população carcerária e dos profissionais de segurança pública, que estão em constante evolução. Os resultados das pesquisas são divulgados por meio de publicações acadêmicas, relatórios técnicos, apresentações em conferências e outros meios, o que contribui com a disseminação do conhecimento em políticas de saúde não só no Paraná.

“O trabalho desse grupo não apenas lança luz sobre as questões de saúde dentro do sistema penitenciário, mas também destaca a importância de abordagens holísticas3 que envolvem pesquisa, extensão e educação. Ao investir na saúde e no bem-estar da população carcerária, estamos contribuindo para um sistema mais justo e humano”, destaca a professora. 

E tem mais gente focada em pesquisa no Grupo de Estudo em Saúde Coletiva da Unioeste. A professora doutora com graduação em química, Franciele Aní Caovilla Follador, faz parte do curso de medicina da Unioeste, no campus de Francisco Beltrão. Ela foi procurada, em 2013, pela Direção da Penitenciária Estadual (PEFB), para desenvolver alguma ação de saúde na instituição. “Era o início do curso e ainda estávamos nos estruturando, mas aceitamos o desafio e, em seguida, iniciamos projetos de pesquisa e extensão com a participação de professores, agentes universitários e alunos, pensando no público das pessoas privadas de liberdade, suas famílias e os profissionais de segurança pública”, explica ela. 

A proposta principal tem como título “Atenção em saúde aos apenados e agentes penitenciários da PEFB PR”, e vem realizando diversas ações. Neste momento, por exemplo, sob a coordenação da professora Franciele, os participantes estão realizando o projeto “Promoção da saúde de pessoas privadas de liberdade, seus familiares, policiais penais e agentes administrativos da 7ª Regional do DEPEN PR”, com bolsas financiadas pela Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti) e a participação de alunos de graduação e um recém formado.

A bióloga, doutora em Biologia das Interações Orgânicas e professora do Centro de Ciências da Saúde, Gisele Arruda, também é uma das participantes desse projeto que, atualmente, está pesquisando a aplicação de auriculoterapia na população carcerária.

A auriculoterapia faz parte da medicina tradicional chinesa. O método utiliza pontos específicos na orelha que possuem a capacidade de atuar em diversos problemas de saúde. O projeto de aplicação da técnica começou no ano de 2023 a partir de uma necessidade de melhora da qualidade de vida dos policiais penais e toda a população carcerária. O enfoque é o tratamento da ansiedade, depressão e estresse, entre os presos e agentes da PEFB. 

“Os pacientes são atendidos, semanalmente, por uma equipe treinada de docentes e discentes. A equipe também faz a coleta de amostras de sangue para dosagem de cortisol4 e estresse oxidativo5, aplicação de questionários para avaliar os parâmetros de ansiedade, estresse e depressão, e aplicação de Ryodoraku, equipamento que mede os níveis energéticos dos meridianos que fazem parte da acupuntura, terapia que também pertence à medicina tradicional chinesa”, explica Gisele Arruda.

Docentes e discentes se deslocam até a Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão para atender os pacientes que voluntariamente se dispõem a receber o tratamento. Todas as orientações e dúvidas são sanadas nestes encontros. E mais: bimestralmente, o grupo avalia a eficácia do tratamento de auriculoterapia. “A população carcerária vive sob estresse constante, toda sociedade sabe. Portanto, poder aliviar esse estresse melhorando a qualidade de vida foi um dos marcos desse projeto”, conclui a professora. 

Os pesquisadores também acompanham a evolução da saúde dos participantes ao longo do tempo, para determinar se as intervenções estão tendo um efeito positivo. “A extensão universitária busca aproximar a Universidade da comunidade, em uma constante troca de informações. Por isso, realizamos palestras, workshops, participamos da semana do agente penitenciário, da distribuição de materiais educativos e do aconselhamento para informar as pessoas sobre questões de saúde, práticas seguras e prevenção de doenças”, destaca a coordenadora do projeto, Franciele Follador. 

As famílias da comunidade penitenciária também estão incluídas na ação. “Estamos ministrando palestras educativas e desenvolvendo, junto com a Federação Internacional de Associações de Estudantes de Medicina [IFMSA], o projeto do Hospital do Ursinho, para que as crianças conheçam ações de saúde, como aplicações de vacinas, curativos, cirurgias e, com este contato, diminuam possíveis medos”, acrescenta a professora Franciele.

Saúde e dignidade

Saindo da Unioeste, vamos para a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) conhecer o “Projeto de Combate a Pobreza Menstrual Carcerária”, coordenado pelo professor do Departamento de Direito Processual da UEPG, Rauli Gross Junior. (Para saber o que é pobreza menstrual, acesse o link.)

A intenção do projeto é produzir absorventes e fraldas dentro da unidade prisional e atender à demanda das mulheres do local. A ideia surgiu de uma acadêmica egressa da pós-graduação, Isabella Godoy. Ela se animou com um edital da Fundação Araucária (FA) e levou uma proposta para o professor, que gostou muito da ideia.

Absorventes descartáveis (Foto/Arquivo Pexels)

Por envolver a execução penal, foi possível a parceria com o Conselho da Comunidade de Ponta Grossa, que fez a aquisição de uma máquina industrial capaz de produzir absorventes e fraldas. A  verba veio da Vara de Execução Penal. “O Conselho da Comunidade é responsável pelo desenvolvimento de ações nesta área, sem eles não teria sido possível executar o ‘Projeto de Combate a Pobreza Menstrual Carcerária’”, enfatiza o professor Rauli.

A iniciativa, então, é uma parceria entre a UEPG, a Fundação Araucária, a Penitenciária Estadual de Ponta Grossa e o Conselho da Comunidade. Neste momento, a equipe está na fase de treinamento para utilização da máquina. O grupo de atuação do projeto é formado por uma equipe multidisciplinar, com professores, acadêmicos bolsistas de extensão e profissionais das áreas do Direito, Psicologia e Serviço Social, além de policiais penais. Estes últimos vão participar da fase de treinamento para, posteriormente, supervisionar a produção de absorventes e fraldas dentro da unidade prisional.

Rauli Gross Junior destaca que o impacto positivo, até o momento, é a mobilização da comunidade para debater o tema. “Um importante resultado está no fato de que a proposta chamou a atenção do Governo do Estado, que já estuda a possibilidade de institucionalizar o projeto, replicando-o para outras unidades prisionais, como uma política penitenciária”, conta ele.

Sabemos que os absorventes são itens indispensáveis para a saúde da população feminina. A proposta inicial do projeto visa atender à demanda interna das unidades prisionais, porém, já está prevista a ampliação da fabricação para distribuição em redes públicas de ensino, assim como se estuda formar uma cooperativa de economia solidária para que as mulheres egressas do sistema penitenciário possam ter uma fonte de renda. “Desta forma, entendemos que o projeto atende a uma necessidade básica e essencial das mulheres, um direito que mesmo no sistema prisional não pode ser negado. E mais: pode criar uma oportunidade de trabalho para o resgate da dignidade destas apenadas”, destaca o professor. 

Mesmo que seja em pequenos passos, esses projetos vão fazendo a diferença e implementando mudanças no sistema prisional do Paraná, ajudando na tão importante reflexão sobre a população carcerária. O C² precisava lançar luz sobre essas iniciativas, pela importância que têm e para destacar o envolvimento das universidades estaduais na tentativa de dar mais dignidade à vida de quem perdeu a liberdade.

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Texto:
Milena Massako Ito
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Lucas Higashi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Glossário

  1. Vermicompostagem: tipo de compostagem que utiliza minhocas além dos micro-organismos naturais para degradar a matéria orgânica. ↩︎
  2. Prevalência: número de casos novos e existentes de uma doença em um determinado momento. ↩︎
  3. Holísticas: conceito que busca analisar e entender algo por completo. ↩︎
  4. Cortisol: hormônio que ajuda o corpo no controle do estresse e funcionamento do sistema imune. ↩︎
  5. Estresse Oxidativo: desequilíbrio entre a geração de compostos oxidantes e a atuação dos sistemas de defesa antioxidante. ↩︎