Entre a Arte e a vida: a fotografia invade a Ciência

As imagens falam; as câmeras nos ajudam a registrar nossa emoção, nossa história e o universo científico

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), em sua obra ‘Metafísica do Belo’, diz que a arte e a ciência têm, em última instância, uma mesma qualidade: a de nos mostrar o mundo tal como ele se posta diante de nós ou uma parte destacada dele. O pensamento de Schopenhauer nos leva a refletir sobre a origem da relação entre o pensamento artístico e o pensamento científico. 

No decorrer da história humana, outros inúmeros momentos também mostraram essa relação, nas mais diferentes linguagens artísticas. A Física nas esculturas de Bernini, a Química nos afrescos de Giotto, a Matemática nas obras de Dürer, o estudo da Anatomia Humana feita por Leonardo DaVinci, são apenas alguns exemplos.

Mas ainda pode-se ir mais longe… Já parou para pensar que a história da comunicação humana ou das expressões humanas são parte da própria evolução da humanidade e da sociedade? Pois é, pesquisadores e filósofos escreveram sobre este processo e nos contam que as formas de comunicação e expressão foram se tornando mais sofisticadas na mesma proporção da dinâmica da vida do ser humano sobre a Terra. 

As tecnologias de registrar e enviar mensagens foram sendo desenvolvidas para resolver questões de permanência sobre o planeta e se transformaram na ferramenta que vai dar suporte à engrenagem da cultura. Ao longo deste processo evolutivo, a imagem vai conquistar um espaço de destaque e se estabelecer como um dos principais mediadores culturais da sociedade. 

Segundo Edgar Morin, no livro ‘O Paradigma Perdido’, essa saga das formas de comunicação e registro de informação dos indivíduos começa há cerca de 4,5 milhões de anos. Que volta ao passado, hein? De acordo com Morin, um cataclismo ecológico provocou uma mudança na região central da África, onde nossos ancestrais viviam. O aquecimento da região fez diminuir a área de floresta e alguns indivíduos deixaram o ambiente fechado e foram explorar a savana. Ali, vão necessitar procurar comida e abrigo. E, nesse ambiente descampado, esses seres vão se unir em grupos para se defender de novos e mais ferozes predadores e buscar diferentes tipos de alimentos. Isso vai deflagrar a necessidade de estratégias de comunicação mais elaboradas. Para que a informação circule entre eles.

Mais tarde, isso é reforçado porque eles deixam de ser nômades, criam comunidades o que acaba por criar a necessidade de códigos de comportamento, que vão demandar também a produção de inúmeras “linguagens”: as leis, os costumes, as formas de comer, vestir, lidar com o semelhante etc. Essas informações são responsáveis pela organização da sociedade que vão dar sustentação à cultura. Para Morin, cultura é o conjunto de informações não-genéticas, informações que não nascem conosco, são aprendidas.

Para Morin, esse processo de ‘culturalização’ vai fazer com que surjam formas de comunicação que permitam registrar… a vida, passar as regras do jogo do dia a dia para todos os indivíduos da espécie. As primeiras manifestações destes registros são os desenhos nas cavernas, que descrevem caçadas, vitórias, derrotas, os perigos do ambiente etc. São imagens que falam.

Na linha do tempo, surgem, em seguida, a escritura, a escrita alfabética, os livros, o cinema, o rádio, a televisão, o computador… Junto com cada meio, novos tipos de mensagens vão sendo colocados no mundo, em diferentes códigos: o verbal, o sonoro, mas aqui chamamos atenção para o visual. Nosso tema, afinal, é a fotografia. Mas calma, a gente já chega lá. 

Ciência, fotografia e Arte 

Quando os desenhos de Altamira e Lascaux foram feitos pelos habitantes daquelas cavernas (a primeira na atual Espanha e, a segunda, em França), a necessidade de expressão, que os mesmos tinham, só foram satisfeitas a partir de uma série de compostos feitos com argilas, sangue de animais, água, essências vegetais. Muita ciência… claro, a que estava disponível naquele momento da nossa história. Esses compostos não só permitiram que aqueles habitantes registrassem seus feitos e anseios, sua história, mas, também, que deixassem para posteridade um aprendizado sobre a indissociabilidade entre Ciência e Arte. 

E pense: quanto mais os grupos cresceram, a sociedade necessitou de formas mais sofisticadas para proporcionar a interação entre seus indivíduos. “Para dar conta deste processo, foram criadas inúmeras ‘tecnologias’ de comunicação, desenvolvidos novos suportes, que vão dar conta de perpetuar a cultura”. Essa frase é parte da minha tese de doutorado em Comunicação e Semiótica, defendida na PUC de São Paulo [eu sou a Ana Paula, uma das autoras deste texto]. Pensando com os olhos “vestidos” com essa lente, podemos entender as inúmeras possibilidades de equipamentos para produzirmos e enviarmos mensagens que surgiram ao longo da história.

A fotografia é uma delas. A história começa no universo da ciência, a partir de estudos sobre óptica, quando Aristóteles (384-322 a.C.) observa a imagem exterior projetada na parede de um quarto escuro. A ideia de inventar aparelhos capazes de captar a luz, como a câmera escura se expande com a descoberta de materiais sensíveis e suportes capazes de reter as informações luminosas. Olha, mais ciência! “Até o advento da câmera fotográfica foram necessárias confluências de acontecimentos e pesquisas sobre a óptica, a perspectiva, o estudo da luz, e de materiais sensíveis”, lembra Patricia Kiss Spineli, especialista em fotografia e mestranda em design. 

De acordo com Spinelli, para ciência, desde o princípio, a fotografia apresenta uso pragmático. Isto é, a fotografia foi e vem sendo utilizada para conhecer o mundo, para interpretar o mundo. É um meio de registrar histórias e eventos importantes. Fotógrafos profissionais e amadores eternizam momentos históricos e culturais. Essas imagens podem ser usadas como uma fonte de educação e inspiração para as gerações futuras.

Mas, “o aparelho fotográfico, fruto da ciência e caracterizado nos primórdios da fotografia como algo que possibilitava a captura da realidade e em uma visão mecanicista argumentando que registrava a realidade, vai aos poucos se diversificando para o uso estético da arte”, lembra Spinelli.

Arte e Ciência no PR

Para o professor Nelson Silva Junior (outro autor deste texto), a expressão fotográfica, enquanto linguagem tecnológica e artística, tem sido um instrumento didático pedagógico, frequentemente usado para evidenciar a relação entre a Arte e a Ciência. Na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), duas experiências destacam essa relação que, cada vez mais, se torna uma forma acessível para que processos de formação de educadores em ciências, lembra Silva. Essas iniciativas sugerem que se utilize a Arte como elemento primordial na divulgação e popularização do conhecimento científico.

O Programa de Pós Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática investe em ações dessa natureza. Especialmente, na disciplina de Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ensino de Ciências, ministrada pelo professor Nelson e a parceira de classe dele, Marilei Casturina Mendes Sandri. Ao abordar o tema Ciência, Tecnologia e Sociedade e Arte (CTS), os docentes utilizam a produção artística, em especial a fotografia, como ponto de partida para os debates e reflexões sobre os diferentes temas que a Educação CTS propõe. 

Para o professor Nelson, o uso da Arte, em qualquer processo de ensino, potencializa a comunicação e a interação entre os alunos e os conteúdos. Para ele, a fotografia, em especial, é a linguagem mais dinâmica que pode ser usada com fins didáticos num processo de ensino e aprendizagem. 

“A fotografia, atualmente, é um meio muito acessível, tanto de produção, quanto de fruição. A tecnologia oferecida pelos smartphones nos possibilita produzir e fruir, quase ao mesmo tempo. Com isso, o simples registro dá lugar a composições mais elaboradas, que se preocupam com o enquadramento, com a luz, ângulos, texturas e outros elementos compositivos específicos da fotografia enquanto linguagem artística”, detalha o professor, que acrescenta que estas fotos também chegam recheadas de conteúdo histórico, social, enfim, científico.

Os mestrandos do professor Nelson produziram trabalhos artísticos específicos que estão expostos na Galeria Virtual, criada para a disciplina CTS Arte, citada acima. Entre as 12 produções que participam da exposição, oito delas são fotográficas, que explicitam ou suscitam abordagens sobre a relação Ciência, Tecnologia e Sociedade. Impacto Ambiental, Educação Científica, Desigualdade Social, Espécies em Extinção, Comunicação, foram alguns temas abordados nas fotografias. 

Para a mestranda Cristiane Mika, arquiteta e professora de Artes Visuais, a fotografia pode ser uma fonte rica de aproximação entre Arte e Ciência, principalmente, quando pensamos em uma abordagem Ciência, Tecnologia e Sociedade. Para ela, podemos ir além das questões estéticas e elementos da imagem. Uma foto pode ser uma fonte de implicações éticas, políticas e culturais. 

“A fotografia possibilita uma compreensão mais profunda dos problemas sociais gerados pela ciência e pela tecnologia. Uma imagem revela uma força poderosa na nossa percepção do mundo e no diálogo entre diferentes áreas de conhecimento. Através dessa aproximação, podemos entender as questões da evolução da própria história da fotografia e seu desenvolvimento, pensando em como isso impactou a sociedade e como pode ser uma fonte de registros históricos e sociais”, detalha a professora, autora da foto abaixo, Pingo D’Água.

Pingo d’água  (Foto/Mika-2022)

Pingo D’Água representa como Ciência, Tecnologia e Sociedade se relacionam com os cenários cotidianos que, muitas vezes, nos passam despercebidos. De acordo com Mika, o pingar de uma gota d’água, como expresso na foto, é um fenômeno natural, configurado pela intervenção humana. 

“O avanço das construções urbanas e do desmatamento, são determinantes para que esta imagem se forme. O pingo d’água é a representação da nossa percepção sobre os problemas gerados pelo avanço não consciente das grandes ou pequenas construções, sobre um meio ambiente que acaba sendo desrespeitado. Apenas uma gota, uma única gota, pode fazer transbordar um copo ou um oceano, gerando danos irreversíveis, como aqueles que comumente, assistimos”, alerta a professora.  

Prêmio

A UEPG tem uma relação bem interessante com a produção fotográfica ligada à Ciência, além da Arte. O professor Osvaldo Cintho, do Departamento de Engenharia de Materiais, da Universidade, conquistou o primeiro lugar do Prêmio Fotografia – Ciência e Arte, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no ano de 2014. A premiação foi na categoria Imagens Produzidas por Instrumentos Especiais (ópticos, eletromagnéticos, eletrônicos). Denominada ‘Superfície Terrestre’, a foto de Cintho foi desenvolvida no Complexo de Laboratórios Multiusuários da UEPG, em parceria com orientado de mestrado dele, Maurício de Castro. 

Superfície Terrestre (Foto/Osvaldo Mitsuyuki Cintho-2014)

Osvaldo destaca que, ao participar do concurso levou em conta os objetivos do mesmo, em especial: fomentar a produção de imagens com a temática de ciência, tecnologia e inovação e contribuir com a divulgação e a popularização da ciência e tecnologia. “A imagem que produzimos tende a incutir questionamentos e curiosidade científica, além de possuir importantes informações acadêmicas. A estas características soma-se a composição da imagem com elementos interessantes em forma e distribuição, aproximando os universos científico e artístico”, resume.

Curioso destacar que ‘Superfície Terrestre’ é um produto da pesquisa de Cintho sobre Morfologia de Produtos de Reação, feita em escala micrométrica pelo professor da UEPG. Segundo o pesquisador, foi usado um microscópio eletrônico de alta resolução para conseguir a imagem. 

A produção fotográfica gerada por instrumentos como o utilizado pelo professor e, posteriormente, manipulada por artistas plásticos é conhecida como nanoarte, que relaciona arte, ciência e tecnologia.

No Brasil, o principal artista da nanoarte é o paulistano Ênio Longo, considerado o quarto maior artista deste ramo do mundo. Seu ingresso nesse campo se deu pelo apoio do irmão, Elso Longo, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR-SP). Em 2022, Ênio expôs na Mostra Internacional 3D de Nanoarte, nos Estados Unidos, a obra COVID. Trata-se de uma fotografia de micropartículas de sílica com prata, material usado na fabricação de produtos de proteção contra o vírus.

Covid (Foto/Longo-2021)

Para o professor Nelson Silva Junior, o exercício que as tecnologias imagéticas contemporâneas nos propiciam nos ensina a construir um maior sentido para a produção de imagens fixas e em movimento, e apontam múltiplas formas de ver e descrever o mundo. 

“O ato de fotografar se tornou um ato político, quando passamos a ressignificar as imagens captadas, buscando uma qualidade antes atribuída a artistas e profissionais da produção de imagens. A fotografia permite aos estudantes trazerem para dentro da sala de aula, com muito mais precisão, a sua visão de mundo. Assim, quando decidem, por exemplo, fotografar um container de lixo, próximo a sua residência, estão compartilhando experiências próprias. Experiências que deixam de ser individuais e são compartilhadas no universo acadêmico, aproximando o conhecimento científico e o conhecimento artístico”, completa o professor e artista visual.

C² Play

Para terminar essa experiência entre Arte e Ciência, o C² produziu o vídeo sobre Cianotipia. Quem mostrou para a gente como realizar uma “obra” neste gênero foi nossa videomaker, Gabriele Camargo graduanda em educação física e formada em artes dramáticas. Mistura química e criatividade. Quer conhecer a técnica, então aperte o play!

Glossário

Câmera escura: foi a primeira descoberta da fotografia e ganhou esse nome por conta da forma que era feita. Composta por uma caixa com paredes opacas, em uma delas existia um orifício e na parede oposta desse buraco uma superfície fotossensível que registrava imagens.

Pragmático: algo que é prático, realista, objetivo.

Didático pedagógico: são conhecimentos necessários para o aprendizado e a prática de docentes.Fruição: ato de fruir, usufruir de mergulhar em uma experiência.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Nelson Silva Junior e Ana Paula Machado Velho
Apoio Técnico: Bruna Mendonça
Revisão: Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Natália Cracco
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: