Perigo no campo: o uso de agrotóxicos e o câncer de mama

Professora da Unioeste estuda a ligação entre a exposição a substâncias químicas com casos de câncer de mama em mulheres agricultoras

Apelidado de “celeiro do Brasil”, o Paraná desempenha um papel importante na agricultura brasileira, sendo destaque na produção de diversas culturas, como milho, feijão, soja, trigo, café, e outros. Isso acontece pois as terras paranaenses possuem ótimas condições para esse tipo de atividade, com a boa qualidade de solo e o clima favorável. Esse cenário faz com que o estado também seja um dos maiores exportadores do agronegócio no país, impactando diretamente o Produto Interno Bruto (PIB) nacional.

Diante desse panorama, existe um perfil que vem ganhando destaque nos últimos anos: as mulheres agricultoras do Paraná, especialmente as que fazem parte da agricultura familiar em pequenas propriedades rurais. A cada ano que passa, elas vão conquistando mais espaço e reconhecimento dentro desse campo, participando de capacitações e eventos que mostram a importância de sua atuação. De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, 40 mil mulheres estão no comando de atividades rurais no estado, uma quantidade expressiva e que merece atenção. 

Além das mulheres à frente dos negócios rurais, existem outras participando de operações, planejamentos, pesquisas, finanças, e claro, aquelas que estão colocando a mão na massa, ou melhor, na terra. Apesar do destaque desse grupo ser recente, foi em 1995 que a Organização das Nações Unidas (ONU) determinou o dia 15 de outubro como Dia Internacional da Mulher Rural e, desde então, essa data celebra e ressalta o trabalho das mulheres nas áreas rurais. 

Produtora rural no campo (Foto/AgroRegional)

O Dia Internacional da Mulher Rural também coloca em evidência a luta das mulheres do meio agrícola em relação a segurança e a saúde delas, pois você com certeza já deve ter visto alguma notícia falando sobre a ligação dos agrotóxicos com certas doenças, certo? Se esse assunto é uma novidade, o C² tem outra reportagem disponível aqui no site sobre esse tema. Mas, continuando, essas substâncias químicas, utilizadas pela maioria dos produtores rurais, podem trazer riscos à saúde, principalmente, daqueles que estão mais expostos a esses produtos diariamente, como as mulheres que atuam nesse meio.

Uma das pesquisadoras que têm estudado o assunto é a professora do curso de Medicina e do Programa de Pós-graduação em Ciências Aplicadas à Saúde, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Carolina Panis. Ela também é professora colaboradora na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e professora visitante em duas instituições do exterior, a Universidade de Harvard e a Universidade do Arizona, ambas nos Estados Unidos. 

Bioquímica de formação, a professora tem mestrado e doutorado em Patologia Experimental. O mestrado foi na área de Imunopatologia de Doença de Chagas. Depois, ela começou a pesquisar sobre câncer, migrando efetivamente em 2009 para a área no doutorado quando trabalhou com o câncer de mama. Seguindo os estudos nesse campo, o primeiro pós-doutorado foi no Instituto Nacional de Câncer (Inca) e o segundo na UEL. Depois, passando em um concurso para dar aulas do curso de Medicina, ela foi para a Unioeste, em Francisco Beltrão, onde atua até hoje. 

Professora Carolina Panis (Foto/Arquivo pessoal)

No lugar certo e na hora certa

Já nos primeiros meses em Francisco Beltrão no ano de 2014, com o título de recém-doutora, a professora ficou sabendo da abertura de um edital famoso do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) que financia as pesquisas científicas no Brasil. E aí começou todo o processo de elaborar uma proposta para concorrer ao edital. “Eu pensei, ‘bom, já que eu estou ingressando na Universidade agora, é a minha oportunidade de pensar em um problema que aconteça na região, mas que também contemple a minha expertise, que é o câncer de mama.’ Aqui tem o Hospital do Câncer de Francisco Beltrão (CEONC), que é referência para região sudoeste do Paraná. Eles me receberam lá para nós fazermos uma conversa e disseram que a gente poderia fazer uma parceria”, conta Carolina Panis.

Naquele dia, a professora conversou com dez mulheres que estavam aguardando atendimento no CEONC e, entre essas dez, sete eram agricultoras. Isso chamou muito a atenção da pesquisadora. “O universo populacional que eu trabalhei tanto em Londrina, no norte do Paraná, como no Rio de Janeiro, não era de mulheres agricultoras. Aqui eu encontrei esse público que não só se identifica como agricultora, mas que efetivamente tem contato ocupacional com os agrotóxicos, e essa foi a grande questão”, explica ela.

Então, nesse primeiro bate-papo com as mulheres, Carolina Panis encontrou um ponto muito interessante para estudar: a relação da exposição ocupacional aos agrotóxicos com o perfil do câncer de mama. E, como não é possível afirmar nada sem uma profunda investigação, no começo de uma pesquisa, tudo é pensado como um projeto epidemiológico e, depois, são investigados os mecanismos e o porquê da doença ter o comportamento que está sendo observado. 

O perfil encontrado pela professora foi de mulheres que são diretamente expostas aos agrotóxicos durante o trabalho, seja no cultivo dos alimentos, acompanhando os maridos a campo, preparando a calda desses produtos químicos, ajudando na pulverização, ou, principalmente, trabalhando na descontaminação dos utensílios que são utilizados na lavoura. Isso gerou a primeira pergunta que direcionou o estudo: será que existe uma relação entre essa exposição e o perfil do câncer de mama da região? 

Além disso, os cientistas da área ainda não tinham desenvolvido estudos em relação à exposição das mulheres rurais aos agrotóxicos, o mais comum eram pesquisas com os homens. O fato da professora ter uma formação voltada para a saúde da mulher possibilitou que ela fizesse uma ligação entre essas informações. “Com essa ideia nós teríamos condições de atender uma demanda local, porque eu estou em uma região que é um dos maiores pólos agrícolas do Paraná, um estado que é quarto maior consumidor de agrotóxico do nosso país, e no Brasil, que junto com a China e com os Estados Unidos, vem alternando entre os três maiores países que mais fazem uso de agrotóxico no mundo. Por isso, fazia todo sentido pra mim passar a estudar essa população”, explica a pesquisadora.

Os risco causados pela exposição a agrotóxicos

Antes de partirmos para os resultados desse estudo, é necessário saber como as ações dos agrotóxicos no organismo podem causar esse tipo de doença. Primeiro, precisamos entender que entramos em contato com essas substâncias químicas de várias formas. Enquanto a população geral é exposta a pequenas quantidades diariamente, por meio de alimentos, água e ar contaminado, os produtores rurais estão em contato com esses produtos com uma frequência maior e de modo muito mais intenso e direto. Essa exposição é chamada de ocupacional e tem a característica de ser crônica e severa, pois esses trabalhadores manipulam quantidades enormes de agrotóxico por conta do seu trabalho.

Produtor rural passando agrotóxicos na plantação (Foto/Getty Images)

“Nós temos hoje três agrotóxicos que são bem comercializados no mundo, e o Brasil segue essa tendência mundial, que são: o glifosato, a atrazina, e o 2,4-D. Esse trio corresponde a metade do comércio legal de agrotóxicos no Paraná. Existe uma instituição internacional que é chamada Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), que reúne vários cientistas especialistas do mundo todo para buscar evidências de estudos mundiais feitos no campo dos agrotóxicos com humanos, animais e células, para descobrir, por exemplo, se substâncias amplamente utilizadas, como o glifosato, tem o potencial de causar câncer”, detalha Carolina Panis.

Os especialistas formam um comitê para cada um dos agrotóxicos e analisam os dados levantados nos estudos, para afirmar se existem ou não evidências que classifiquem essas substâncias como cancerígenas. A partir dessas pesquisas, hoje, já se sabe que o glifosato, a atrazina e o 2,4-D encontram-se em uma esfera de, possivelmente ou potencialmente, carcinogênicos, por conta de seus mecanismos de ação em animais, células e humanos. Outro fato, também confirmado, é que os três têm capacidade de causar distúrbios hormonais, mecanismo diretamente ligado ao desenvolvimento de câncer.

“Nós sabemos que existe uma ligação muito forte dessas variações hormonais com alguns cânceres, como o de mama, o de ovário e o de tireoide. Então, existe comprovação em animais de que a exposição a essas substâncias químicas causam essa desregulação endócrina. A partir desse ponto, foram identificadas outras alterações que esses compostos causam, que vão desde dano direto ao nosso DNA, até alterações na produção destes hormônios. Conforme nosso material genético vai sendo agredido, o corpo vai tentando acionar um sistema de reparo para consertar esses estragos, mas, às vezes, a agressão é em cima desse sistema, e aí o organismo não tem como fazer esse conserto”, explica a professora. 

A agressão do DNA é o modo principal para gerar o câncer e, os agrotóxicos, além de conseguirem atacar o material genético diretamente, também conseguem atuar de forma indireta, pois, durante o processo de eliminação dessas substâncias do nosso corpo, são gerados radicais livres que também agridem o DNA. Além deste mecanismo, estudos mostram que pessoas ou animais expostos a essas substâncias apresentam danos no sistema imunológico, que pode apresentar falhas de funcionamento. Isso é chamado de distúrbio imunológico ou desregulação imunológica. “Lembrando que esse sistema é a nossa principal defesa contra o câncer. Quando a célula cancerosa surge, o sistema imunológico trabalha para a sua eliminação. O problema é que isso nem sempre é possível. Se você não tem um sistema imune vigilante e que esteja funcionando corretamente, fica susceptível ao não reconhecimento da célula cancerosa”, conta Carolina Panis.

Existem estudos no mundo inteiro sobre esse assunto, mas o Laboratório de Biologia de Tumores (LBT) da Unioeste, coordenado pela professora, foi muito além. Atualmente, eles possuem pesquisas comprovando que mulheres expostas a esse trio de agrotóxicos, tem desregulação hormonal, apresentam dano no DNA e alterações na resposta imunológica, o que gera o risco aumentado de surgimento do câncer de mama e o desenvolvimento de tumores com comportamentos mais agressivos. Ou seja, a equipe do LBT comprovou a pergunta inicial do estudo sobre a existência da relação entre a exposição ocupacional aos agrotóxicos como fator de risco para o desenvolvimento do câncer de mama com comportamento mais agressivo. “Imagine que a ciência é um quebra-cabeça e nós agregamos peças importantes que o câncer de mama não tinha até a gente começar a trabalhar por isso”, assegura a pesquisadora. 

A professora Carolina Panis junto com a equipe do Laboratório de Biologia de Tumores (LBT) da Unioeste (Foto/Arquivo pessoal)

Plantando estudos e colhendo resultados 

Quando Carolina Panis e sua equipe começaram a estudar o tema da ligação dos agrotóxicos com o câncer de mama em mulheres agricultoras, há 10 anos atrás, existiam algumas pesquisas com animais e células, porém pouquíssimas evidências em seres humanos. Por isso, o grupo precisou produzir muito material e, até hoje, eles são um dos únicos grupos que estão estudando o assunto com esse nível de profundidade. 

No início, a equipe coletou tecido tumoral e sangue das pacientes atendidas pelo Hospital do Câncer (Ceonc), para fazer estudos imunológicos e de alteração do material genético. Ela começou mapeando qual era o perfil do câncer de mama que essas mulheres tinham e isso chamou sua atenção. Como ela já tinha trabalhado em outros hospitais em Londrina e no Rio de Janeiro antes de chegar em Francisco Beltrão, a pesquisadora já tinha idéia de como deveria ser o perfil da doença na população.

Entretanto, quando a equipe começou a analisar os dados de prontuários das mulheres agricultoras e comparar com o prontuário das mulheres que não são expostas aos agrotóxicos ocupacionalmente, ou seja, aquelas que atuam em atividades urbanas, um dado extremamente valioso chamou a atenção. “Quando a gente começou a fazer essa comparação, sempre que chegava uma mulher com uma história de câncer mais agressiva, ela era agricultora, e isso chamou a nossa atenção”, conta a professora. 

Diante dessa situação, começou todo um processo de sistematização e coleta dessas informações, afinal de contas, na ciência não é simplesmente achar um dado e ter aquilo como um fato. É preciso provas que comprovem a veracidade do caso. A equipe pegou os prontuários das mais de 500 pacientes que tinham disponíveis no Hospital naquele período e foram coletando dados fundamentais como a idade, o peso, o tipo de câncer, o perfil de agressividade da doença, se era trabalhadora rural ou não, se tinha ido a óbito, entre outras informações, para produzir um banco de dados detalhado sobre este perfil. 

Com essas informações em mãos, Carolina foi para os Estados Unidos realizar a próxima fase do estudo na Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, com o objetivo de tentar identificar qual era a assinatura de prognóstico de cada um desses grupos. O banco de dados foi analisado por um uma equipe especializada para se obter a comprovação estatística, aquela que tem valor para a ciência. 

Essa análise retornou duas informações muito relevantes para o estudo. A primeira: quando se compara mulheres expostas ocupacionalmente a agrotóxicos com aquelas não expostas, o risco das que são expostas desenvolverem o câncer de mama é 32% maior do que as mulheres não expostas. A segunda informação mostra a gravidade deste cenário, pois dentre as mulheres agricultoras que desenvolvem o câncer de mama, existe um risco de mais de 50% de evoluir para doença metastática, onde as células cancerosas se espalham para outras partes do corpo, formando novos tumores e aumentando os riscos de óbito.

Assim, a professora e sua equipe confirmaram mais uma hipótese levantada durante os estudos, tudo isso por conta da atenção na hora de observar os prontuários. 

Indo além

Com essas informações comprovadas e sabendo da relação da exposição ocupacional aos agrotóxicos com os casos de câncer de mama, a equipe trabalha pela conscientização da população e buscando impactos positivos na saúde pública da região em que eles trabalham. Em parceria com pesquisadores do curso de Geografia da Unioeste, os professores Dra. Roseli Alves dos Santos e Dr. Luciano Candiotto, foi proposto atualmente um projeto novo focado na educação desta população, com foco nos coletivos de mulheres agricultoras, para conseguir atingir o público de mulheres jovens, que ainda não possuem a doença, e fazer alertas para esses casos para que elas não sejam futuras pacientes do estudo. Já são mais de 1.100 mulheres envolvidas nesse estudo, o que representa quase 5 mil pessoas por conta de seus familiares, que também estão envolvidos, e podem ser expostos e potencialmente contaminados. 

Nestes 10 anos de pesquisa, a equipe notou que a principal via de contaminação dessas mulheres é pelo manuseio com mãos desprotegidas. “O nosso estudo mostra que pelo menos 90% das mulheres que fazem esse processo de lavagem de roupa usadas na pulverização e descontaminação de EPIs, que são os Equipamentos de Proteção Individual, não usam luva de proteção, sendo esta a principal porta de entrada dos agrotóxicos no corpo dessas pessoas”, conta Carolina Panis.

Por isso, focados em educar essas mulheres, eles estão fazendo palestras de disseminação destes resultados do estudo e desenvolvendo ações de conscientização que visam orientar sobre a manipulação correta dos agrotóxicos, enfatizando a utilização das luvas de proteção na lavagem e descontaminação de roupas e EPIs contendo agrotóxicos, com foco também na distribuição dos equipamentos de proteção individual. O processo educativo encontra alguns entraves, já que os pesquisadores entendem que esses produtos têm um custo e nem sempre os agricultores possuem dinheiro para investir nessa proteção. Porém, o projeto conta com apoio da Fundação Araucária, do CNPq, de parcerias locais e editais de pesquisa do Governo do Paraná e do Governo Federal, que ajudam a financiar essas ações. 

Outro passo do projeto na conscientização são as palestras. A professora conta que já percorreu quase toda a região sul do Brasil, falando com as mulheres para que possam entender a situação, os riscos que correm e saberem como se proteger. “Para mim, conscientizar as pessoas é um ponto muito importante, já que eu não posso fazer muito por quem já está doente é bom poder fazer alguma coisa por quem não está”, afirma a pesquisadora.

Professora Carolina Panis realizando uma palestra (Foto/Arquivo pessoal)

Aproveitando o Outubro Rosa, movimento internacional de conscientização e prevenção do câncer de mama, a professora Carolina Panis e o C² deixam uma recomendação para todas as mulheres que possuem 40 anos ou mais: façam mamografia! Um exame simples, que pode detectar precocemente o câncer de mama e salvar vidas. Procure o Sistema Único de Saúde (SUS) de sua cidade para conferir se há o direito de fazer o exame de forma gratuita. 

Vale lembrar que os principais sinais do câncer de mama são: presença de caroço, fixo e indolor na mama; pele da mama avermelhada ou com aspecto de casca de laranja; alterações ou saída de secreção aquosa ou sangue por um dos mamilos e pequenos nódulos palpáveis no pescoço ou nas axilas. Em caso de algum desses sintomas procure atendimento médico.

Glossário

Projeto epidemiológico: estudos que buscam identificar a causa e surgimento de doenças.
Carcinogênicos: agentes químicos, físicos ou biológicos que podem causar câncer.
Radicais livres: moléculas altamente capazes de reagir com as estruturas do nosso corpo.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Milena Massako Ito
Colaboração: Gabriel Vieira dos Santos
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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