Saudades do tempo em que mentira só tinha perna curta

No mundo da pós-verdade, fake news e fake science abrem alas para a bizarrice e o caos, confundindo, constrangendo e desinformando propositalmente

Vem da China um provérbio interessante: “meia verdade é sempre uma mentira inteira”. Também procede do mesmo país a variante SARS-CoV-2 do coronavírus, extensa família de vírus que se assemelham. Há 3 anos, o SARS-COV-2 aterrorizou o mundo, matou cerca de 14,9 milhões de pessoas direta ou indiretamente entre janeiro de 2020 e dezembro de 2021 – 700.556 delas no Brasil – e abriu as portas para um mundo tenebroso, com potencial destrutivo muito maior do que bombas atômicas: a desinformação. 

De repente, a sociedade contemporânea, acostumada com o jornalismo nascido no século 19 e desenvolvido ao longo de todo o século 20, no qual o veículo de informação – jornal, rádio e tevê – vendia a atenção do leitor/ouvinte/telespectador em forma de publicidade a partir da audiência e tiragem conquistadas com conteúdo de qualidade e consequente credibilidade, viu-se obrigada a encarar a dura realidade da vida on-line da pós-verdade, caracterizada por “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”, segundo definição do Dicionário Oxford. 

Neste cenário surge a fake news com toda pompa e toda glória, porta-bandeira do caos e abre-alas da bizarrice em forma de informação que, propositalmente, desinforma, confunde e constrange ao questionar conceitos científicos sedimentados, quando não ao mentir descarada e deslavadamente.

Fábio Silveira, professor de Comunicação Social, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), despertou para a relevância do tema durante a banca de defesa do doutorado. A tese analisou a cobertura do Jornal de Londrina à luz do conceito de valor-notícia e a conclusão, que tratou dos desafios do jornalismo, inclui as fake news entre os maiores. Some-se a isso o fato de que, em 2020, no começo da pandemia, Silveira trabalhava como repórter da Rede Paranaense de Comunicação (RPC), em Londrina, período em que as fake news e o negacionismo começaram a dar as caras. 

O docente, então, partiu para o pós-doutorado e se debruçou sobre o assunto, que, para ele, começa a errar no próprio nome. “É uma contradição em termos. A tradução de fake é falso e de news, notícia. Logo, se é falso, não é notícia”, diz ele, complementando que, embora falseada, a fake news é realidade (outra contradição em termos) e por isso mesmo deve ser enfrentada pela comunidade acadêmica com unhas, dentes e cérebro. 

Antes da tecnologia

De acordo com Silveira, o fascínio pela mentira precede a tecnologia. A primeira tese acadêmica sobre jornalismo, defendida em 1690, em Leipzig, na Alemanha, por Tobias Peucer, dizia que o jornalismo deveria preocupar-se em difundir o que fosse realidade. Em termos filosóficos, no mito da caverna de Platão, a verdade é desprezada por aqueles que só conseguiam ver as sombras. “No mundo contemporâneo, esse fascínio se coloca por vários fatores, especialmente pelo viés de confirmação. Muitas vezes, a verdade pode ser desagradável e se houver uma mentira que a explique com calma, de forma organizada, será mais fácil acreditar”, explica. 

A verdade inexorável do SARS-CoV-2 é que não havia mandinga, remédio ou vacina capaz de combater as múltiplas, simultâneas e graves inflamações que ele provoca em diferentes sistemas, especialmente o respiratório. A humanidade se viu socialmente isolada, nua e indefesa diante de um ser microscópico, contra o qual apenas as mãos, munidas de potentes porções de  água, sabão e álcool gel, além das imprescindíveis máscaras faciais, foram capazes de enfrentar, mantendo-o à distância. 

Como dar conta desta verdade, senão mentindo que um remédio para vermes e outro para malária matavam o vírus terrível e permitiam viver a vida como antes? De repente as palavras cloroquina e ivermectina inundaram os posts de redes sociais, o noticiário, os bate-papos e as mensagens de whatsapp, tornando-se vedetes das fake news e ganhando status de medicação ‘oficial’ e preventiva contra uma doença, até então, desconhecida. Viva o “tratamento precoce”! 

“A mentira ajuda a dar o conforto de uma explicação que resolve os problemas do mundo. Obviamente, com a tecnologia e as possibilidades de formação de bolhas, as pessoas são direcionadas a versões, mesmo mentirosas, que confirmem e reconfortem. A mentira ordena um mundo extremamente caótico”, pontua Silveira.

As fake news divulgadas durante a CPI da Covid foram estudadas pelo docente da UEL Fábio Silveira, que participa do livro “Fake news – impactos no jornalismo e na política”

O pesquisador destaca as principais características da fake news: intenção deliberada de enganar e ludibriar em busca de ganho econômico e omissão da autoria. Segundo ele, para compreender o fenômeno e pensar na maneira como ele dialoga com o capitalismo de plataformas, também chamado capitalismo de vigilância, é preciso reconhecer que a fake news se faz passar por jornalismo, usando técnicas e conceitos numa tentativa de desqualificar o trabalho dos profissionais e empresas de comunicação ao sugerir que estes têm o ‘rabo preso’ e, portanto, não podem dizer a verdade. “O produtor de fake news não nega o jornalismo, mas dissemina notícias falsas numa perspectiva de teoria da conspiração, e da mesma forma que uma notícia verdadeira, disputa a atenção da audiência e os anúncios publicitários, a custo muito mais baixo do que o de uma equipe de reportagem.” 

Se o conteúdo da fake news é a perturbação em pessoa, sua forma obedece a padrões sistematizados, complexos e criteriosos. As mais simples têm custo baixíssimo, demandam criatividade e pouco mais de 15 minutos. Já as mais elaboradas requerem pesquisa, manipulação de dados concretos e doses extras de intencionalidade, o que aumenta o custo de produção, ainda que bem menor do que o da atividade jornalística. 

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, período fértil de disseminação de fake news, foi o recorte temporal da pesquisa de doutorado de Silveira e revelou descobertas importantes, como a complexidade de algumas fake news em detrimento de outras mais simples. Nesta categoria, está uma resposta homofóbica atribuída ao ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ao senador Randolfe Rodrigues, que perguntou por que o depoente foi à audiência sem a farda de militar. “Este diálogo simplesmente não existiu, foi uma invenção básica”, diz o pesquisador.

Como exemplo de fake news elaborada, Silveira destaca a cobertura da imprensa no momento mais agudo da pandemia, que comparava o número de pessoas mortas com o número de pessoas nascidas para confirmar a gravidade do momento. A fake news que circulou dizia que o número de mortos permanecia estável em 2021 em comparação com os anos anteriores, de 2017 a 2020. “Fazendo a rechecagem dos dados percebia-se que quem fez essa produção comparou 20 dias de abril de 2021 com 30 dias de abril de 2019, obviamente diferentes. Fake news como essa demandam tempo para ser descobertas e reveladas”, conta Fábio. 

Outro achado importante da pesquisa está descrito em artigo científico a ser publicado no primeiro semestre de 2023: fake news segue lógica de agendamento. Com base no acompanhamento das informações falsas divulgadas no período da CPI – 1° de maio a 20 de outubro de 2021 -, Silveira afirma que a concentração de informações falsas sobre a vacina da Covid-19 se deu em junho, quando veio à tona a tentativa de cobrança de propina para a compra da vacina indiana Covaxin, sequer aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “As fake news acompanhavam a necessidade de agenda do grupo que disputava politicamente a narrativa, que tentava ganhar o debate público”, diz ele.  

A pesquisa de doutorado, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UEL, está publicada na primeira parte do livro “Fake news – impactos no jornalismo e na política”, assinado também por Clodomiro Banwart e Elvi Cenci, ambos do Departamento de Filosofia da UEL. Silveira faz um ensaio com a análise do fenômeno das fake news nos Estados Unidos e Brasil; trata de erros intencionais ou voluntários cometidos por veículos jornalísticos estabelecidos; apresenta a tecnologia como um dos terrenos férteis para a propagação das notícias falsas; discute a noção de verdade e mentira a partir da filósofa Hannah Arendt; traz o conceito de valor-notícia e de pós-verdade e, por fim, apresenta o que há de novo no fenômeno das fake News, segundo ele uma combinação de notícias falsas, algoritmos e ganhos financeiros com publicidade através dos mecanismos das redes sociais.

Fake news é ruim, fake science é péssimo

A química e professora Marcia Borin integra o Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Educação Matemática, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus de Cascavel, e atuou por 22 anos no curso de Química licenciatura, da Unioeste, campus de Toledo. Sua tese de doutorado é sobre análise do discurso e divulgação da ciência. Familiarizada com a pseudociência – propaganda errada ou pouco criteriosa sobre o assunto -, ela se sentiu provocada, em 2018, a se aproximar do universo paralelo das fake news ao perceber diferenças nada sutis entre estas e o que, até então, era o temor dos cientistas sérios. “A fake science se diferencia da pseudociência porque, além de errada, a informação intenta mudar a opinião formada sobre algo”, explica Marcia. 

O interesse tornou-se projeto de iniciação científica da licenciatura em química no ano seguinte e foi desenvolvido ao longo de dois anos com a acadêmica Vanessa Ron Jen Chang, tendo sido iniciado com a acadêmica Beatriz Tilschneider Garcia Rosa. Inicialmente, as pesquisadoras se limitaram às propagandas erradas de ciências como fontes de estudo e, a partir de 2020, com a loucura total trazida pela pandemia de coronavírus, debruçaram-se sobre as medonhas fake science disseminadas por mensagens de whastapp. 

Com base nos estudos sobre pós-verdade, fake news e afins, o projeto buscou entender como o discurso falso sobre ciências circula, que discurso é esse e se essas mensagens obedecem a algum tipo de padrão. E entendeu

Segundo Marcia, em primeiro lugar a fake science procura aproximação afetiva por meio de verdades culturais. “Desde que nascemos tomamos chá quando gripados. Não tem efeito medicamentoso, mas afetivo”, diz ela. E deu-se a avalanche de receitas de chá capazes de curar covid em grupos de whats e nas redes sociais. 

Outro apelo da fake news de ciências é reportar benefícios e exemplos bem-sucedidos de países distantes, com pouca ou nenhuma chance de comprovação, como Israel ou Coreia do Sul. Abusar de referências de respeito, como médicos, pesquisadores ou cientistas também é um recurso bastante utilizado para avalizar a fake science, ainda que o conteúdo provoque cãibras no estômago de tanto rir. Como a mensagem que incitava o consumo de alimentos básicos, como o limão, para dizimar o pH do vírus da covid-19. “Qualquer pessoa que fez o ensino médio sabe que o pH do limão é ácido. A fake science é tão malfeita que é fácil identificar. O surpreendente é aceitar que muitas pessoas acreditam”, reconhece Marcia. 

E aí a pesquisadora se viu diante de um dilema: como desmentir a fake science a partir da ciência real sem complicar ainda mais a informação? “Desvendar uma fake science serve muito mais à academia do que à população. Num artigo científico eu posso apresentar fórmulas químicas e compará-las, mas não no jornal. É preciso conhecimento científico mínimo”, pondera. Isso porque todo absurdo deve ser provado cientificamente – neste caso, o contrário -, tarefa à qual, pela própria dinâmica do ofício e na grande maioria das vezes, o jornalista não consegue se entregar com o zelo e o apuro devidos. 

Então de onde é que pode vir a luz neste imenso túnel de desinformação no qual a fake science nada de braçada? Da informação científica com “C” maiúsculo, de projetos de divulgação científica para crianças, como o coordenado pela professora Márcia, e de canais de divulgação científica comprometidos, como este C² Conexão Ciência, feito por comunicadores para e com pesquisadores de todas as instituições de ensino superior do Paraná.

Em um mundo imerso na pós-verdade, no qual profissionais de saúde receitavam os ditos “remédios” do famigerado “tratamento precoce” para vencer a covid-19, e outros tantos abominavam e continuam vociferando contra qualquer vacina, os exemplos listados acima só farão sentido para as pessoas imunizadas contra o veneno da fake science, o que demanda muito mais do que o “primário bem feito”, como diriam os antigos. 

“Preocupo-me muito mais em criar no jovem que está na escola cultura crítica para leitura das informações, independentemente de ser ciência séria ou não, do que tentar convencê-lo de que aquilo é errado. Quem acredita em fake science está emocionalmente preso àquela ‘verdade’. Não há meios de dissuadir”, encerra Marcia. 

Que o diga “A verdade dividida”, de Carlos Drummond de Andrade: 

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

“Quem acredita em fake science está emocionalmente preso àquela ‘verdade’. Não há meios de dissuadir”, conclui a pesquisadora Marcia Borin, da Unioeste

A professora Marcia Borin lista algumas referências científicas confiáveis e saborosas. Aprecie sem moderação!

Fundação Oswaldo Cruz

A mais destacada instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina

Link – www.fiocruz.br

Ciência Pop

Projeto de extensão universitária que objetiva promover e divulgar atividades de divulgação da ciência de um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) campus de Toledo; Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) campus de Realeza/PR e Instituto Federal de Capanema/PR.

Link – Ciência Pop

Ilha do Conhecimento 

Projeto independente, voluntário e sem fins lucrativos voltado à popularização da ciência  

Link – Ilha do Conhecimento

Instituto Ciência Hoje 

Link – Ciência Hoje (a revista digital tem versão para crianças)

Gabriela Bailas

A cientista gaúcha desvenda informação errada em vídeos curtos e de linguagem acessível
Link – Instagram

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Juliana Daibert
Arte: Juliana Sandaniel
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: