Turismo rural: empreendedorismo e sustentabilidade

Um mercado em expansão que impulsiona pequenos e médios negócios, muda hábitos turísticos e abre portas para renda familiar sem deixar a sustentabilidade de lado

Quem olha Rogério caminhando entre seus vinhedos, sendo cortado pela brisa da serra e pelo aroma das uvas, pode não imaginar que aquele negócio de sucesso, enraizado num lugar belíssimo, reflete a concretização de um sonho permeado por paixão e determinação, que nasceu do outro lado do oceano.

Tudo começou nos anos 80, quando ele teve seu primeiro contato com a vinicultura, na França, onde a sutileza das semelhanças climáticas entre a Provence1 e sua terra natal, em algumas épocas do ano, acendeu uma faísca de inspiração: o solo rico e avermelhado de Apucarana revelava grande potencial para a produção de uvas finas.

Em 2016, e já no Brasil, a semente desse ‘sonho rogeriano’ foi finalmente plantada. As variedades de uva Chardonnay, Pinot Noir e Syrah foram cuidadosamente inseridas nos vinhedos entranhados na Serra de Apucarana. Mas, o desenvolvimento das vinhas era só o início de uma jornada que transformaria a visão de Rogério em referência para o turismo rural no norte do Paraná.

Três anos depois, as portas da vinícola se abriram. O Bistrô & Wine Bar inaugurou uma nova era para o enoturismo2 no Brasil. A experiência na Casa Carnasciali não se limita apenas ao vinho; é uma sinfonia de sabores e lazer. Ali, une-se vinhos de qualidade, gastronomia refinada, hospedagem aconchegante e o cenário único da Serra de Apucarana. O intuito é que cada visitante experimente uma imersão completa, desfrutando de toda a experiência oferecida nos vinhedos emoldurados pela deslumbrante paisagem paranaense. E mais: em alguns momentos, é possível participar da poda das videiras ou contribuir na colheita das uvas. 

A professora Rosislene Fontana em uma de suas visitas à Casa Carnasciali (Foto/Arquivo pessoal)

A professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e doutora em Turismo e Hotelaria, Rosislene Fontana, conhece de perto essa história de sucesso e chama atenção para a diferença entre turismo rural e turismo no espaço rural, usando a Casa Carnasciali como exemplo. Ela enfatiza que toda atividade turística que não acontece dentro do espaço urbano pode ser considerada como turismo no espaço rural. Mas, quando falamos em turismo rural, estamos nos referindo a um termo bem mais específico. 

“Uma visita à Casa Carnasciali para compreender todo o processo de produção da uva, desde o plantio até a poda, representa o turismo rural. Ao usarmos esse termo, estamos nos referindo a uma prática turística que se realiza em propriedades ativas na produção agrícola, oferecendo uma experiência de imersão nas tarefas do sítio ou da fazenda. Por outro lado, quando não se mergulha na produção ou nas atividades correlatas da propriedade, isso se enquadra como turismo no espaço rural. Como exemplo, temos as festas de casamento, aniversários e outras comemorações que podem acontecer no ambiente rural”,  destaca a professora.

O turismo rural vai além do simples lazer e é muito diferente do turismo realizado no espaço urbano. Pessoas que buscam experiências desse tipo desejam se envolver na vida do campo, o que pode incluir participar da colheita em uma horta, auxiliar na ordenha de vacas ou contribuir no cuidado de peixes. Além disso, há oportunidades para explorar agroindústrias no espaço rural, como visitar fábricas de compotas, pães, queijos e embutidos.

Em uma das visitas que a professora Rosislene fez à Casa Carnasciali, ela teve a oportunidade de conhecer toda a propriedade de Rogério. Em um passeio até a beira do rio ela avistou uma plantação de milho numa propriedade vizinha. “Como você me diz que suas uvas são orgânicas e não usa defensivo, mas tem uma produção de milho aqui do lado”, perguntou ao viticultor3. Rogério respondeu que o vizinho também não usa agrotóxicos, uma vez que eles já conversaram sobre a importância de manterem uma produção saudável, o que impacta em toda a rede de produtores da região.

Hoje, Rogério e sua vinícola buscam mais do que apenas sucesso próprio, uma vez que a interação com os produtores vizinhos sempre foi uma prioridade. O Bistrô da vinícola, por exemplo, “busca insumos locais, fortalecendo a parceria com fornecedores da região e transformando a Serra de Apucarana em uma rota turística ampla, unindo outros empreendimentos atrativos para viajantes”, declarou o produtor. 

A mulher no turismo rural

Historicamente, os papéis de atuação no campo sempre foram bem demarcados entre atividades desenvolvidas por homens e por mulheres. Enquanto eles assumiram responsabilidades mais físicas, como arar, plantar e colher, às mulheres cabiam papéis considerados mais domésticos, como a produção de alimentos e o cuidado com a casa e filhos. 

A coordenadora do projeto ‘Empoderando Mulheres do Campo: capacitação para gestão e liderança em empreendimentos de turismo rural sustentável’, a professora da Universidade do Oeste do Paraná (Unioeste), Carla Maria Schmidt, fala que o projeto foi uma maneira que ela encontrou de tornar a mulher uma pessoa tão importante no meio rural quanto os representantes do mundo masculino. “Quando a gente pensa no agronegócio, que é a nossa vocação aqui na região oeste e em boa parte do Paraná, a mulher acaba tendo uma função secundária, e, muitas vezes, não consegue se encontrar para fazer a diferença”, observa Carla.

Essa divisão ultrapassada de trabalho está intimamente ligada à desigualdade de gênero e às estruturas patriarcais, nas quais o potencial das mulheres é frequentemente subestimado pelos homens. Enquanto isso, o turismo rural abre uma porta para o empoderamento e independência financeira de mulheres do campo, e o “Roteiro Circuito do Sol”, no município de Nova Aurora, interior do Paraná, é um excelente exemplo disso.

Essa famosa rota turística do “Circuito do Sol” é reconhecida como um ponto de destaque para o turismo rural do Estado, sendo composta por 16 propriedades que se unem para criar um itinerário repleto de cenários deslumbrantes com atividades de lazer e, principalmente, visitas às agroindústrias que produzem massas, salgados, doces, pães, frango e tilápia, carro chefe do município de Nova Aurora. 

A professora Rosislene Fontana, que participou de um estudo sobre as atividades desenvolvidas no “Circuito do Sol”, reconhece a importância do turismo rural no empoderamento e na independência financeira das mulheres. “A maior parte do turismo rural daquelas propriedades é tocada por mulheres e isso é muito legal, porque eram mulheres que ficavam só dentro de casa, enquanto o marido cuidava das coisas da propriedade. Até que elas passaram a ser responsáveis pela principal atividade, muitas vezes, ganhando mais do que os maridos”, diz Rosislene.

Já a professora Carla analisa que, ao contrário do que ocorre na maioria das relações do agronegócio, a mulher consegue ser protagonista de destaque no turismo rural, com suas habilidades essenciais como liderança e negociação. “Eu poderia até dizer que mais de 90% dos empreendimentos de turismo rural no oeste do Paraná são gerenciados por mulheres”, aponta ela.

Essa capacidade de transformar os âmbitos sociais, culturais e econômicos de um espaço, exemplificado pelo sucesso das mulheres do “Circuito do Sol”, mostra que o turismo rural tem potencial para impulsionar o desenvolvimento local em diversos e significativos aspectos, inclusive, no que diz respeito à sustentabilidade, o que amplia o impacto positivo e a capacidade de transformação gerados pelo turismo no espaço rural.

Sustentabilidade e cadeia produtiva 

O turismo rural sustentável não só impulsiona a economia local, mas também contribui para a preservação do meio ambiente, promove a cultura local e melhora a qualidade de vida das comunidades rurais, sendo um grande aliado na redução do êxodo rural4 e no estímulo ao consumo consciente. No entanto, essa atividade nem sempre é sustentável. 

Carla Schmidt citou um estudo orientado por ela que investigou os aspectos ambientais de empreendimentos localizados no “Roteiro Turismo Sustentável de Base Comunitária”, no oeste do Paraná. Com base nos resultados obtidos, a professora percebeu que empreendimentos de turismo rural, de modo geral, nem sempre estão no nível mais elevado de sustentabilidade ambiental possível, mas há sempre um grande cuidado e preocupação com a natureza. “Os empreendedores de turismo rural têm muita noção dessa importância, até porque eles sabem que o próprio recurso natural e ambiental é o que fortalece o negócio deles. Então, se eles não forem ambientalmente sustentáveis, isso pode ser um ‘tiro no pé'”, completa.

A professora Rosislene entende que esse aspecto de cadeia produtiva e de cooperação é mais um caminho de sustentabilidade. Ela lembra que “no caso do Rogério, ele tem uma propriedade que é muito produtiva. Não é simplesmente um restaurante no espaço rural, tem a produção dele naquele espaço. Ele tem essa visão de transformar a região e isso é de extrema relevância no turismo rural”. Indo além, ela aponta que essa cooperação regional pode ser crucial para a manutenção e a permanência de famílias no campo. Para tocar a Casa Carnasciali, Rogério se esforça para adquirir tudo que pode com os vizinhos, como verduras, por exemplo. Para Carla, cooperações como essas, informais ou por meio de associações, cooperativas e sindicatos são essenciais para o desenvolvimento da região.

Professora Carla Schmidt (Foto/Arquivo pessoal)

De fato, o turismo rural sustentável demanda um planejamento minucioso e consciente para evitar investimentos mal direcionados. Rosislene diz que esse é um assunto regular na disciplina de “Turismo Rural”, que ministra no programa de mestrado e doutorado em Desenvolvimento Rural Sustentável, na Unioeste. Para ela, é crucial entender que não basta apenas presumir o sucesso da implementação do turismo por conta da beleza do lugar: a realidade é muito mais complexa. “É preciso analisar tudo, a infraestrutura, o que ele tem de potencial, o que pode ser transformado realmente em um atrativo, porque potencial e atrativo são coisas diferentes. Às vezes, você precisa investir em infraestrutura para que você tenha realmente um atrativo”, ela explica.

O encanto do turismo rural reside, justamente, na diversidade de possibilidades que proporciona. Não é estritamente necessário receber hóspedes para participar da cadeia produtiva, por exemplo. Pode-se ser um fornecedor de produtos locais, ter um atrativo natural isolado ou oferecer atividades específicas em determinada área da propriedade, mesmo sem serviços de hospedagem. A integração com a região é essencial: um proprietário pode ter uma bela área de mata para atividades ao ar livre, enquanto os turistas se hospedam em outro local e visitam a propriedade apenas para essa atividade específica.

Passado, presente e futuro

Desde o início das primeiras atividades voltadas ao turismo rural na região sul do Brasil, entre os anos 80 e 90, o ramo passa por transformações notáveis, refletindo a busca crescente por experiências autênticas e a conexão com a natureza. No passado, era um nicho menos explorado, muitas vezes restrito a pequenas comunidades locais que recebiam turistas interessados na vida rural, com divulgação limitada. 

A professora Carla entende esse avanço das atividades turísticas no espaço rural nos últimos anos como um “despertar significativo para um novo nicho de mercado. Até cerca de uma década atrás, na região oeste do Paraná, nós ainda éramos bastante frágeis em termos de turismo rural. Tínhamos alguns empreendimentos, mas estávamos nos estágios iniciais, com poucas opções disponíveis. Hoje, o número é bem mais expressivo”. 

Carla ainda acredita que esse aumento no número de propriedades e maior qualidade nas atrações tenham sido muito impulsionados por conta da internet e da liderança de qualidade, muitas vezes, por mãos femininas. Esse, inclusive, é um ponto muito abordado no projeto ‘Empoderando Mulheres no Campo’. A professora destaca a importância do treinamento de marketing digital, uma vez que as plataformas on-line são ferramentas muito importantes, quando se pensa em turismo rural. “Isso porque uma pessoa não sai procurando de forma aleatória um empreendimento no campo, então ela busca nas redes sociais, o que faz toda diferença”. 

Com a ascensão da internet e da televisão, houve uma revolução na maneira como as propriedades rurais são divulgadas. Websites, redes sociais e programas de TV especializados tornaram-se vitrines poderosas, permitindo que proprietários apresentem suas fazendas, casas de campo e atividades gastronômicas e de lazer para um público ainda maior. Isso não apenas aumentou a visibilidade, mas, também, abriu portas para reservas on-line e interações diretas entre hóspedes e anfitriões.

Professora Rosislene Fontana (Foto/Arquivo pessoal)

A professora Rosislene enfatiza, ainda, o aumento da procura por turismo no espaço rural durante e após a pandemia. Segundo ela, por conta do distanciamento social, as pessoas passaram a procurar por atividades ao ar livre. No entanto, ela entende a necessidade de expandir horizontes. “Muito além de Cataratas e Itaipu, precisamos fazer um trabalho de reverter essa ideia para despertar o interesse das pessoas para o turismo também no espaço rural, mostrando a importância que ele tem para a questão da sustentabilidade”, alerta a professora.

Um desafio destacado pela professora Carla, consiste em demonstrar à sociedade regional e, futuramente, em âmbito nacional, que o Paraná tem potencial para se tornar uma referência de destaque no turismo rural. Para ela, empoderar os envolvidos e criar um grupo engajado é o primeiro passo para isso.

Sem dúvida, há lacunas na gestão, nas políticas públicas de fomento e legislação, que precisam de atenção. Estas dificuldades são comuns em vários setores, porém, no turismo rural, elas se tornam mais evidentes, dado que é um mercado ainda em desenvolvimento.

A professora Carla pensa que “promover iniciativas públicas para fomentar o turismo é importante, mas aguardar exclusivamente por intervenções do setor público não é o ideal. É fundamental que as pessoas, principalmente as mulheres, se empoderem, criem empreendimentos e os tornem visíveis digitalmente, para que sejam encontrados facilmente pelos interessados.

Até a obtenção de financiamento, que costuma ser uma barreira significativa para quem deseja investir no turismo rural, já vem registrando progressos. Por meio de parcerias com cooperativas de crédito, por exemplo, já foi possível obter linhas de crédito exclusivas para 25 mulheres envolvidas na atividade rural, que fazem parte do projeto coordenado por Carla.

Portanto, muitos desafios que rondam o turismo no ambiente rural estão em vias de superação ou vêm sendo encaminhados com sucesso. As professoras Carla e Rosislene apontam que as perspectivas são excelentes. E mais: há informação nas universidades para dar sustentação a esses empreendimentos que unem empreendedores, sonhadores e muito planejamento.

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Texto:
Guilherme de Souza Oliveira
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Glossário

  1. Provence – é uma região no sudeste da França que faz fronteira com a Itália e fica na costa do Mar Mediterrâneo. ↩︎
  2. Enoturismo – é uma experiência completa que combina a paixão pelo vinho com turismo, cultura, história e gastronomia. ↩︎
  3. Viticultor – é o profissional que supervisiona todas as etapas do processo de produção do vinho, desde o plantio das videiras até o envelhecimento, armazenamento e distribuição. ↩︎
  4. Êxodo rural – é o processo de migração de pessoas do campo para a cidade. ↩︎