Você conhece alguma ludoteca? Pois devia!

O nome já diz tudo, e muito mais, e o C² vai mostrar como este espaço repleto de ciência tem atraído à atenção de muita gente

Não sei você, mas eu tenho uma curiosidade quase doentia pela etimologia das palavras. Por isso, quando me deparo com uma palavra como ludoteca, eu já quero pesquisar e saber qual a raiz da língua, prefixos, sufixos e derivações.

Antes do Google, a gente usava o dicionário para esse tipo de pesquisa. Hoje com a internet e uma boa dose de curiosidade é possível descobrir novos saberes a poucos cliques de distância. 

A origem da palavra ludoteca vem do latim e é formada pelo prefixo ludus que significa ‘jogo, brincadeira, diversão’, mais o sufixo theca que compreende ‘estojo ou local para se conservar algo’. 

Assim, de acordo com a Wikipédia, temos que ludoteca “é um equipamento cultural de natureza pública ou privada, dedicada ao fornecimento de ambiente e um catálogo de jogos para utilização ou empréstimo”. 

A partir dessa informação, você já pode associar com as palavras que possuem esse sufixo como biblioteca (livros), discoteca (discos), filmoteca (filmes) e de cara já saber o seu significado.

Mas ludoteca não é simplesmente um espaço organizado por adultos para promover brincadeiras a crianças e adolescentes por um período de tempo. Isto porque, ainda segundo a Wikipédia, “o termo se confunde, principalmente em Portugal, com o que no Brasil é chamado de ‘brinquedoteca’, tal como acontece com jogos e brinquedos. No entanto, há quem utilize o termo brinquedoteca com uma finalidade mais relacionada ao brinquedo e ao serviço da infância, enquanto ludoteca se constituiria em um espaço mais plural, com ambientes temáticos e catálogos de jogos dedicados também a crianças ou mesmo especificamente a adultos”.

E é aqui que verificamos uma sutil diferença entre ludoteca e brinquedoteca, etimologicamente falando. E nas universidades estaduais do Paraná encontramos vários exemplos de programas de ensino e projetos de extensão que envolvem muita ciência e professores dedicados a criar  jogos e brinquedos inéditos, formar profissionais para atuarem com pessoas de diversas idades e promover oportunidades de desenvolvimento intelectual e social. 

Mas afinal, onde encontrar uma ludoteca próxima de você? Eu conto.

Porta aberta para o conhecimento

Na Universidade Estadual de Maringá-UEM, uma sala no departamento de Educação Física serve de base e oficina para os coordenadores da Ludoteca da UEM, que está aberta a alunos de graduação e pós e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. Inaugurada em 1995, atualmente a ludoteca comporta dois núcleos: projeto de ensino, pesquisas e construção de brinquedos e jogos críticos e outro direcionado a atividades de lazer e aventura. 

Rogério Massarotto Oliveira está na Ludoteca da UEM desde 1997 e atualmente é professor e coordenador de projetos com ênfase na área de brinquedos críticos, antes chamados de científicos. “O meu projeto de pesquisa tem por fundamento as ideias e concepções de Lev Vigotski onde sistematizo o ensino do jogo na Educação Física escolar. Nós definimos por chamar esse espaço de ludoteca porque a atividade lúdica está presente em todas as atividades para crianças de um ano até a terceira idade”. 

Rogério Massarotto de Oliveira coordena o núcleo de ensino e pesquisa em brinquedos críticos da Ludoteca da UEM (Foto/Bruna Mendonça) 

É só dar um Google que a gente descobre que Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934) foi um psicólogo bielo-russo, proponente da Psicologia histórico-cultural. Pensador importante em sua área e época, foi pioneiro no conceito de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais e condições de vida. Para ele, “o brinquedo é o mundo imaginário onde a criança pode realizar seus desejos e o brincar é essencial para o desenvolvimento cognitivo da criança, pois os processos de simbolização e de representação a levam ao pensamento abstrato”.

Ao orientar suas pesquisas e a concepção de brinquedos críticos com materiais alternativos e recicláveis a partir de um teórico reconhecido como Vigostky, o professor Rogério ressalta que “todo brinquedo ou jogo crítico tem um tema transversal e que objetiva a realidade de vida de quem usa, seja a criança ou adulto”. 

Por exemplo, quando um adulto joga futebol a competitividade existente no ser humano aflora e podemos ter caráter violento que necessita de um mediador, que no caso é um juiz para fazer valer as regras. “Isto significa que qualquer brinquedo ou jogo com um tema transversal (no caso do futebol é a competitividade e a violência) a criança está puxando algo do real para dentro do jogo”. 

No caso dos brinquedos críticos, os temas transversais funcionam como uma porta aberta ao conhecimento, além de estimular valores e normas que já estão no indivíduo, mas que somente no espaço, onde a atividade lúdica se realiza, podem ser observados como uma consequência para o aprendizado. “Nesta metodologia podemos trabalhar temas como racismo, patriarcado, machismo, consumo, sustentabilidade, questões de gênero e orientação sexual, sempre respeitando a idade de cada grupo e os objetivos das atividades”, reforça Rogério. 

E a atividade lúdica pode se manifestar durante uma oficina de pintura, música ou filme, numa roda de conversa, seja numa atividade interna ou externa, despertando sentimentos como competitividade, cooperação, afetos ou até emoções conflitantes. 

Lazer e aventura para a formação do humano

Enquanto um coletivo está focado na formação crítica e atividade lúdica com crianças, jovens e adultos da comunidade, outro núcleo dentro da Ludoteca da UEM é o Grupo de Estudos do Lazer (GEL) sob a coordenação do professor Giuliano Assis Pimentel. Entre as atividades estão escalada, skate, caça ao tesouro, slackline, parkour ou esporte de orientação onde mapa, bússola e postos de controle ajudam na realização dos objetivos da brincadeira.

O professor e pesquisador Giuliano Assis Pimentel é responsável pelo núcleo com práticas de aventura e lazer da Ludoteca da UEM (Foto/Bruna Mendonça) 

“A ideia central do GEL é ampliar o universo cultural das pessoas, criando oportunidades para o desenvolvimento de habilidades e competências dentro de uma dimensão coletiva”, afirma Giuliano. Neste contexto, crianças a partir de cinco anos aproveitam os desafios que se apresentam nos jogos e brincadeiras a partir da recreação educativa, reproduzindo no espaço do lúdico a realidade que as cercam. 

Giuliano usa a ópera como experiência lúdica para exemplificar como se dá o processo de formação do humano. “Não é todo mundo que é apreciador de ópera. Entendo que quem gosta teve oportunidades materiais, viveu a experiência e passou por um processo educativo para entender aquele tipo sofisticado de música”, reflete. 

O mesmo cenário de exclusão social se dá com a recreação de aventura. Uma pesquisa premiada em 2010 realizada pelo grupo coordenada pelo professor Giuliano apurou que num grupo de mulheres, negras, de baixa escolaridade e renda, maiores de 40 anos, já incorporou que atividade de aventura não é para elas. 

“Não é natural pensar desta forma, já que se você é homem, branco, alta renda e escolaridade, a estatística se inverte”, destaca. Assim, como educador físico, Giuliano incorporou a dimensão social a sua pesquisa e mudou seu enfoque. “Nosso objetivo é promover uma recreação educação criativa para meninas e meninos que, por procedimentos lúdicos, didáticos, atrativos, coloridos, inclusiva, respeitem a individualidade e desenvolvam a noção de coletivo”.

Espaço criativo e analógico

Outra experiência bem sucedida é a Ludoteca da UEL, localizada na Universidade Estadual de Londrina, também na região Norte do Paraná, onde desde 1989 funciona a unidade que serve de referência para outras instituições estaduais de ensino. Nestes anos são computados 26 mil atendimentos a crianças, envolvendo 14 professores, 350 estudantes, sendo que destes muitos seguiram carreira no próprio programa. Além da recreação educativa, é preciso ressaltar que as ludotecas também são espaços de pesquisa, ensino e formação acadêmica.

“A vitalidade da nossa Ludoteca se dá especialmente porque muitos estudantes da Educação, Pedagogia, Psicologia e outras que áreas do conhecimento, apresentam o TCC (Trabalho de Conclusão do Curso) e escolhem permanecer na atividade recreativa a partir dos jogos e brincadeiras que eles mesmos desenvolveram”, diz a professora Claudia Ximenez Alves, coordenadora durante 15 anos e que agora está deixando o cargo.

Especialista em Psicologia Educacional como pesquisa voltada para o cinema, Claudia enaltece que a ludoteca é um espaço para o ‘brincar livre’, mas não aleatório. “Todos os cantos têm um tema e uma finalidade educativa, há monitores bolsistas para conduzir os jogos e brincadeiras que podem acontecer no espaço interno ou externo”.

Claudia Ximenes Alves é pesquisadora em Psicologia Educacional e esteve na coordenação da Ludoteca da UEL por 15 anos (Foto/Arquivo pessoal)

Para ela, não há distinção entre ludoteca ou brinquedoteca, desde que haja o compromisso com o processo recreativo e educativo. “É preciso garantir que a criança terá liberdade para brincar e interagir da forma que ela quer, seja num teatro de fantoche, sessão de cinema, numa roda de conversa ou numa oficina de pintura”.

Tanto na UEM como na UEL, os brinquedos são inéditos, fabricados com materiais alternativos e não são emprestados. O uso é no local, sempre com orientação de um educador. “Aqui combinamos de não usarem celulares ou qualquer aparelho eletrônico. Tanto que as crianças já nem trazem aparelhos eletrônicos quando vêm à ludoteca”, reforça Claudia.

Então não será possível dar um Google enquanto brinca na ludoteca ou brinquedoteca? Não. E a justificativa é simples: a criança estará com a criatividade voltada para os desafios que os brinquedos e jogos lúdicos oferecem. Afinal, pense no quanto de ciência e esforço foram colocados em cada uma das atividades. Seria um desperdício, não é mesmo? 

Se você chegou até aqui na leitura, espero que tenha se dado conta que não importa o nome que se dê ao espaço para este ‘brincar livre’. O que vale é existir uma grande oportunidade para crianças de todas as idades conhecerem o poder da Ciência como ferramenta na Educação e também, em grande parte, na construção de uma sociedade onde todas e todos tenham oportunidade de se conhecer e conhecer outros mundos possíveis.

Então, vamos brincar?

Para saber mais, o C² preparou o podcast Ludoteca: porta aberta para o conhecimento, uma série onde trazemos novos aspectos acerca do tema.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Silvia Calciolari
Colaboração: Rodolfo Rorato Londero (UEL)
Revisão: Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: