2023: O Brasil sem anistia

Ao contrário das negociações de 1979, agora a sociedade se mobiliza para punir agentes de estado que cometeram violações aos Direitos Humanos

A terra não gira, capota!

Você com certeza já curtiu esse meme e entende o alcance do seu significado. Pois, acredite, estamos prestes a viver uma das maiores capotagens da história. 

Eu provo: no dia primeiro de janeiro de 2023, na posse para o terceiro mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, os presentes à solenidade gritavam a plenos pulmões “sem anistia” para os crimes atribuídos ao ex-presidente Jair Bolsonaro (2018-2022) e seus apoiadores, militares e civis. 

Uma semana depois, a questão ressurge com mais força após o ato golpista no 8 de janeiro quando milhares de apoiadores do capitão da reserva, derrotado nas urnas, invadiram a esplanada e promoveram uma quebradeira sem precedentes na sede dos três poderes, a saber: Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal (STF). Isto tudo depois de meses bloqueando as rodovias, acampando em frente aos quartéis pedindo intervenção militar, financiados por grupos empresariais com a total conivência dos agentes de segurança e Forças Armadas, que davam apoio e suporte ao ataque à Democracia. E mais: disseminando fake news, principalmente na pandemia, e patrocinando discurso de ódio nas redes sociais.

Após quatro anos à frente da presidência da República, Bolsonaro é acusado de deixar um rastro de destruição e morte que ainda machuca nossos corações, ataques aos poderes constituídos e uma legião de fanáticos apoiadores que ainda apostam na aventura fascista de um governo autoritário no Brasil. Antes dele, o golpe imposto a então presidenta Dilma Rousseff, em 2016, abriu a porteira para a necropolítica que quase levou o Brasil a nocaute, interna e externamente. Todos esses eventos ainda estão frescos em nossa memória e continuamos experimentando seus efeitos.

Parece um pesadelo sem fim, mas que não começou com a eleição de Bolsonaro apoiado pelos militares.

Passado indigesto e conectado

Regina Daefiol, doutoranda em História, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), tem se dedicado a pesquisar a atuação da imprensa na ditadura, mas também a relação dos eventos recentes dos atos terroristas bolsonaristas com o regime militar e o perdão “concedido” pela Lei de Anistia aos crimes cometidos pelos seus agentes.

 “A questão da anistia retorna de forma triste neste começo de 2023, quase como uma herança da impunidade do período militar e de um passado que insiste em não passar”, analisa a pesquisadora, que também é jornalista de formação. 

Para Regina, “a grande imprensa hegemônica nos conduziu a esse estado de violência, provando que as coisas do presente não acontecem desvinculadas do passado”.

Regina Daefiol

Claro que hoje, o cenário é diverso de 1979. Sabemos muito mais do que naquele período de censura e violência institucional. A internet também tem sido um espaço de resistência e desvelamento dos acontecimentos pretéritos e atuais, reforçando a necessidade de não repetirmos os mesmos erros. 

“A memória social da ditadura está distorcida, mas agora não podemos nem sonhar em anistia para os fascistas que atacaram a Democracia”, antevê Regina.

Sobre os crimes praticados em 8 de janeiro, a jornalista é taxativa ao afirmar que o erro do Brasil foi não ter revisto a Lei da Anistia, que no fim garantiu a impunidade e beneficiou as alas mais radicais do comando das Forças Armadas: “Metade da população brasileira se identifica com esse discurso autoritário perpetrado na caserna. Agora, temos que lidar com isso sob pena da Democracia ser atacada novamente”.

Militares no centro do poder

Para entender esse movimento #SemAnistia e #AnistiaNuncaMais é preciso voltar no tempo. Vou me valer do meu tempo vivido para mostrar que a memória da ditadura foi apagada por uma bem sucedida estratégia dos militares, personagens centrais nestes dois momentos da nossa trágica história política.

Nasci em 1964, pouco depois do golpe militar. Sempre que alguém pergunta minha idade faço referência ao início da ditadura por dois motivos: para que a pessoa sempre se lembre do ano que nasci e a minha idade, mas também para conferir se há alguma memória do regime militar e o desrespeito aos Direitos Humanos.

Quando eu era criança, lá em Umuarama, interior do Paraná, vivia totalmente alheia à ditadura e suas implicações para a dignidade daqueles que ousaram questionar, enfrentar e denunciar o golpe militar. Sem parentes envolvidos na resistência democrática, eu cantava o hino nacional com a mão no coração no hasteamento da bandeira e desfilava feliz no sete de setembro. Eu até era da fanfarra e cantarolava canções da época como ‘este é um país que vai prá frente… oh, oh, oh’, junto com alguns colegas no colégio das irmãs.

Adolescente, nem imaginava a existência do Ato Institucional nº 5 (AI-5) e outras determinações relacionadas, nem perseguições, prisões, sequestros, torturas, mortes e desaparecimentos forçados. Também nunca soube da Lei de Segurança Nacional (LSN) aplicada e definida como política de governo pelos militares, em nome de que muitos foram presos, perderam seus empregos, foram barbaramente torturados, assassinados ou tiveram a vida interrompida. 

Em 1979, jamais ouvi falar do movimento pela anistia, que possibilitou pela primeira vez que diversos setores da sociedade se organizassem para reivindicar, em plena ditadura, a soltura dos presos políticos e o retorno dos exilados ou expulsos do país. 

A ficha caiu quando, já nos últimos momentos da ditadura, quando estava na universidade, na capital paranaense, e um outro Brasil, se revelou para a menina do interior. Movimento pelas eleições diretas, primeira eleição para presidente da República, fim da ditadura e abertura “lenta e gradual”, davam a dimensão do desafio que seria restabelecer a ordem democrática e o estado de direito. 

Anistia para quem?

Até meados dos anos 90, ainda não conhecia a fundo os desdobramentos da Lei da Anistia, mas já me causava estranheza que até àquela época nenhum militar ou civil tivesse sido julgado ou condenado. Como é possível que torturadores ainda estivessem impunes? 

Lia que, na Argentina, dois anos após o fim da ditadura (1976-1983), eles já estavam julgando e condenando integrantes da junta militar pelo terrorismo de estado e crimes cometidos durante o período. O filme “Argentina, 1985” do diretor Santiafo Mitre fala justamente desse julgamento e foi candidato a melhor filme internacional no Oscar de 2023.

Eu conversava com militantes políticos e ouvia os seus relatos, uma espécie de memória resistente, cristalizada no desejo de termos um país melhor e com justiça social. Muitas memórias me marcaram não tanto pela violência e crueldades sofridas, mas pela coragem e resiliência para a luta política. Alguns saíram da prisão, outros voltaram do exílio e a maioria já tinha sido anistiada. Mas todos guardavam uma indignação: por que o Brasil nunca julgou e puniu os torturadores? 

É preciso ter em mente que a anistia de 1979 foi um movimento que surgiu na sociedade organizada, com um apoio relevante de setores progressistas da igreja católica, para colocar um fim nas prisões arbitrárias e torturas, além do retorno dos exilados. O objetivo maior era pacificar o país e esquecer as tensões entre militares e militantes para reestabelecer a convivência democrática.  

Havia a expectativa de punição dos algozes por parte dos militantes, mas nas negociações no Congresso Nacional para a provação da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, o que prevaleceu foi a vontade da maioria governista: seria concedida anistia “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes”, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores, dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e complementares. 

Portanto, a lei aprovada por 206 (Arena) a 201 votos contrários (MDB) se revelou uma farsa que promoveu uma auto anistia do Estado, deixando um passado de impunidade mal resolvido e que insiste em bater a nossa porta. 

 “Foi a anistia possível para aquele momento”, como ouvi várias vezes todos esses anos em que pesquisei no mestrado a ditadura no Paraná e a memória social da tortura (2004) e fui coautora do projeto que coletou depoimentos de 165 militantes da resistência democrática pela ONG paranaense Direitos Humanos para a Paz (DHPaz) em parceria com a Comissão da Anistia (2014). O acervo de depoimentos está no Youtube e compõe o relatório final da Comissão Estadual da Verdade Teresa Urban, publicado em 2017.

‘Partido Militar’

Para a cientista política e pioneira em estudos sobre justiça de transição, Glenda Mezarobba, com censura e crimes, “os militares foram muito bem sucedidos na narrativa que capturou corações e mentes desavisados ao impor a versão oficial de que o regime autoritário foi o melhor dos mundos, sem inflação (sic), corrupção (sic) e avanço do comunismo (sic)”. 

É tão verdade essa tese que muitos que viveram naquela época negam ou relativizam ainda hoje, as graves violações aos Direitos Humanos e à Democracia. 

Por isso, Glenda avalia que Bolsonaro, apesar do seu legado nefasto, com seu discurso beligerante e ufanista da ditadura rompe com essa mentalidade ao declarar em alto e bom som que houve, sim, violações. Da sua boca saíram frases que manifestam o orgulho e saudosismo, como “o erro da ditadura foi torturar e não matar” e “pela memória de Ustra, o pavor de Dilma Rousseff” , essa última proferida com ar de escárnio no Congresso Nacional na votação que sacramentou o impeachment sem crime.

Glenda Mezarroba

Paranaense com mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), Glenda fez parte da Comissão da Anistia e, hoje, é conselheira do Instituto Vladimir Herzog. Recentemente, publicou o artigo ‘A inolvidável Anistia’, que traz apontamentos sobre o paradoxo que o esforço de “pacificação”, cuidadosamente construído durante a ditadura militar, oferece à realidade brasileira pós-8 de janeiro de 2023.

Ao contrário de algumas correntes de pensamento que defendem a revogação, ou mesmo, a revisão da Lei da Anistia, Glenda entende que chegou a hora de testarmos a norma nos tribunais, o que nunca foi feito. 

Narrativas e jurisprudência internacionais confirmam que um Estado pode conceder anistia àqueles que violaram suas leis, mas nunca quando esses indivíduos agiram em nome do próprio Estado. Além do que, crimes que ferem os Direitos Humanos são imprescritíveis.

“O fato é que houve violações dos Direitos Humanos e houve extensão da anistia aos violadores na ditadura”, destaca Glenda, que questiona: “O que será dos crimes de Bolsonaro no 8 de janeiro?”. 

Mas vou adiante: o que será feito dos militares, principalmente do alto escalão das Forças Armadas, após participação ativa na condução de um governo escancaradamente militar em gênero, número e grau? Vão se retirar gradativamente do cenário político e propor o esquecimento como em 1979? Ou vão continuar a investir no ‘Partido Militar’, extrapolando suas atribuições constitucionais?

Tenho absoluta certeza que, desta vez, a história será diferente. 

E eu posso provar, de novo!

Responsabilização Já!

Carla Luciana Silva é professora de História, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus de Marechal Cândido Rondon, no Oeste do Estado. Como eu, Carla cresceu na ditadura e lembra que era comum na escola escolher fotografias do presidente da hora para compor trabalhos escolares. “Eram generais fardados e com a expressão sisuda e a gente nem se dava conta do que estava acontecendo”.

Também como eu, foi na universidade que Carla tomou conhecimento e aprofundou seus estudos sobre a ditadura. Em 2013, fez parte da audiência pública da Comissão Estadual da Verdade, Memória e Justiça do Paraná realizada, em Cascavel, para coletar depoimentos de vítimas do terrorismo de Estado. 

“Assim como no Paraná, as demais Comissões da Verdade nos estados concluíram, através dos depoimentos e recolhimento de documentos, que a tortura é uma característica do terrorismo do Estado brasileiro”, alerta a professora.

Carla Luciana Silva

Neste momento, Carla coordena a pesquisa “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: o caso Itaipu”, trabalho que faz parte do projeto “Responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, organizado pela Universidade Federal do São Paulo (Unifesp). No caso de Itaipu, as violações se referem, preferencialmente, aos trabalhadores, ribeirinhos e povo indígena Avá-Guarani.

A pesquisa, que segue sob sigilo, visa levantar informações, testemunhos e análises sobre a cumplicidade e a responsabilidade de empresas, nacionais ou estrangeiras, nas graves violações de direitos ocorridas durante a Ditadura (1964-1985). 

“A partir dos recursos obtidos pela indenização imposta à Volkswagen por apoiar tortura em seus fábricas, o Ministério Público Federal de São Paulo, junto com a Unifesp, propôs investigar 11 empresas brasileiras”, explica Carla. 

As organizações investigadas são: Cobrasma, Petrobras, Folha de S. Paulo, Companhia Docas, Josapar, Itaipu, Fiat, CSN, Aracruz e Paranapanema. Além dessas, fora do edital da Unifesp, há outra pesquisa em andamento que apura denúncias contra a Embraer. O relatório final será divulgado em maio deste ano, pelo Governo Federal.

Não chega a ser surpresa que uma obra como a Hidrelétrica Binacional de Itaipu, cantada em prosa e verso pelos militares como modelo de desenvolvimento do regime, esteja envolvida em violações dos Direitos Humanos dos trabalhadores e moradores da região impactados pela obra. 

Para mim, quando se trata de Itaipu, o que resta é uma profunda tristeza do fim das Sete Quedas do Rio Paraná, em Guaíra, atração turística que conheci e me encantava e desapareceu na construção da barragem da usina binacional. 

E acredite se quiser, ‘Salto de Sete Quedas, ou Salto del Guairá, reunia as maiores cachoeiras do mundo em volume de água com 13,3 mil m³/segundo, sendo o dobro de volume d’água das Cataratas do Niágara, na divisa EUA/Canadá, e treze vezes mais caudalosas que as Victoria Falls na Zâmbia’. Na época, não nos dávamos conta dessa importância. Mas, hoje, a Wikipédia está aí para nos ajudar.

Sou uma mulher de fé e creio que podemos estar prestes a entrar numa tempestade perfeita, um momento único, em que o passado e presente se encontram e são devidamente sintetizados numa nova ordem democrática.

Espero, sinceramente, que a terra redonda faça a sua parte e nos dê a oportunidade de reescrevermos a história, dessa vez, sem anistia a quem quer que seja, valendo-se apenas do rigor da lei. 

Não dá para esperar mais 59 anos para que Memória, Verdade e Justiça, finalmente, encontrem seu lugar na História.

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Texto: Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Milena Massako Ito
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: