A camisa amarela ladeira abaixo

Ensaio sobre a transformação do look canarinho no imaginário do brasileiro sob a visão da semiótica

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Há tempos as bolsistas vinham me cobrando para falar sobre o tema da semiótica aqui no C². Quando alguém sugeriu a pauta para discutir os símbolos que foram deslocados do imaginário brasileiro nos últimos anos, durante a semana da pátria, em setembro, não tive mais como escapar. Por que estava fugindo? Porque estes são assuntos complicados: a semiótica e o deslocamento simbólico de objetos que faziam parte tão profundamente da nossa cultura e de forma muito emocional.

Então, vamos lá. Vamos usar a semiótica para falar da situação em que foi colocada a nossa velha camiseta amarela. Sim escolhi um objeto específico para analisar. Além de jornalista, sou professora (nunca dizemos “fui professora ou professor”, porque nunca deixamos de ser). Sempre coloquei na primeira aula de comunicação e semiótica, que ministrei durante longos 12 anos, essa frase: a semiótica é uma ferramenta que nos auxilia a enxergar o mundo de forma mais lógica.

Às vezes, considerada ciência, às vezes, não, a semiótica nos habilita a perceber rastros, indicações que o mundo deixa e que explicam porque as coisas chegaram a um determinado modelo, formato. Quem quer entender as mensagens do mundo e se comunicar eficientemente, precisa ter noção de semiótica. Enfim, quem vive, porque uma mensagem é sempre muito mais que algo que se nos apresenta, é uma forma de interagirmos com o outro, com o mundo. E segundo a semiótica, fazemos isso produzindo signos. Esses signos são elementos cheios de significados que, na maior parte das vezes, estão mergulhados em pactos sociais. E é esse o objeto de estudo da semiótica, descobrir as origens dos signos… como eles se constroem ou como nós os construímos. 

Camisa amarela (Foto/Arquivo Pessoal)

Em outras palavras, a semiótica estuda a produção do sentido nas diversas linguagens que possibilitam a comunicação. Ela procura compreender porque escolhi cada palavra, cada vírgula, cada acontecimento da minha vida para tornar minha mensagem clara neste texto.

Lembro a você que a comunicação não é feita só de texto verbal, né? Para que haja verdadeiramente interação, vínculo entre as pessoas que se “falam”, que os estudiosos chamam de interlocutores, podemos lançar de muitas linguagens. A comunicação, então, permite nossa socialização. As linguagens são as mediadoras desse processo e a semiótica estuda as linguagens: a visual, a verbal, a audiovisual etc… 

Esta reportagem que escrevo de um jeitinho todo meu, é o signo que estou colocando no mundo para explicar para você, utilizando a semiótica, como os símbolos nacionais têm seu significado transformado pelos acontecimentos históricos. Uso palavras, imagens e muito mais.

Tipos de signos

Assim como notamos a existência de diferentes linguagens, há quem proponha o fato de haver diferentes tipos de signos. A maior parte dos semioticistas baseia suas análises levando em consideração os níveis mais básicos de signos, propostos por Charles Sanders Peirce. 

Os quali-signos, que são ícones das coisas que eles representam. A essas coisas representadas, Peirce chama de objetos. Esse tipo de signo nos sugere uma aproximação com esse objeto, um ícone do mundo da música ou do esporte é uma pessoa cujo bom desempenho nessa área é reconhecido amplamente. Outro exemplo são os ícones da tela do seu computador: emojis representam através de expressões faciais o “humor” do. A imagem se torna um espelho do “espírito” de quem está ali se “expressando”. Quer saber mais, leia essa matéria publicada pelo C².

Há, também, os sin-signos, que são índices dos objetos que representam, porque indicam por similaridade ou contiguidade o universo do qual seu objeto faz parte. Onde há fumaça há fogo, dizia a minha professora Irene Machado para falar dos índices em sala de aula. Os sintomas indicam doença; uma seta destaca uma determinada direção; uma pegada na areia é um índice de alguém que esteve lá; todo detetive procura os “índices” de um crime.

Mas o que são e como se constroem símbolos?

Dei spoiler, né? O terceiro tipo de signo mais elementar proposto por Peirce são os legi-signos, que são por natureza leis, convenções, pactos coletivos, construções culturais. São os chamados símbolos de seus objetos. Em outras palavras, na relação deles com o objeto trazem em si informações que lhe são atribuídas nas relações sociais, são pactuados.

Resumindo: símbolos são signos de convenção… de significado compartilhado por grupos. Lembra que adiantei lá em cima que signo é fundamento de toda a comunicação, que é por meio dele que nos expressamos?  Uma imagem de uma pomba branca não significa apenas o animal, mas pode ser um símbolo do conceito da paz. 

A camisa amarela da seleção brasileira entrou no cotidiano político do povo brasileiro. Na verdade, o look canarinho se tornou um símbolo do nosso país. Surgiu para substituir um uniforme branco com detalhes azuis, depois da derrota para o Uruguai do Brasil, na final da Copa de 1950, o famoso “Maracanazo”. Em 1952, o jornal “Correio da Manhã”, em parceria com a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que hoje é a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), criou um concurso para escolher um novo uniforme. O vencedor foi Aldyr Garcia Schlle, um gaúcho de 19 anos, que sugeriu um uniforme amarelo com detalhes verdes, seguindo a lógica da bandeira nacional. As vitórias subsequentes da seleção brasileira tornaram a camisa amarela um símbolo do nosso país no mundo inteiro.

Preciso dizer que, do alto dos meus 60 anos, o look canarinho sempre foi signo, porque era cheio de significado, de orgulho. Inclusive, marcou muito um momento importante da minha e da história do Brasil. Coisa que ultrapassou o cenário futebolístico.

Lá pelos idos de 1980. Minha mãe e minha irmã foram me visitar em Londres, onde eu estava morando, e levaram fitas cassete para ouvirmos músicas brasileiras em reprodutores de áudio, podemos dizer que eram os primeiros walkmans. Mas também no toca-fitas de um carro (o Larry) que compramos para uma viagem pela Europa. Entre as músicas que nos emocionavam naquele momento estava “Pelas Tabelas”, lançada no álbum Chico Buarque, que foi gravado em setembro de 1984. 

Parte da letra cita a amarelinha… “Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela. Eu achei que era ela puxando um cordão. Oito horas e danço de blusa amarela. Minha cabeça talvez faça as pazes assim. Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas. Eu pensei que era ela voltando pra…”  

Para quem tinha participado de comícios pelas Diretas Já, em 84, antes de ir pra Europa, aquela letra significava muito para mim. Havia visto um mar de pessoas, a maioria vestida de blusa amarela nas manifestações. As eleições diretas não chegaram, mas, em 1985, tomou posse o primeiro civil depois do período militar. Tancredo de Almeida Neves (PMDB-MG) foi escolhido pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, em eleição indireta. Porém, na véspera de tomar posse, em 14 de março, foi internado em estado grave, no Hospital de Base de Brasília, e morreu em 21 abril. José Sarney assumiu o cargo e recebeu a faixa presidencial. Era o primeiro sinal do retorno da democracia e era o que falava a canção do Chico.

Enfim, esse é o primeiro registro do uso político das camisas amarelas pela democracia, pelo povo, apesar do governo militar ter usado muito as cores verde e amarelo nas suas propagandas, o peso simbólico se deu nesta apropriação das manifestações pela volta do regime democrático no país. Isto é, a camisa da seleção canarinho passa a ter peso diferente para a nossa população como um todo, e Chico Buarque registra.

Ladeira abaixo

No entanto, a canarinho passa por um revés, depois de ser usada por manifestantes a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2015 e 2016. A camisa ganhou uma forte carga política, mas de separação, segregação. Ao se tornar emblema de certo pensamento político, foi rejeitada por aqueles que pensavam diferente e alguns brasileiros passaram a rejeitar usá-la e até buscaram alternativas para torcer durante a Copa 2018.

Isso se repete no torneio de 2022. Segundo uma pesquisa do instituto Travessia, 26% dos brasileiros “pegaram ranço” da camisa amarela da Seleção Brasileira. A consulta popular foi feita com exclusividade para o Metrópoles. Segundo os entrevistados, a t-shirt se transformou no “uniforme” dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), virou o traje das manifestações bolsonaristas antes mesmo do resultado das eleições. E mais: após o “8 de janeiro” a camisa da seleção brasileira passou a ser associada a atos antidemocráticos. 

O articulista da Folha de S.Paulo, José Carlos Souto, chega a publicar o seguinte manifesto: “a CBF faria bem se aposentasse a canarinho, porque, nos últimos quatro anos fomos nos acostumando a ver multidões de verde e amarelo pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e intervenção militar”. Enfim, a camisa amarela da música de Chico Buarque, ícone do retorno da democracia, passou a ser associada a obstruções de estradas, agressões e acampamentos golpistas. 

No 8 de janeiro, milhares de pessoas invadiram o Congresso Nacional “fardadas” com o uniforme da seleção brasileira. A camisa se torna, inquestionavelmente, associada a atos violentos, que ganham a chancela de “terrorismo golpista”. “Símbolos importam”, lembra Carlos Souto.

Por que falar disso tudo? 

Nos processos de produção de signos, especialmente aqueles que chamamos de símbolos, as interpretações dos signos se dão a partir das convenções sociais e culturais. A cultura é memória não-genética, um conjunto de informações que os grupos sociais acumulam e transmitem por meio de diferentes manifestações do processo da vida, como a religião, a arte, o direito (leis), formando um tecido, sobre o qual se estrutura o mecanismo das relações cotidianas.

As impressões que essas expressões culturais nos causam estão diretamente ligadas às transformações, aos rumos da história. A cultura “escreve” os significados utilizando os diferentes códigos disponíveis em sua memória, nossos objetos do cotidiano como a nossa camiseta amarela. Os textos que já possuem sentido para um grupo social, que fazem parte da memória deste grupo, vão sofrendo processos de reorganização a partir de encontros com fenômenos da história. Foi exatamente o que se deu com o look canarinho.

Os estímulos políticos foram mexendo nas tradições, conformando novos significados à uma peça de roupa que deixou de ser ligada ao esporte, à democracia para se tornar vinculada às manifestações antidemocráticas. Novas informações foram acrescidas, mudando o significado dela no cotidiano da nossa população.

A quem pertencem os símbolos nacionais?

Nas discussões entre amigos, a impressão é que esse processo de reposicionamento da camisa amarela como símbolo nacional não será facilmente revertido, porque o significado deste objeto [a camisa] já não é o mesmo para todos ou a maioria dos brasileiros. Como marca do bolsonarismo, houve um processo de esvaziamento desse sentido para a população como um todo, reconfigurando o espaço ocupado pelo look canarinho na nossa nação.

E isso mexe com várias instituições da nossa pátria. Com o futebol, elemento importante na construção das diversas identidades nacionais, visto que foi o primeiro esporte de massa com dimensão planetária. 

A semiosfera brasileira se reconformou; isto é, novas informações foram “acrescentadas” em seu ambiente sígnico. Sim, porque a semiosfera é considerada pela semiótica como um ambiente com elementos culturais significantes, que vão sendo “combinados” pelos acontecimentos e vão dar condições às representações novas. Como se fosse um corpo se adaptando às necessidades e aos estímulos do ambiente.

Todo espaço semiótico pode ser tomado como um mecanismo, senão organismo. Assim, a fundação não será este ou aquele tijolo que aparece, mas o ‘grande sistema’ denominado semiosfera, resultado de diferentes fatores sócio-históricos, dizia o grande nome da Semiótica da Cultura, Iuri Lótman.

Olhando o fenômeno da camisa amarela com as lentes de Lótman, pode-se compreender o processo social, entender que as mais diferentes informações que cercam um grupo incidem sobre ele e se traduzem para o suporte da realidade contemporânea, em diferentes aspectos da vida.

A camisa amarela passou de símbolo de orgulho nacional à lembrança de atos políticos condenáveis, a atos antidemocráticos e bloqueios de estrada. Houve uma refundação da relação da população que pode levar tempo para ser revertida, se um dia for.

A Copa do Mundo poderia até ter ajudado a sociedade brasileira a retomar, de forma mais ampla, o uso dos símbolos e das cores nacionais, mas isso não aconteceu. A CBF até tentou, em 2022, veiculando uma peça publicitária para promover a camiseta da Seleção, que usava o refrão da música “Tão bem”, de Lulu Santos: “Ela me faz tão bem, ela me faz tão bem, que eu também quero fazer isso por ela”. Mas não foi suficiente. 

Pior é que a camisa amarela perdeu prestígio não só no Brasil. Os europeus sempre tiveram atração pelo futebol brasileiro e usavam a canarinho, mas a apropriação dela por um grupo político colocou isso na berlinda e a amarelinha perdeu fama. Vamos esperar os próximos passos da história.

Os estudos da semiótica têm várias correntes. Uma delas é a semiótica da cultura. Descubra tudo o que você precisa saber para entender ela neste vídeo.

Glossário

Charles Sanders Peirce – Foi um filósofo, pedagogista, cientista, linguista e matemático americano. Seus trabalhos apresentam importantes contribuições à lógica, matemática, filosofia e, principalmente à semiótica e ao pragmatismo.

Contiguidadeaquilo que é adjacente, próximo, vizinho.

Walkmans – reprodutor de fitas-cassete portátil, munido de fones de ouvido, supostamente desenvolvido a pedido de um executivo da Sony, Masaru Ibuka, que queria ouvir seus discos preferidos nos longos voos intercontinentais a que era submetido.

Memória não-genética – memórias absorvidas pela nossa vivência cotidiana na cultura.

Iuri Lótman – Eminente semioticista e historiador cultural. Foi fundador da Escola Semiótica de Tartu-Moscou.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Ana Paula Machado Velho
Contribuição: Bruna Mendonça
Revisão: Tiago Franklin Lucena
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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