Cerveja e plantas medicinais… pode sim!

Tirando o conteúdo alcoólico, a cerveja é muito rica nutricionalmente e os pesquisadores estão buscando formas de aprimorar ainda mais essa característica e até atrair novos públicos

Aqueles que apreciam uma boa cerveja não dispensam a bebida nas festas, churrascos e no famoso happy hour, com certeza. A cerveja é um dos líquidos mais adorados em todo o mundo e, no Brasil, não é diferente. O país ocupa o terceiro lugar no ranking de consumo mundial. Fica apenas atrás da China e dos Estados Unidos, segundo dados do Euromonitor Internacional, que pesquisa mercados globais a fim de fornecer dados e análises sobre diferentes setores, como o cervejeiro.

Falando sobre o modo de consumo da bebida, você já percebeu que quando está bebendo cerveja ou chopp, que é uma cerveja não pasteurizada, a tendência é que você coma menos? Aqueles que não são adeptos ao consumo da bebida podem notar que, ao sair com os amigos que tomam cerveja, enquanto eles estão bebendo, acabam não comendo muito e, quando comem, se sentem satisfeitos muito rapidamente. Por que isso acontece?

A professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Paula Toshimi Matumoto-Pintro, é especialista em alimentos funcionais, que são alimentos ou ingredientes que oferecem benefícios para a saúde indo além de suas funções nutricionais básicas. Ela nos explica que, tirando o álcool presente na cerveja, substância que faz mal, a “loura gelada” é um líquido que pode contribuir com nossa saúde. Em termos de qualidade nutricional, ela é muito rica, por isso, traz a sensação de saciedade, fazendo as pessoas comerem menos ao tomá-la.

Mas aí você se pergunta: “cerveja e qualidade nutricional na mesma frase?” E nós te respondemos: “pois é”… E se a gente falar que a cerveja que nós conhecemos hoje começou quase como um medicamento? “Antigamente a cerveja era feita por monges, que cuidavam de pessoas doentes. Eles forneciam o líquido dos cereais fermentados aos “pacientes” por conta dos seus nutrientes e, assim, surgiu a cerveja. Por isso, a gente pode ver esse lado que faz bem para saúde”, explica a professora Paula. 

Pensando nesse viés, a docente do Departamento de Agronomia da UEM decidiu unir seus conhecimentos sobre os alimentos funcionais na produção de uma cerveja diferenciada, com mais ativos que possam fazer bem à saúde, produzindo, desse modo, uma bebida funcional. Ela e o aluno de mestrado, que atualmente está no doutorado, Anderson Lazzari, iniciaram as buscas para encontrar um ingrediente acessível que substituísse o amargor da cerveja. “No caso, quem traz o amargor na produção da cerveja é o lúpulo, mas, como na época que fizemos o projeto [2019], o lúpulo ainda estava começando a ser produzido no Brasil, era uma matéria-prima importada e, portanto, cara”, explica o aluno.

Assim, a dupla procurou por plantas que existiam no Brasil. “Nós começamos a trabalhar com Mastruz e Rubim, duas plantas medicinais, bem amargas, que eram utilizadas pelos antigos para tratar dor de estômago e má digestão. Quando eu vi essas plantas, quis fazer com elas e o Anderson topou”, conta a professora Paula. É daí que surge o projeto “Plantas medicinais como ingredientes na produção de cerveja artesanal”, trabalho de mestrado do Anderson.

O uso das plantas medicinais na produção da cerveja tem como objetivo aumentar ainda mais os antioxidantes e estabilizar esses elementos na fase final da produção. “Nós sabemos que quando você trabalha com cerveja e fermentação, mesmo em uma cerveja comum, ela possui antioxidantes. Essas substâncias servem para reduzir os radicais livres e diminuir a chances de doenças como o câncer. É importante enfatizar que os alimentos funcionais não curam, mas funcionam na prevenção de doenças, fazem bem para a saúde humana, auxiliando na qualidade de vida e no bem-estar das pessoas”, explica a professora.

Buscando a melhora nutricional da bebida, sem provocar grandes alterações no paladar, Paula Toshimi e Anderson Lazzari desenvolveram cervejas com o Mastruz e o Rubim em substituição ao lúpulo, de forma parcial e total, e avaliando os parâmetros físico-químicos do líquido.

“Nós obtivemos um produto com os parâmetros básicos da cerveja [pH, cor, teor alcoólico] semelhante ao padrão, bebidas com maior teor de compostos bioativos e maior atividade antioxidante, porém, não conseguimos quantificar o IBU [International Bitterness Units], que são as unidades de amargor da cerveja, quanto mais alto o número de IBU, mais amarga é a bebida. Por isso, fizemos a análise sensorial dos produtos, para comparar com a cerveja padrão, com lúpulo, se esse amargor seria perceptível pelas pessoas. Com essa análise, foi possível concluir que as cervejas com Mastruz se assemelham mais com a padrão, já a substituição total pelo Rubim foi a menos aceita e dada como mais amarga, mesmo não apresentando IBU”, conta o aluno.

Em resumo, a professora Paula destaca a importância da identificação de amargor, porque, na cerveja tradicional, são os alfa ácidos que dão essa característica à bebida. Porém, eles não estão presentes nas plantas medicinais. Mas é interessante notar que, no produto final, as pessoas conseguiram sentir o amargor e ainda achar parecido com a cerveja padrão, o que mostra que as plantas medicinais poderiam ser usadas como substitutas na produção da bebida, aumentando a qualidade nutricional dela. 

E não se iludam, porque a cerveja com plantas medicinais é só mais um dos produtos elaborados pela professora Paula com ingredientes ou aditivos que fazem bem para saúde. Ela atua há 20 anos em pesquisas e é fundadora do Grupo de Alimentos Funcionais da UEM (GPAF), criado em 2013. Quer saber mais sobre o assunto? Ouça o áudio abaixo:

Professora Paula Toshimi Matumoto-Pintro (Foto/Milena Massako Ito)
Profa. Paula fala sobre o GPAF

Rosemary: a cerveja universitária

Assim como a UEM, a Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), também tem pesquisa a produção de cerveja com o uso de uma planta medicinal. Prontos para conhecer a Rosemary?

A partir de uma pesquisa realizada na Unicentro, em Guarapuava, foi criada uma cerveja que pode ser consumida por diabéticos. E não, isso não é fake news! Mesmo com teor alcoólico, em função de sua composição, que conta com extrato de Baccharis dracunculifolia, mais conhecido como Alecrim Dourado ou Alecrim-do-campo, a bebida pode ser consumida por pessoas que sofrem de diabetes, uma vez que seus compostos auxiliam na redução do nível de açúcar (glicemia) e de gordura no sangue e, de quebra, levam à diminuição de danos nos rins e no fígado.

Baccharis dracunculifolia, também conhecido como Alecrim Dourado ou Alecrim-do-campo (Foto/Site: A planta da vez)

Rosemary, como foi batizada, pois sua tradução do inglês significa “alecrim”, foi desenvolvida no Laboratório de Biotecnologia e Ciências Biomédicas (Biomed), do campus do Centro de Desenvolvimento Educacional e Tecnológico de Guarapuava (Cedeteg). O responsável pela pesquisa é o professor e biomédico Carlos Ricardo Maneck Malfatti, que, ao longo de mais de cinco anos de pesquisa, buscou analisar o potencial de extratos de vegetais, presentes em plantas da região, identificando efeitos que evitassem problemas crônicos degenerativos como o diabetes.

“A partir dos estudos com o extrato da planta foram testados outros formatos para o consumo, como iogurte e refrigerante, mas foi a cerveja que mais atraiu a atenção de consumidores e potenciais investidores”, explica o professor. Segundo ele, o bioativo presente no extrato acrescentado à cerveja também previne o impacto da radiação solar. Isso quer dizer que a pesquisa inicial também incluía a possibilidade de desenvolver protetores solares. Mas a loura gelada venceu.

O professor Carlos Ricardo Maneck Malfatti (Foto/Arquivo pessoal)

A Rosemary é composta de água, malte, malte de trigo, lúpulo, levedura, cascas de limão e extrato de alecrim do campo. A witbier, fabricada e adaptada ao mercado pela Heimdall, tem em sua formulação alguns ingredientes a mais: muita pesquisa e inovação. Refrescante, com baixo teor alcoólico 4,3% ABV./Vol (Alcohol By Volume, medição da porcentagem de  álcool presente) e IBU 8, um amargor médio.

Alecrim dourado semeado, envasado e premiado

Hoje, a cerveja produzida pode ser adquirida na própria indústria ou consumida em alguns restaurantes selecionados, mas com a perspectiva de aumento na produção e canais de venda. A licença para produção e distribuição da Rosemary em larga escala envolve, além da Universidade, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná (IFPR), Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Unicentro (FAU) e a Cervejaria Heimdall, empresa cervejeira que atua principalmente no Centro-Sul do Paraná.

“Com a tecnologia desenvolvida a partir da pesquisa sendo transferida à empresa, a produção da cerveja que pode ser consumida por diabéticos se torna mais acessível e chegará mais facilmente aos consumidores que, com a Rosemary, poderão degustar, com moderação sempre, uma cerveja sem preocupação com os efeitos nocivos típicos das bebidas alcoólicas, proibidas aos diabéticos”, alerta o professor Malfatti.  

Em 2022, a Rosemary foi finalista da primeira edição do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual com Foco no Mercado (Prime), que tem o objetivo de  fomentar a inovação e a propriedade intelectual, qualificando professores, estudantes e pesquisadores das instituições de ensino superior e de pesquisas científicas e tecnológicas do Paraná, idealizado pela Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti).

E mais: a Cerveja Rosemary continua gerando pesquisa. O produto que sai da academia e vai para o mercado, retorna ao ambiente acadêmico para o desenvolvimento de novos estudos. O resultado é não só gerar valor agregado, mas o incentivo e fomento da pesquisa, uma vez que mais alunos da Universidade são estimulados a desenvolverem iniciações científicas, Trabalhos de Conclusão de Curso e outros projetos desenvolvidos nas instituições, inclusive nos programas de pós-graduação.

Para Carlos Malfatti, o licenciamento e comercialização da Rosemary é também uma forma de incentivo à ciência, uma vez que “quando o mercado comercializa os resultados de estudos acadêmicos, as instituições de ensino superior conquistam mais recursos para produzir novas tecnologias e inovações”. 

Um brinde à pesquisa, às cervejas produzidas com plantas medicinais e não se esqueça: beba com moderação e não dirija depois de uma Rosemary!

Glossário

Radicais livres: São moléculas liberadas pelo metabolismo do corpo com elétrons altamente instáveis e reativos, nesses processos podem surgir produtos tóxicos para a célula que podem dar origem a doenças. Os radicais livres só são considerados prejudiciais à saúde quando se encontram em excesso no organismo.

Compostos bioativos: São compostos presentes em pequenas quantidades nos alimentos e considerados extra nutricionais, eles não possuem funções essenciais como os nutrientes, que podem ser facilmente identificados. Porém, eles promovem benefícios à saúde.

Alfa ácidos: Composto químico, presente nas resinas do lúpulo, que é responsável pelo amargor da cerveja.

Witbier: É uma Ale, um tipo de cerveja à base de trigo, refrescante, elegante, saborosa, de moderada intensidade.

Quer conhecer mais plantas medicinais que podem trazer benefícios para a saúde humana? Acesse a nossa série de podcasts intitulada “Plantas Medicinais”.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Milena Massako Ito, Wilma Maria Vieira e Andressa Rickli
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Milena Massako Ito
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: