A arte da ciência (ou a ciência da arte)

O teatro fazendo sentido no universo da informação científica em um mundo cada vez mais “complexo”

O que a arte e a ciência têm em comum? Eu arrisco responder… tudo. Há pouco tempo estava lendo um artigo científico escrito por um pesquisador que se descreve como mestre e doutor em educação, gestão e difusão em Biociências, João Ricardo Aguiar da Silveira. Ele diz que ciência e arte, tecnologia e filosofia são fruto de raciocínio lógico, de criatividade, de desenvolvimento de técnicas e demandam capacidade de reflexão e abstração; isto é, de imaginação. Por isso, essas coisas todas, incluindo arte e ciência, fazem sentido estarem conectadas e isso ganha cada vez mais sentido diante de um mundo diariamente mais cheio de informação, mais “complexo”, como João coloca no texto.

Toda essa reflexão me lembrou o tempo em que fiz pós-doutorado e trabalhei com o coordenador de artes do C², o professor Tiago Lucena. É… o Conexão Ciência tem diretor de arte e núcleo de produção nesta área. Talvez por termos vivido os momentos que conto a seguir. Eu e Tiago estávamos na Universidade de Brasília e participamos de uma investigação do Laboratório de Pesquisa em Arte e TecnoCiência – Lart. Nosso objetivo era compreender como usar as interfaces, os produtos de comunicação para provocar mudanças de hábitos nas pessoas e torná-las mais saudáveis.

Resumindo, nas nossas investigações, vimos que usávamos os conceitos citados por Silveira (raciocínio lógico, criatividade, técnicas, capacidade de reflexão, imaginação) para desenvolver nossas chamadas “interfaces comunicacionais”; isto é, utilizávamos processos criativos… artísticos… e ficamos muito felizes em “provar” a relação entre arte, ciência, tecnologia, comunicação, enfim… arte e vida.

Essas ideias vêm nos acompanhando há anos… e ficamos extremamente empolgados quando nos deparamos com várias iniciativas similares às que pesquisamos nas Instituições de Ensino Estaduais de Superior do Paraná (IEES).

A primeira delas está na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). O nosso colega de C², o professor Nelson Silva Jr., nos alertou para o fato de que existe por lá um grupo de acadêmicos envolvido com teatro científico. A junção das artes cênicas e da ciência. O máximo, gente! Uma das responsáveis pela recém-formada trupe da ciência é a professorado Departamento de Química, da UEPG, Leila Inês Follmann Freire, que atua na formação de professores e ama a área de divulgação científica (Saiba mais sobre o que é divulgação científica nesta matéria do C²).

Nelson Silva Jr é Diretor da Pró-Reitoria De Extensão E Assuntos Culturais da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Foto/Arquivo Pessoal)
Leila Inês Follmann Freire, é Coordenadora do Departamento de Química, na Universidade Estadual de Ponta Grossa (Foto/Maysa Ribeiro)

Ela conta que sempre esteve envolvida com o teatro fora da universidade, porque é apaixonada pela produção, pela cenografia, pela técnica. Em 2019, foi convidada a fazer parte de um grupo de teatro de Ponta Grossa, o Flogisto, que já fazia peças para falar de ciência. O convite partiu de um ex-aluno.

“Me envolvi com esse grupo fora da universidade, embora tivessem dois egressos da UEPG conosco. Era um pessoal envolvido com a cena teatral de Ponta Grossa de forma geral que queria produzir peças que abordassem a ciência. Então, a gente fez, circulou, foi para eventos fora, participou de editais do município, lei de incentivo e tudo mais. Fiquei com esse grupo em 2019 e 2020. Inclusive, participamos do famoso Festival Nacional de Teatro [Fenata], de Ponta Grossa. Na categoria dos Campos Gerais, que é uma categoria local, mas tivemos que parar por conta da pandemia”, explicou a professora.

🎧 O professor Nelson Silva Jr explica o que é festival FENATA

Nessa pausa, Leila saiu para o pós-doutorado e foi pesquisar o teatro científico ou teatro de temática científica; isto é, a prática teatral que promove a divulgação e a alfabetização científica através das Artes Cênicas. Pode-se dizer que, neste gênero, a ciência é a fonte de inspiração para a criação de cenas ou peças, e ainda promove uma abordagem das ideias científicas, tratando de temas que envolvem a relação humana e científica.

Assim, quando voltou, em 2021, a professora produziu um espetáculo com o Flogisto para a mostra competitiva do Fenata. A peça foi escolhida pelo júri popular como a melhor do festival. O texto “A borboleta da colina” abordava os processos de transformação que acontecem com o ser humano.

“Especialmente a transformação da matéria. Quando a gente morre, o que acontece? Mas também falamos sobre os processos de transformações ao longo da vida. Tudo se passa em um jantar especial para convidados não desejados — e mostramos o que acontece com o nosso corpo, do que somos feitos, fisicamente, quimicamente falando. Ganhamos o prêmio de melhor peça e, com isso, despertou a vontade de termos um grupo aqui, na UEPG”.

Teatro científico na UEPG

Em 2022, então, surgiu o GTC, ou  seja, o Grupo de Teatro Científico da UEPG. Segundo a professora, este é um projeto de extensão que trabalha com o pessoal da comunidade, acadêmicos da graduação e da pós-graduação, além de outros professores parceiros: Josemar de Quadro Chagas, do Departamento de Matemática, e Nelson Silva Jr., das Artes Visuais. Este último, explica um pouco sobre o FENATA, o cenário do teatro em Ponta Grossa e na UEPG.

A primeira peça do GTC estreou em outubro de 2022. Chamada de Coração em “Chagas”. Fala da Doença de Chagas, da história do pesquisador Carlos Chagas e das relações humanas dele, além de abordar os desafios daqueles que fazem pesquisa hoje no nosso país.

“Mostramos como eram as pesquisas na época do Chagas, mas também como se dão hoje. Temos aqui na UEPG pesquisas sobre a Doença de Chagas de forma bem específica, então a gente trouxe desde o processo do conhecimento histórico contextual até o que se sabe sobre ela hoje. O que temos nos dias atuais quando falamos da Doença de Chagas no Brasil e em Ponta  Grossa? E ainda resgatamos a história que conta porque não trouxemos um prêmio Nobel para o Brasil apesar de tudo que foi feito por Carlos Chagas”, conta Leila. Abaixo, a professora dá mais detalhes sobre o Nobel que não veio e como isso se encaixa na produção apresentada pelo GTC.

🎧 A professora Leila Inês Follmann Freire e o Josemar Chagas, dramaturgo do grupo Flogisto, contam a história sobre a não vinda do prêmio Nobel para o brasileiro Carlos Chagas

Para a professora, o teatro consegue atingir o público mais misto possível, desde aquele que está na escola ao público cativo da cena teatral de Ponta Grossa. Segundo Leila, antes de ser um teatro que fala de ciência, as produções do GTC é teatro. Todos os elementos estão ali, envolvendo o espectador.

“Quando a gente fala da ciência divulgada, comunicada por meio do teatro, a gente vai do texto aos aspectos visuais, elementos de cenografia, de figurino e tudo mais… iluminação e sonoplastia. Não é uma coisa só que comunica. As sensações que as pessoas têm no teatro são muito diferentes de outras formas de comunicação. Diferem de você ler um texto de assistir alguma coisa que seja menos envolvente. O teatro tem uma característica própria que a gente diz que facilita a comunicação. A gente pode pensar isso em um momento que é a encenação”.

Segundo Leila, os roteiros “científicos”no Flogisto foram escritos por dramaturgos de Ponta Grossa. Já a peça do Chagas é um texto construído coletivamente, a partir de leituras, estudos e improvisações teatrais, realizadas por um grupo de pessoas que se dispôs a testar ideias para construir cenas e, a partir dessas cenas, elaborar a roteirização. Tudo ganhou um aspecto mais realista com a cenografia que, apesar de ter sido pensada em conjunto, teve o apoio da artista visual Rute Ayumi Onoda, que criou o mosquito-da-malária, o tripanosoma gigante, os barbeiros e o coração anatômico levemente aumentado que marca o palco da encenação.

🎧 Encenação do grupo Flogisto de uma parte da peça “Coração em Chagas”

“A gente não teve financiamento da universidade nesta edição de 2022. Montamos tudo com pedidos de doação. A cenografia e os adereços são do grupo, mas é sempre assim com o aporte de pessoas da ciência e de pessoas da arte. A Rute foi uma mestranda aqui no nosso Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática [PPGECEM]. Ela terminou o mestrado aqui e pesquisa a relação arte/ciência. O Renan, que foi cenógrafo, é egresso do nosso mestrado e faz doutorado na UEM”, explicou Leila, que é professora do PPGECEM e fez pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência e a Matemática (PCM), da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Arte no corpo e no papel

Segundo o professor Marcos César Danhoni Neves, professor do PCM,o trabalho de vários professores colocou o tema arte e ciência como área de pesquisa dentro de três programas de pós-graduação: no PCN-UEM, no PPGECEM-UEPG e no Programa de Pós-Graduação de Ensino de Ciência e Tecnologia (PPGECT), da UTFPR, de Ponta Grossa. São vários docentes orientando dissertações, teses e outros tipos de trabalhos.

“Tudo começou basicamente com uma questão que vem do Galileu, em uma discussão na época da comemoração dos 400 da invenção do telescópio. Não foi Galileu que inventou, mas foi ele que aperfeiçoou o equipamento e olhou para o céu. Então, a gente pode descobrir que ele viu o que viu porque tinha uma mente moldada pela arte. Ele foi aluno da Academia de Desenho, fundada por Michelangelo Manarote. Lá aprendeu a colocar no papel, que é um mundo bidimensional, o mundo tridimensional. Aprendeu as regras da perspectiva, tanto é que ele vai chamar o primeiro telescópio de Perpitilo, aparelho da perceptiva.  E aí ele olha para o céu e declara a ruína do mundo aristotélico. Mostra a lua cheia de imperfeições. Alerta para o fato de que aquela fumacinha que a gente via era a Via-Láctea, constituída de nebulosas de estrelas não discerníveis pela nossa vista desarmada. Vênus com fases como a lua. Viu ‘orelhas’ em Saturno que ele não soube distinguir na época que eram os anéis. Viu um mini sistema planetário que era Júpiter com os seus quatro planetinhas”, redesenha o Cosmos, resume Danhoni.

Esse movimento de redesenhar analisado pelo grupo de Marcos acabou se transformando em um estímulo de pensamento e ação de uma disciplina da graduação do curso de Artes Visuais da UEM e da pós-graduação. Desde 2011, Danhoni e a professora Josie Agatha Parrilha da Silva, hoje coordenadora do PPGECEM-UEPG, formaram uma rede ligando arte e ciência.

“A ideia é fazer com que aquela coisa que se fala muito e se faz pouco, que é a inter e a transdisciplinaridade, realmente se materialize. E ela tem se materializado em diferentes processos e produtos, ações educacionais de formação, mas também no teatro e um pouquinho na discussão sobre cinema. Uma das atividades é uma espécie de oficina para a criação de poéticas visuais. Recentemente, um grupo de alunos produziu imagens a partir da discussão e observação de dois filmes de ficção científica: ‘A Chegada’ e ‘Contatos imediatos do terceiro grau’. Essa é a disciplina de ‘Diálogos interdisciplinares, arte e ciência’, do Curso de Artes Visuais, que promove essa discussão muito importante entre arte e ciência”, explica Danhoni.

Para o professor, a linguagem do teatro científico“é potencialmente virtuosa”, mas está engatinhando ainda, precisa crescer e isso deve acontecer, apesar da referência dela ser muito antiga, do século XX, quando surgiu a peça Galileu. Ele lembra também do texto do século XXI, Einstein, que também vem sendo muito explorado. “O teatro envolve muita coisa interessante: não só personagens, roteiros, conteúdos, processos históricos, revolucionários, um monte de coisa. Então, é uma área totalmente aberta a esse mergulho”, aposta o professor.

Para coroar esse movimento, a professor Leila Freire nos dá uma ótima notícia: Ponta Grossa vai sediar o Festival de Teatro Científico, em 2023.O “Ciência em cena” é anual e itinerante. Sempre oscilou muito entre sudeste e nordeste. Esse ano vem para o sul entre 29 de outubro e 1 de novembro, logo antes do FENATA, que vai acontecer de 1 a 10 de novembro.

“Ano passado foi em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Em 2023, acontece aqui com apresentações de peças teatrais de grupos de todo o país, que abordam a ciência. Mas também haverá um evento acadêmico, de trabalhos de pesquisas, de mesas redondas, de oficinas, minicursos. É um evento científico e artístico ao mesmo tempo, que vai ter a participação das escolas e de toda a comunidade… tudo para fortalecer a divulgação da ciência”, explica a professora..

Leila anunciou que o GTC está produzindo uma peça nova, mas não adiantou o tema do espetáculo, que será divulgado em breve. Um passarinho contou que há a possibilidade de se falar das mulheres na ciência. A gente torce por aqui!

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Maysa Ribeiro
Arte: Natália Prado Cracco
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: