A ciência da natureza

Entre o uso medicinal e recreativo, a Cannabis provoca polêmicas e muitos elogios

A Cannabis sativa já foi um termo com um peso só na sociedade moderna e contemporânea. Conhecida popularmente como maconha, esta planta cultivada em boa parte do mundo vem dando o que falar, porque, atualmente, ganhou status de planta medicinal, o que criou um embate em relação ao espaço recreativo que ocupa hoje. O que se sabe, e os cientistas provam sistematicamente, é que esta espécie pode oferecer muito mais do que horas de um “barato”, por seus efeitos alucinógenos. 

A questão primordial é que ela se transformou em um tema de debate recorrente no nosso cotidiano, simplesmente porque a Academia enfrenta uma dificuldade enorme de estudar a Cannabis para fins benéficos. Um dos motivos é a legislação. Muitos países como o Brasil consideram a posse e uso recreativo ilegal, o que assenta a maconha em um cenário de desconfiança entre a população, que fica entre temer os males do uso recreativo e crer nos benefícios da utilização terapêutica.

Preconceito… sim. É como define a cientista Rúbia Maria Weffort de Oliveira, que coordena o Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas (PCF), da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná. Ela também está à frente do laboratório de Farmacologia do Sistema Nervoso Central, da Instituição, que participa do Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação Neurociência (Napi), financiado pela Fundação Araucária. Rúbia conta que a maconha é uma planta milenar. Existem imagens das ‘folhinhas’ da Cannabis desenhadas em registros pré-históricos. Em alguns deles, não se pode definir se a planta foi utilizada para fins medicinais ou não.

Cientista Rúbia Maria Weffort de Oliveira, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas (Foto/Maysa Ribeiro)

“Os primeiros registros médicos são de mais de dois mil anos. Relatos de utilização são para o alívio da dor. A história moderna começa no século passado, em torno de 1960, quando o pesquisador chamado Rafael Mechoulam identificou os princípios ativos que a planta teria. A partir daí, a pesquisa cresceu muito, em relação a princípios ativos e sobre o sistema endógeno [interno] que nós temos. O sistema endocanabinóide, é um sistema neurotransmissor de comunicação química do nosso corpo, que responde a canabinóides endógenos e àqueles provenientes da planta”, explica Rúbia Oliveira.

Avanço nas pesquisas

É importante dizer que os pesquisadores conseguiram identificar mais de 100 canabinóides presentes na Cannabis sativa. Dentre eles, os mais expressivos são o tetra-hidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), os quais são muito diferentes nas suas propriedades farmacológicas.

O THC tem propriedades psicodélicas, modificando a percepção e causando relaxamento e euforia, efeitos normalmente desejados para o uso recreativo, mas que também contribuem na diminuição da dor e no aumento de apetite de pacientes com diversas doenças. Já o CBD apresenta atividade anticonvulsivante e anti-inflamatória, além de inúmeras outras propriedades terapêuticas potenciais.

“Na década de 1980, os primeiros estudos que identificaram efeitos anticonvulsivantes do CBD foram realizados aqui no Brasil, por um professor chamado Elisaldo Carlini. E isso apareceu, novamente, nos últimos 10 anos. Outros fitocanabinóides estão sendo estudados, como o canabigerol, embora ainda não se tenha registros conclusivos. É interessante, porque não é só a maconha, mas toda planta tem um universo químico complexo e próprio, em que muitos dos seus componentes podem ter efeitos aditivos ou oponentes, que de alguma forma se completam”, destaca a professora.

Rúbia é formada pela UEM, localizada no norte do Paraná. Fez mestrado e doutorado na Faculdade de Medicina do Ribeirão Preto, um dos campi da Universidade de São Paulo (USP) e realizou pós-doutorado na Alemanha. Lembra que começou a trabalhar com CBD há 15 anos, como parte de um grupo de Ribeirão Preto, que é o mais forte aqui do Brasil nesta área. Estuda, principalmente, componentes isolados derivados da Cannabis, chamados de fitocanabinóides. A pesquisadora investiga os efeitos neuroprotetores do CBD na isquemia cerebral experimental, modelos que se assemelham ao Acidente Vascular Cerebral (AVC), em humanos.

Utilização

Já sabemos que o uso recreativo da maconha no Brasil é ilegal, mas o uso médico já é aprovado pelas agências reguladoras em diversos países para algumas condições médicas. De acordo com a professora, existem algumas situações em que se pode usar a maconha como um todo e não só fitocanabinóides isolados, como, por exemplo, no glaucoma, no câncer e na esclerose múltipla. A planta pode ser fumada, em forma de spray ou pode ser mascada, mas não no Brasil.

Já o uso do CBD no nosso país é aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) somente no caso de epilepsia refratária a tratamentos farmacológicos convencionais, embora esteja sendo usado off-label em diversas situações como, por exemplo: no autismo, na doença Alzheimer, para dor crônica e ansiedade.

Muitos dos efeitos do CBD vêm sendo comprovados por pesquisas laboratoriais. A doutoranda Maria Clara Splendor também se formou em Farmácia e fez mestrado na UEM, trabalhando com câncer de mama. No doutorado, encontrou a linha de pesquisa em isquemia cerebral e CBD. Atualmente, se divide entre o Laboratório de Isquemia Cerebral e Neuroproteção e as aulas de neurofarmacologia, na UNIFatecie, na cidade de Paranavaí, próxima a Maringá.

Splendor conta como os pesquisadores do laboratório conseguem enxergar os benefícios do CBD, especificamente. Basicamente, o processo se resume na produção de um AVC experimental em animais de laboratório. A doutoranda explica que, quando o paciente tem isquemia cerebral, fica com sequelas e a equipe do ‘lab’ consegue simular tudo isso em um ratinho.

“Vemos que o CBD deixa efeitos bem visíveis, melhorando as lesões e as sequelas. A gente chama de efeito neuroprotetor. Nós também testamos o CBD em modelos de Parkinson, em que o CBD também funcionou muito bem”, destacou Maria Clara, que trabalha ao lado do professor Humberto Milani, especializado em aspectos cognitivos após AVC, e outros alunos de mestrado, doutorado e iniciação científica.

Como essas substâncias agem no nosso corpo?

Segundo Maria Clara, o nosso organismo produz substâncias parecidas com o THC e o CBD. São neurotransmissores chamados endocanabinóides que se conectam a outros neurotransmissores com a ajuda de receptores presentes no nosso organismo, fazendo a regulação do sono, do apetite e da memória. Estes participam do equilíbrio do nosso corpo e da mente.

Para que você entenda melhor, Splendor foi mais longe. Ela deu nome aos ‘bois’. Os endocanabinóides são neurotransmissores que existem no nosso organismo e se ligam a receptores canabinóides, também presentes no nosso corpo.

“Por exemplo, seu corpo sentiu fome. Seu cérebro avisa. ‘Ó… fome!’ Aí, a gente tem neurotransmissores que vão entrando no cérebro e vão sendo liberados; isto é, algumas enzimas promovem uma reação e produzem substâncias como a anandamida e a 2AG, dois endocanabinóides. Esses dois neurotransmissores, então, vão se ligar aos receptores, que podem ser dois: CB1 ou CB2, e avisar nosso corpo que estamos famintos. Esse é o processo normal”, explicou Splendor.

Em outras palavras, para manter o equilíbrio do nosso corpo, precisamos contar com ‘doses’ de endocanabinóides para se conectarem a receptores envolvidos em diferentes funções básicas e mandarem as mensagens adequadas ao nosso corpo. O THC e CBD atuam sobre estes sistemas.

O problema é usar a maconha de maneira errada. Se o nosso organismo está funcionando bem e a gente manda mais substâncias para estimular estes receptores, THC ou CBD, o sistema vai ser sobrecarregado, causando o excesso de fome, característico da maconha, deixando a memória ruim, enfim, muitas funções ficam prejudicadas.

Futuro

No entanto, o uso adequado do CBD é muito promissor, se as pessoas souberem determinar a diferença entre o que é o uso recreativo e o uso medicinal. Para Maria Clara, há muito futuro, principalmente para o tratamento de doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer. São doenças em que o paciente tem problemas de memória, por exemplo. “Mas também vem se comprovando bons resultados no tratamento de outras patologias. Ele age bem como analgésico, aliviando a dor do paciente, como anti-inflamatório, diminuindo a ansiedade, nos sintomas da Esclerose Lateral Amiotrófica [ELA], do Transtorno do Espectro Autista [TEA], epilepsia e glaucoma, por exemplo”, acrescenta a doutoranda.

Doutoranda Maria Clara Splendor (Foto/Arquivo pessoal)

Oficialmente, porém, de acordo com Splendor, no Brasil a Anvisa liberou um medicamento, que é o Sativex, para esclerose múltipla. Fora do Brasil, aprovado pela agência reguladora americana, a FDA, já existem outros medicamentos liberados.

O problema maior para a massificação do uso da Cannabis de forma medicinal, segundo a pesquisadora, é a legislação, porque é difícil trabalhar com uma substância proibida. Maria Clara chama a atenção para o fato de que há muito perigo não só na manipulação para extração destas substâncias, mas na dosagem de utilização. “A diferença entre o veneno e o remédio é a dose. Além disso, é preciso garantir a qualidade do produto que se está ingerindo”, alertou a doutoranda.

De certa forma, a legalização das pesquisas e da comercialização de produtos à base de THC e CBD pode ser um caminho para garantir a qualidade e a prescrição corretas. O primeiro passo neste caminho, na concepção de Maria Clara, é as pessoas, principalmente os jovens, olharem para a maconha como medicinal.

“Hoje a maconha é a droga de abuso mais usada no mundo e não é essa a serventia dela. Se nós começarmos a valorizar o lado medicinal, conscientizar as pessoas, fazer como a gente fez no “Pint of Science”, levar para os bares, tentar conversar com as pessoas e tentar explicar todos os lados, principalmente, que as pessoas poderiam ganhar muito com a regulamentação”, destacou a professora.

Unindo forças

Apoio político e de diferentes áreas da Academia é o que não falta nesta empreitada. Integrantes do projeto Práxis Itinerante (@praxisitinerante), da Universidade Estadual de Londrina (UEL) estão colaborando com a formação de um banco de dados para reunir profissionais e pesquisadores interessados ou que participem de estudos relacionados ao uso terapêutico de plantas do gênero cannabis. 

O projeto de extensão, coordenado pelo professor Fábio Lanza, do Departamento de Ciências Sociais (CLCH), foi destaque em uma das reportagens do jornal ‘O Perobal’, de divulgação científica, da Universidade. O objetivo principal do grupo é realizar práticas de extensão universitária interdisciplinar em escolas públicas, que estejam inseridas em áreas de vulnerabilidade socioeconômica em Londrina e região, bem como, atender demandas emergentes de populações vulneráveis em parceria com órgãos públicos e organizações não governamentais.

Por isso, foi organizada uma ação para contribuir com a iniciativa do deputado estadual Goura (PDT), autor da Lei Pétala (Lei Estadual nº 21.364/2023), sancionada em março passado, que beneficia pacientes em tratamento de doenças e transtornos de saúde para terem acesso a medicamentos à base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC). 

A ideia é mapear quem participa do cenário de pesquisa e utilização da Cannabis medicinal. Há um formulário disponível para ser preenchido. Nele o público pode informar qual área a que pertence (Saúde, Direito, Comércio, Indústria, entre outras), qual especialidade na referida área e desde quando com CBD e THC, além de dados pessoais (telefone, endereço de e-mail e endereço profissional). 

Segundo o professor Lanza, em princípio, a proposta busca cadastrar estudantes e professores da UEL, porém, profissionais de áreas afins e não vinculados à Universidade também podem preencher o formulário. Segundo o docente, ao finalizar esse cadastro, a ideia é contribuir para a orientação de políticas públicas e posteriormente levar demandas a órgãos de fomento à pesquisa, como a Fundação Araucária, do Governo do Estado, por exemplo.

“Estamos vivenciando um debate nacional sobre o uso terapêutico da maconha e, junto com essa agenda, existe também a expansão do uso do óleo feito com a flor da planta. No Paraná, temos a iniciativa do Legislativo que agora começa a construção de um banco de dados estadual, que está sendo repassado a todas as universidades para poderem cadastrar profissionais”, definiu.

Segundo o professor, de posse destas informações a respeito das pessoas, profissionais e entidades que atuam na pesquisa e participam do debate sobre o uso medicinal da Cannabis, será possível definir políticas públicas claras para a área. “É um novo setor que se desenvolve”, considera o professor, apontando o uso terapêutico da maconha e o direcionamento de subprodutos para a área industrial.

Ele explica que na UEL existe um debate para a criação futura de um Centro de Estudos sobre Cannabis, que reuniria pesquisadores de várias áreas de estudos. “Mas tudo isso ainda é muito recente, está em processo, daí a proposição de um banco de dados estadual com foco neste novo setor econômico e social que está sendo organizado”, finalizou.

Passo a passo, espaços vão sendo conquistados para colocar os benefícios da utilização terapêutica da Cannabis à frente dos entraves legais que tentam manter inúmeros obstáculos para que ela possa ocupar um espaço de respeito na nossa sociedade. Que esse tempo chegue logo!

Glossário 

Psicodélicas: alteração da realidade, na percepção sensorial causadas, na maioria das vezes, por drogas psicodélicas que causam alucinações. 

Fitocanabinóides: substância presentes na planta Cannabis, que podem regular a plasticidade neuronal

Epilepsia refratária a tratamentos farmacológicos convencionais: termo usado para sinalizar que o uso convencional de medicamentos não está funcionando para o tratamento de epilepsia.

Off-label: refere ao uso de medicamentos de forma diferente do recomendado em bula, aprovado pela agência regulatória.

Pint of Science: é um evento que surgiu por meio de um experimento levando os pesquisadores para os pubs e restaurantes para um encontro com o público. O propósito era disseminar o conhecimento científico para a população, com um diálogo informal e aberto. Atualmente, em 2023, são realizadas em 26 países espalhados pelo mundo.

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Texto:  Ana Paula Machado Velho
Colaboração: Maysa Ribeiro Macedo e Bruna Mendonça
Revisão: Débora Sant’Ana
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: