A compreensão do presente vem com a análise do passado

A imagem mostra uma mão segurando um livro aberto, de onde emergem elementos visuais relacionados à escravidão e repressão no Brasil. Há fotos em preto e branco de pessoas escravizadas, um mapa com localizações marcadas, algemas, arame farpado, um cadeado e o ano "1854". As imagens e símbolos evocam memórias históricas de dor, controle e luta, sugerindo a importância de estudar e lembrar esse passado para compreender a realidade atual.
Projeto de pesquisa analisa a criminalidade e segurança pública no início do Paraná e reflete sobre semelhanças com os dias atuais

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Existe uma frase clássica sobre como devemos enxergar a história do mundo: “pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro”. Essa é uma constatação que Heródoto, conhecido por ser o Pai da História, teve há milhares de anos e que se mantém extremamente atual. Quando nos perguntamos “por que a sociedade se comporta dessa forma hoje em dia?”, “como a política chegou a essa roupagem nos dias de hoje?” ou mesmo “o que culminou na estrutura social que vivemos atualmente?”, vamos encontrar as respostas ao olhar para trás, nas raízes históricas.

E não há espaço melhor para isso do que nas aulas de história do colégio. Os professores vêm com a bagagem perfeita para que a gente aprenda a compreender, desde cedo, a trajetória do mundo. E foi com todo o conhecimento compartilhado pelo professor, mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), Fabio Lucas da Cruz, do Instituto Federal do Paraná (IFPR) de Campo Largo, que os alunos Vinícius Oliveira Franco e Erika Fracaro Jorge brilharam os olhos para a história do Paraná.

Junto com o professor, os alunos aprenderam sobre a formação do Estado e perceberam que muitas problemáticas atuais podiam ser explicadas com a análise da sociedade do século XIX. Por isso, eles desenvolveram o projeto de pesquisa “Criminalidade e políticas de segurança pública no Paraná oitocentista (1854-1898)”, vencedor do primeiro lugar na categoria “Ciências Humanas” na 13ª Feira de Inovação das Ciências e Engenharias (FIciências), que ocorreu em 2024, na cidade de Foz do Iguaçu e contou com a inscrição de mais de 400 trabalhos.

Um telão anuncia o 1º lugar para o projeto intitulado “Criminalidade e Políticas de Segurança Pública no Paraná Oitocentista (1854–1898)”. A imagem foi tirada durante a cerimônia de premiação do FIciências 2024, com vários jovens de camiseta azul sentados em frente ao palco.
Premiação do primeiro lugar na categoria “Ciências Humanas” na 13ª Feira de Inovação das Ciências e Engenharias (Foto/Arquivo pessoal)

A pesquisa abordou como a criminalidade se configurava no período de formação do Paraná, que se tornou Estado autônomo em 1853, bem como quais eram as políticas públicas aplicadas na época. Os alunos focaram em alguns marcadores sociais que moldava muito o sistema da época, ou seja, o racismo com negros – em especial, com o agravante da escravidão, que só foi abolida em 1888 –, a discriminação com indigenas, o machismo, bem como a segregação que ocorria com os chamados “alienados”, que eram as pessoas com doenças mentais. 

A partir desses marcadores, foi possível compreender a lógica aplicada na estrutura da sociedade da época, como a situação das cadeias e do encarceramento em massa, o sistema de polícia, os investimentos públicos, a formação das instituições públicas, o autoritarismo da época, além da força da elite paranaense. 

Mas como acessar informações de séculos passados de forma confiável?

Bom, os alunos utilizaram os jornais da época, além de relatórios oficiais do governo para basear os dados da pesquisa. “Os presidentes das províncias escreviam relatórios para prestar contas e informações para o Império. Eles abordaram vários temas, inclusive sobre a criminalidade e a segurança pública. E também analisamos os jornais da época para contrapor a visão governamental, porque haviam os jornais escritos pela população que eram a favor do governo, mas também haviam os que criticavam, dando uma visão diferente da mesma situação”, afirma  Vinícius.

Todas essas fontes estão disponíveis on-line, para quem quiser acessar. Os relatórios se encontram digitalizados no Acervo do Arquivo Público do Paraná e os jornais na Hemeroteca Digital Brasileira (BNDigital). Por lá, os alunos escolheram palavras-chave para fazer uma seleção dos periódicos necessários. 

“Os jornais favoráveis ao governo só introduziam o que estava nos relatórios, que nada mais eram do que uma defesa do presidente da província, o que seria hoje o governador do Estado. Então nos relatórios eles colocavam, por exemplo, ‘nós não temos culpa; não há cadeias suficientes; algumas pessoas são naturalmente tendentes à criminalidade; não há o que fazer’. Em contrapartida, outros jornais faziam críticas, mostrando um outro lado, que não era culpa da existência de criminosos,mas sim culpa da falta de intervenção do Estado”, explica o historiador Fabio.

Para ter uma compreensão melhor de toda essa dinâmica e entender a história como um processo, o professor também indicou importantes referências bibliográficas para os alunos. Referências essas que são úteis para todo mundo que queira compreender tanto a sociedade paranaense, como a sociedade em geral:

A imagem apresenta um painel gráfico ilustrado com o título “Referências Bibliográficas da Pesquisa”, referente ao projeto “Criminalidade e Políticas de Segurança Pública no Paraná Oitocentista”. O fundo é azul-acinzentado e, no topo, há uma prateleira de madeira com livros, pastas e uma planta decorativa. Linhas verticais descem da prateleira até as capas dos livros utilizados como referências no projeto, dispostas na parte inferior. Os livros destacados são: Minha História das Mulheres (Autora: Michelle Perrot; Capa: Mostra uma mulher de vestido antigo com um guarda-sol), Os Excluídos da História – Operários, mulheres e prisioneiros (Autora: Michelle Perrot; Capa: Fotografia de uma mulher trabalhando em uma fábrica com óculos de proteção), O Espetáculo das Raças – Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil, 1870-1930 (Autora: Lilia Moritz Schwarcz; Capa: Mostra imagens de arquivos fotográficos e antropométricos), Sobre o Autoritarismo Brasileiro (Autora: Lilia Moritz Schwarcz; Capa: Traz uma imagem de um estandarte com tecidos coloridos pendurados) e Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão (Autor: Michel Foucault; Capa: Fundo escuro com luz de uma grade iluminando o título em letras vermelhas e brancas). No canto inferior esquerdo, há os créditos da arte: © Conexão Ciência | Arte: Camila Lozeckyi.

Com toda essa análise e aprofundamento os alunos conseguiram compreender as diferenças gritantes de tratamento entre as pessoas na época e que refletem consequências até hoje. “Quem era de uma classe social alta, saía da cadeia sem nenhum esforço, às vezes até com ajuda da própria justiça. Enquanto pessoas negras e indígenas nem tinham direito a uma defesa, ou, se tinham, era envolvida em muita corrupção, dificultando uma defesa justa”, explica Vinicius. 

Os alunos também tiveram acesso ao tratamento diferenciado que era dado às mulheres, baseado em muito machismo e inserido em uma sociedade patriarcal. Os próprios jornais noticiavam casos de adultério praticado pelas esposas, afinal, era considerado um crime no período oitocentista. Já se os homens praticassem tal ato, muitas vezes a justiça o beneficiava, culpando a mulher por ter levado seu marido a agir de uma forma “criminosa”. Até mesmo nos casos em que os maridos matavam as esposas como vingança ao adultério, a justiça e a mídia ficavam ao seu lado, de acordo com os pesquisadores. 

E para fazer uma análise correta dos arquivos do período, é fundamental um olhar muito observador e questionador, pois uma leitura sem crítica pode levar a conclusões errôneas. “Os relatórios contavam com tabelas informando os crimes, a quantidade de vezes que ocorreram e quantas pessoas haviam sido presas. Mas, quando você analisa a situação das cadeias da época, as informações não batem, já que os relatórios informam uma pequena quantidade de pessoas presas ao mesmo tempo que havia superlotação nas cadeias”, explica Erika.

Erika e Vinicius em frente a painéis de apresentação científica. Ambos vestem camisetas azul-claro com o logo da feira “Ciências Jovem 2024” e crachás coloridos no pescoço. Eles estão sorrindo e parecem orgulhosos. Ao fundo, há pôsteres com textos acadêmicos afixados em painéis.
Erika e Vinicius durante a 13ª Feira de Inovação das Ciências e Engenharias (Foto/Arquivo pessoal)

Isso porque a população negra e indígena não era adicionada à soma dos relatórios, em mais uma forma de segregação, agora no sentido de excluírem sua existência da sociedade. Afinal, os negros eram vistos apenas como objetos e instrumentos de trabalho no período escravocata, bem como os indígenas eram sinônimo de selvageria e distanciamento de uma população civilizada, organizada e em desenvolvimento. Até mesmo os “alienados” eram mantidos no cárcere sem terem cometido crimes, apenas por estarem doentes e serem vistos como loucos. 

Tudo isso combinado à uma sociedade que ainda fazia justiça com as próprias mãos. Os fazendeiros buscavam vingança e a resolução de problemas sozinhos, porque o policiamento e a segurança pública ainda eram muito recentes em um Estado tão novo. O professor Fabio explica esse contexto:

🎙️Professor Fabio explica o início das políticas de segurança pública do Estado do Paraná

“Hoje em dia, os presídios ainda estão superlotados, assim como acontecia há séculos atrás. As políticas públicas são precárias e as cadeias não têm espaço ou políticas de reeducação e de reinserção na sociedade. Na Noruega, por exemplo, a cada 10 criminosos que entram nas penitenciárias, oito saem ressocializados, enquanto no Brasil, saem apenas dois, porque aqui existe uma cultura de segregação e de vingança. Tem aquela frase que muitas pessoas usam: ‘bandido bom é bandido morto’”, expõe Vinicius. 

Os pesquisadores compararam notícias da época com notícias atuais para buscar semelhanças ou diferenças entre os momentos. “Ainda há um autoritarismo da polícia muito grande. Um enorme preconceito com pessoas negras, indígenas e com doença mental, além de uma alta taxa de feminicídio. No Brasil, mais de 50% da população encarcerada é negra, por exemplo. Mas é importante analisar o dado paranaense sobre isso, porque é o único Estado brasileiro que isso não acontece. No período oitocentista houve a Lei do Branqueamento, em que mulheres negras eram obrigadas a casar com homens brancos para ‘higienizar’ a população, ou seja, diminuir a população negra e aumentar a população parda e branca em mais uma ação racista. Por isso, desde aquele período, até hoje, a maior parte da população encarcerada paranaense não é preta, mas com uma visão crítica entendemos o motivo disso”, explica Erika. 

O professor explica que, ainda que o cenário atual seja fruto de um enorme avanço legislativo, atuação de movimentos sociais e maiores políticas públicas, ainda há uma enorme dicotomia entre discurso e ativas ações. Na prática, os índices mostram que a reinserção social de pessoas que passaram pelo sistema prisional é super precária e que a população pobre e periférica ainda possui tratamento diferente e mais ferrenho em relação a punibilidade, sendo os maiores alvos do sistema de policiamento e de prisão.

“Vemos até hoje populações indígenas sendo assassinadas por fazendeiros que pensam que terras protegidas são deles, assistimos o racismo no noticiário e vemos na imprensa um discurso muito parecido com o século XIX, que é revoltante. Essas visões, estereótipos e preconceitos estão enraizados.  E a gente hoje, na educação, com um projeto de pesquisa como esse, conseguimos abordar o combate ao racismo, pensar sobre direitos e buscar a formação de cidadãos que sejam críticos e éticos, afinal, não se pode pensar segurança sem educação”, afirma o professor. 

E o reconhecimento de uma pesquisa séria e que transforma percepções e vidas veio com a premiação no FIciências. “Além de ir lá apresentar, que já dá uma sensação de muito orgulho, porque meu trabalho foi aprovado, ganhar o prêmio é a comprovação de que a pesquisa foi bem feita e chegou em resultados. É muito gratificante ser reconhecido depois de tanta pesquisa e dedicação”, afirma Vinicius.

Erika e Vinicius sorridentes atrás de uma bancada de exposição com o número 282, onde está exposto o projeto. Atrás deles, o pôster do projeto pode ser lido parcialmente. A mesa exibe documentos, anotações e o que parece ser um livro antigo, provavelmente relacionado à pesquisa. O ambiente é a feira de ciências FIciências.
Erika e Vinicius no estande de apresentação de sua pesquisa durante a 13ª Feira de Inovação das Ciências e Engenharias (Foto/Arquivo pessoal)

A FIciências ocorre anualmente e é considerada a maior feira científica do Paraná, e uma das mais relevantes da região trinacional, englobando Brasil, Paraguai e Argentina. A feira é o espaço perfeito para que ideias se transformem em soluções de impacto real, estimulando a iniciação científica, o pensamento investigativo e o protagonismo juvenil. Uma forma de aproximar crianças e adolescentes das áreas de Ciências Exatas, Ciências Humanas, Ciências da Saúde, Ciências Biológicas, Ciências Agrárias, Ciências Sociais Aplicadas e Engenharia de uma forma mais divertida, mas que ainda resulta em estudos transformadores e revolucionários.

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Texto:
Mariana Manieri Pires Cardoso
Revisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Mariana Manieri Pires Cardoso e Maysa Ribeiro
Arte: Camila Lozeckyi
Supervisão de arte: Lucas Higashi
Edição Digital: Guilherme Nascimento

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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