Uma revolução silenciosa ronda as universidades brasileiras.
Silenciosa em seu estilo, mas amorosa o suficiente para transformar corações e mentes na Academia.
Estamos falando do Parent in Science – PiS, que em tradução livre pode ser entendido como “Mães e Pais na Ciência”, movimento que surgiu intramuro na universidade para discutir a parentalidade na ciência e ganhou maior relevância após a Revista Nature premiar a iniciativa.
O PiS é uma iniciativa brasileira capitaneada por Fernanda Staniscuaski, cientista gaúcha de Erechim, mãe de três filhos e que, em 2016, já se angustiava com o ambiente hostil na universidade gerado a partir da opção pela maternidade, que impacta a vida tanto das mães, assim como dos pais, que são alunas ou docentes.
Sem apoio institucional e de seus pares, cientistas mulheres viam sua produtividade despencar a partir da licença-maternidade, muito em função da perda de bolsas de pesquisas, que obrigavam a interromper o trabalho ou, até mesmo, o descrédito em relação ao cumprimento de seus deveres e compromissos com a ciência.
No meio da pandemia, quando mães e pais cientistas estavam em home office, o movimento ganhou fôlego extra, aumentando sua representação com os chamados embaixadores nas principais instituições de ensino e pesquisa no país.
Assim como a cientista Fernanda, milhares de outras mulheres se identificaram com os percalços que atormentam aquelas que decidiram ser mães, ao mesmo tempo em que insistem em manter a carreira acadêmica.
Alguns torceram o nariz.
Afinal a pessoa quer ser cientista e mãe ao mesmo tempo? Impossível para alguns corações, mas para muitos outros uma alucinante viagem que é gerar e cuidar de outro ser.
Por essas e outras, o movimento tem por caraterística ser uma rede que acolhe, orienta e propõe políticas públicas para estimular as mulheres cientistas a continuarem no universo da ciência, driblando as adversidades a partir da nova realidade que deve e precisa ser considerada pela comunidade científica e pelas gestões universitárias.
A partir do tamanho engajamento ao Parent in Science que a primeira grande conquista do movimento aconteceu já em abril de 2021, quando o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – promoveu o que autoproclamou uma “evolução” no Currículo Lattes para permitir o registro dos períodos de licença-maternidade. O mesmo exemplo foi seguido pela plataforma Sucupira, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes.
Carolina
É com grande orgulho que a professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, no curso de Medicina, Carolina Panis, se apresenta como embaixadora na Região Sul do Parent in Science e mãe de dois filhos no “produtivo” Lattes da pesquisadora. Carolina, que desenvolve projetos de oncologia translacional e doenças inflamatórias crônicas, com foco em câncer de mama e fatores de risco genéticos e ambientais associados, não contempla os obstáculos que superou em sua jornada.
“Existe uma grande dificuldade de ser mulher num sistema masculino, onde o desejo de ser mãe nem sempre é compreendido ou respeitado”, afirma. Grávida do primeiro filho ainda no mestrado, foram muitas as oportunidades que perdeu em termos de projetos e bolsas pela condição considerada “excepcional” para a Academia. Mesmo diante das negativas, seguiu sua vocação e, ao chegar ao doutorado, encontrou, finalmente, acolhimento e respeito por sua decisão.
“Na época do meu pós-doc, no Instituto Nacional do Câncer, em São Paulo, em 2006, percebi que muitas pesquisadoras, mães como eu, passavam os mesmos perrengues com os cuidados maternais”, relembra. Tudo porque cientistas mães não eram bem-vindas nos laboratórios, especialmente as mães separadas ou solos que enfrentam, até hoje, maiores dificuldades.
Ainda tendo que lidar com a mentalidade de que ser mãe significa para muitos colegas “um tempo perdido para a pesquisa ou mesmo queda acentuada na produção acadêmica”, Carolina também enfrentava um drama familiar. Em 2016, seu filho foi diagnosticado com um linfoma, o que a afastou por meses do trabalho para acompanhar o tratamento. “Mesmo sendo uma pesquisadora que trabalha com câncer, com especialidade em quimioterapia, eu fiz a opção de ser a mãe dele. Claro que a cientista estava presente e pude fazer algumas interferências, mas na maior parte do tempo eu fiquei ao lado somente cuidando do meu filho”, relata.
Ao retomar a docência, após vencer a fase mais aguda da doença do filho, Carolina mergulhou no trabalho, mesmo estando grávida do segundo rebento. Resiliente, ela não desistiu de seu projeto de pesquisa, iniciado em 2014, envolvendo a incidência de câncer de mama em mulheres agricultoras do Sudoeste do Paraná, a partir do uso de agrotóxicos.
Mesmo envolvida em seus inúmeros projetos de pesquisa, Carolina encontrou tempo e escreveu um depoimento para o livro “Maternidades Plurais” (2021) em que mulheres cientistas contam suas experiências no isolamento imposto pela pandemia. Ela e a família estavam em Boston, nos Estados Unidos, período em que dedicava à pesquisa e à maternidade.
“Foi nessa época que me aproximei do Parent in Science e, hoje, como embaixadora, procuro dar o meu melhor para que outras mulheres, docentes e alunas, da graduação à pós, não enfrentem as dificuldades que passei para ser mãe e seguir na carreira”, ressalta.
A perseverança de Carolina está dando frutos, tanto para a carreira como para a maternidade. Em outubro de 2021, ela foi vencedora na categoria Pesquisadora, na área das Ciências Biológicas, na 34ª edição do Prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia. O prêmio é o reconhecimento pelo trabalho que tem o apoio da Fundação Araucária, através dos Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação – NAPI Genômica, Saúde Humana e Vigilância Ambiental.
Roberta
“Nosso objetivo é fazer a mulher entender o que significa ser mulher na ciência”.
A proposta é ousada, mas para a psicóloga formada pela Universidade Estadual de Maringá – UEM e hoje professora adjunta na Universidade Estadual de Londrina – UEL, Roberta Ekuni de Souza, não podemos pensar pequeno. “O Brasil precisa evoluir muito no acolhimento e respeito às mulheres cientistas mães, assim como também em políticas públicas”, avalia.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a maternidade é encarada com muito mais empatia pelas autoridades educacionais e legisladores. Medidas relativamente simples como espaço para crianças em eventos acadêmicos e congressos ou mesmo auxílio financeiro para contratação de babás para cuidar dos filhos têm aumentado a participação e a produtividade das pesquisadoras.
Por aqui, ainda há uma cegueira dos gestores em relação à maternidade, mas com o Parent in Science esse cenário tende a se transformar em prol das mães e pais cientistas. Em algumas instituições já há locais apropriados para aleitamento, trocadores e até auxílio financeiro para creches. Mas ainda há muito a ser conquistado.“Fiz contato com o Parent para auxiliar uma aluna que iria perder a bolsa em plena licença-maternidade. Deu certo e conseguimos garantir a permanência dela no projeto”, conta Roberta. Aliás, ela mesma se valeu do apoio e assessoria jurídica do movimento para garantir redução de carga horária em função do filho que pertence ao espectro autista.
“Não queremos privilégios, nem concessões. Desejamos compreensão, respeito, regras menos engessadas e a possibilidade de ser uma aluna-mãe, professora-mãe”, desabafa Roberta.Atualmente envolvida em projetos de estudos da memória e na ciência da aprendizagem, que podem ser conferidos no seu Lattes junto com o período da licença-maternidade, Roberta é editora da coleção “Caçadores de Neuromitos” e coordena o “Grupo de Estudos em Neurociência”, na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, com várias ações de divulgação científica.
“Eu não me arrependo de ter optado pela carreira e pela maternidade, porque sei que dou conta de ser mãe e cientista. E com o PiS eu tive mais coragem para lutar por todas, em honra àquelas mulheres que chegaram antes de nós”, reafirma.
Grasiele
E a cada pessoa com quem se conversa sobre o Parent in Science parece que uma “revolução” está mesmo acontecendo diante dos nossos olhos.
Grasiele Scaramal Madrona é um exemplo de que corações e mentes estão sendo cooptados para uma nova mentalidade que é de respeito absoluto a quem quer ser mãe, ou não. “Eu mesma nem pensava na maternidade até o pós-doutorado e faço um mea culpa por não entender, à época, quem seguia por esse caminho”, lembra. Somente quando foi mãe pela primeira vez que Graziele se deu conta que aqueles que subestimavam a maternidade estavam na contramão da história.
Ainda há mulheres que expressam o desejo de escrever um livro na licença-maternidade. Quem nunca, né? “Só quem passa por isso entende as dificuldades e a importância do acolhimento”, avalia.
Mas ao contrário do pensamento corrente de que a maternidade seria um sacrifício pessoal e para a carreira, a engenheira de alimentos pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG e professora do Departamento de Engenharia de Alimentos da UEM, Grasiele transcendeu a outro patamar: “Descobri o Parent in Science e abri minha mente para ajudar outras mulheres”.
Para efetivar essa revolução nas universidades, o PiS desenvolve várias ações para diminuir o impacto da maternidade na produção acadêmica, que vai até os quatro anos da criança. Falando nisso, Grasiele diz que ainda enfrenta dificuldades, já que o filho tem cinco anos e a caçula está com dois.
Com experiência na área de desenvolvimento de novos produtos envolvendo Ciência e Tecnologia de Alimentos, com ênfase em tecnologia de produtos de origem animal como leite e derivados e queijos artesanais, a engenheira Grasiele não esmorece. “Na pandemia, foi insano, mas o amor pela ciência e pela família nos dá força para perseverar, junto com uma rede de apoio”, completa.
Por essas e outras, o Programa Amanhã, do PiS, nasceu para amenizar os impactos financeiros de milhares de mães alunas na pandemia com o objetivo de diminuir as chances de ser mais um fator a contribuir para a evasão de estudantes dos cursos de pós-graduação. Uma pesquisa realizada pelo movimento apurou que a maioria não conseguiu dar continuidade ao desenvolvimento de suas teses e dissertações. Os números foram terrivelmente chocantes para as mães negras: menos de 10% avançavam com suas teses e dissertações durante o período de isolamento social no Brasil.
Outra iniciativa para apresentar e discutir a questão da parentalidade surgiu na Universidade Federal Fluminense – UFF que, inspirada no Parent in Science produziu um manual com as questões que envolvem o movimento para orientar as mulheres e homens cientistas de todo o Brasil. Para saber mais, basta acessar a publicação aqui.
Embora haja tanto estigma e obstáculos, o Brasil é o país ibero-americano com a maior porcentagem de artigos científicos assinados por mulheres, seja como autora principal ou como co-autora, de acordo com a Organização dos Estados Ibero-americanos – OEI. Entre 2014 e 2017, o Brasil publicou cerca de 53,3 mil artigos, dos quais 72% são assinados por pesquisadoras mulheres.
Imaginem o que essas mulheres maravilhosas não seriam capazes com apoio e respeito da comunidade científica e da sociedade?
Nem precisa imaginar. Só embarcar nessa luta. Elas já estão prontas e organizadas para fazer a sua própria revolução.
Então, lá vai:
Mulheres cientistas, uni-vos!
Para conhecer mais sobre o movimento e as mulheres que entrevistamos basta acessar o podcast Parent in Science.
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Texto: Silvia Calciolari
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Mariana dos Santos Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: