A moda é uma invenção moderna. A Era Moderna foi marcada por enormes transformações. As grandes navegações resultaram na conquista de muitas riquezas por parte das classes nobres e dos burgueses europeus, criando uma organização social e estabelecendo, mais tarde, o capitalismo. No mundo mercantil e da produção industrial, o consumo vai ser a base da nossa vida em sociedade. O combustível desse cenário moderno da nossa civilização é um movimento que criar ciclos de vida para os produtos, sugerindo que sejam sempre substituídos por novos. Esse movimento ganhou o nome de moda, a eterna busca pelo novo.
Isso fica bem claro na indústria do vestuário. Até hoje, para a gente estar na moda tem que possuir o último lançamento de macacão, jaqueta, calça… e não para por aí, queremos trocar de celular, de carro, de óculos…
Porém, vivemos em um momento bem diferente da Era Moderna, quando havia matéria-prima em abundância na Terra. Aliás, foi naquele momento que começamos a utilizar de forma descontrolada os recursos naturais, fazendo com que, hoje, em agosto de 2021, um alerta seja divulgado de forma urgente sobre a necessidade de cuidarmos melhor do planeta e dos recursos que ele nos oferece.
Segundo a RadioAgência Nacional, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas mostra que a emissão de gases na atmosfera, causada por inúmeras atividades humanas, vem elevando a temperatura do planeta causando danos que já são irreversíveis, ou seja, não podem mais ser “consertados”. Em outras palavras, as emissões precisam ser reduzidas drasticamente e sabe-se que a indústria da moda tem um papel muito efetivo neste cenário. Segundo o professor Ronaldo Salvador Vasques, do Departamento de Moda, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), ela é a indústria que mais polui o meio ambiente depois do setor do petróleo.
Pensando nisso, o professor e estudantes ligados ao Grupo de Pesquisa em História, Moda e Têxtil – Gemotex, do Câmpus Regional de Cianorte, da UEM, no Paraná, criaram uma ação para caracterizar e catalogar materiais para a confecção de produtos que estejam de acordo com as necessidades do mundo atual: insumos sustentáveis. Para isso, foi criada uma Tecidoteca. Sim, uma “biblioteca” de tecidos, como explica o professor Ronaldo.
De acordo com a equipe do Gemotex, existe uma produção bibliográfica considerável sobre as coleções dos têxteis usados ao longo dos tempos, mas ainda há a necessidade da descrição destes produtos com detalhes das suas características. Neste contexto, os pesquisadores estão focando suas investigações em produtos sustentáveis. O objetivo é oferecer o maior número de informações para que profissionais e cientistas de todas as áreas possam ter dados de maneira acessível e utilizá-los em pesquisas e no desenvolvimento de novos produtos condizentes com as necessidades do nosso planeta.
“Com a crescente produção e consumo de peças de moda, os danos ao meio ambiente aumentaram e questões como a sustentabilidade vêm sendo amplamente discutidas, fazendo com que os profissionais da área se preocupem em encontrar alternativas capazes de diminuir os prejuízos ao ambiente e a nós, pessoas inseridas nele. A ideia é contribuir para o desenvolvimento econômico e social voltado ao cunho sustentável. Isto é, usando materiais que são produzidos de forma natural, existam em abundância e podem ser cultivados no nosso entorno, entre outras características. Nossas pesquisas testam diferentes tecidos e produtos. Fazemos dezenas de testes, anotamos tudo e criamos um catálogo. Elaboramos, na verdade, uma ficha técnica que registra as particularidades de cada um, detalhadamente”, explica Vasques.
Novas contribuições
As últimas pesquisas do Gemotex estão baseadas em dois produtos vegetais, que foram caracterizados por meio de projetos de iniciação científica, orientados pelo professor Ronaldo, utilizando os laboratórios têxteis da UEM e da Tecidoteca: “Desenvolvimento de acessórios voltados para o vestuário utilizando como matéria-prima o couro de kombucha” e “Urtiga: desenvolvimento de produto para o vestuário por meio da utilização da fibra com cunho sustentável”.
O primeiro trabalho teve o objetivo apresentar a viabilidade da produção de acessórios (cintos, brincos, colares, carteiras) utilizando como matéria-prima a celulose de kombucha, uma bebida originária da China. Esse material é obtido a partir da fermentação de chá verde ou preto com grandes quantidades de açúcar e de uma associação de bactérias. A reação simbiótica (definição no fim do texto) forma uma espécie de fungo na superfície da mistura, conhecido como scooby. É este material que ganha textura e aparência semelhante ao couro. “Tudo acontece por meio de reações orgânicas, de forma sustentável e biodegradável, o que classifica o produto como uma alternativa vantajosa para o meio ambiente”, acrescenta Vasques.
O processo acima não é uma descoberta do Gemotex, a ideia de trabalhar com o material na UEM teve como objetivo, descrevê-lo. A produção do couro orgânico é um dos mais importantes projetos de biodesign do BioCuture, criado por Suzanee Lee, em Londres, em 2011. Lee investiga microrganismos que originam biomateriais; isto é, desenvolvidos a partir de organismos vivos. Para isto, utiliza a kombucha, como mostra o vídeo do laboratório inglês.
Após este processo, o material têxtil criado pode ser utilizado para a confecção de roupas, sapatos e acessórios, como por exemplo, a jaqueta mostrada na figura abaixo, produzida com couro de kombucha e estampada com frutas. Super fashion, né?
“Conseguimos produzir o couro de kombucha. A primeira amostra que ganhamos foi doada pelo Komvida – Bebidas probióticas, artesanais e orgânicas, da cidade de Cianorte. A partir dela, aumentamos o volume, reproduzindo o material no laboratório da Tecidoteca. Realizamos testes de resistência à costura, umidade, sol, calor, lavagem doméstica em máquina de lavar, com produtos de limpeza e aceitação da matéria-prima em peles sensíveis e não sensíveis. Mas, no final, por causa da pandemia, acabamos por colocar a viabilidade de manuseio na moda produzindo uma carteira. Todo o processo e nossas impressões foram inseridos no banco de dados da Tecidoteca. Agora, estamos programando encontrar uma alternativa impermeabilizante para esse couro sintético, para que ele seja resistente à água. Caso a gente descubra, o couro de kombucha tem grande potencial para substituir o couro animal na confecção de peças de vestuário”, prevê o professor Fabrício de Souza Fortunato, que participou das pesquisas junto com Ronaldo Vasques.
O outro trabalho do Gemotex citado acima focou a descoberta de novos materiais fibrosos. O processo envolveu as graduandas de Moda, que passaram também pela experiência com o kombucha, Camila Pereira e Giulia Mendonça Tenório de Alburquerque, além dos professores Vasques e Fortunato. O grupo escolheu pesquisar a urtiga.
“Pensamos na urtiga porque ela é considerada de cunho sustentável em artigos e livros que consultamos. É uma planta que ocorre em diversos tipos de solo e não precisa de qualquer substância química para o seu crescimento. Na verdade, é uma planta desperdiçada pela indústria por ser considerada uma praga nas plantações. Além disso, a fibra já foi produzida por índios Kaingang e Xokleng, aqui, no sul do país, especialmente no Paraná e em Santa Catarina. Inclusive, existem exemplares no acervo do Museu Paranaense, que fica em Curitiba”, informou Fabrício Fortunato.
Porém, a fibra examinada foi da espécie dioica exatamente como a citada nos artigos lidos pelo grupo. Mas ela não ocorre no Paraná e nem em outras regiões do Brasil. É uma planta nativa da Europa, Ásia, norte da África e América do Norte. Por causa disso, os pesquisadores também testaram outra espécie, essa bem farta no país: o popularmente conhecido urtigão (Urera baccifera L.).
Foram feitos testes de resistência à tração e alongamento, de queima, de gramatura (grossura) e encolhimento e testes de morfologia nos dois tipos e ainda foi inserida uma amostra em uma peça de vestuário ecologicamente amigável.
“Vimos que a urtiga não nativa do nosso país tem características mais adequadas à produção de moda, como apontavam os trabalhos de outros pesquisadores. Mas é inviável para a aplicação por aqui por não estar disponível na nossa região. Já a espécie que ocorre no Brasil tem característica mais rústicas, o que traz alguns desafios de manuseio. Precisamos de mais testes para que possamos apontar sua viabilidade na produção de moda. Estamos começando trabalhos que misturam a urtiga com fibras de algodão, produto também farto na região em que atuamos”, explica Vasques.
A produção e a descrição de materiais sustentáveis ainda não é uma prática comum nas pesquisas referentes à moda e à indústria têxtil. Por isso, o trabalho do Gemotex é importante, porque prova que há quase infinitas possibilidades de desenvolvimento de materiais a serem desenvolvidos. E mais: registra tudo na Tecidoteca da UEM.
“É isso que o grupo busca agregar ao cenário atual de trabalhos referentes a fibras naturais, biotecidos e sustentabilidade na moda, de forma que possa incentivar outras pessoas e organizações, visto a urgência de adotarmos novas matérias-primas, menos poluentes ao meio ambiente”, concluiu o professor Fortunato. O planeta agradece.
RELAÇÃO SIMBIÓTICA: relação na qual dois ou mais organismos diferentes são beneficiados por uma interação, por uma associação.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Ana Paula Machado Velho e Thamiris Saito
Degravação da entrevista: Thamiris Saito
Edição de áudio: Ana Paula Machado Velho
Roteiro de vídeo: Ana Paula Machado Velho e Thamiris Saito
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: