Em um domingo ensolarado e alegre, a família estava reunida para mais um final de semana típico, cheio de muita animação, risadas, bagunça e a casa cheia de familiares e amigos. As crianças corriam pelo quintal brincando, enquanto os adultos trocavam histórias, riam e nem se davam conta do tempo passando. Era só mais um domingo qualquer. Sofia, uma menina de oito anos, cheia de energia, curiosa e carinhosa, estava empolgada com aquele dia e muito feliz em estar na companhia de pessoas que amava, primos, primas, tios, tias, pai, mãe… Ela adorava esses encontros familiares, pois sempre sentia o amor e o cuidado de cada um nas tarefas que lhes eram dadas. De repente, uma situação inesperada mudou completamente o clima do lugar. Enquanto caminhava pela casa, Sofia se deparou com uma cena inimaginável para ela naquele dia: seu tio, que normalmente era amigável e afetuoso, estava segurando a mão de sua esposa com uma força assustadora, brutal.
Sofia conseguia ver na expressão da tia Maria a dor que sentia e chegou a pedir ao tio que parasse com aquilo. O tio, que parecia estar em estado de fúria, continuou torcendo a mão de Maria até quebrar, ignorando completamente os pedidos da sobrinha e os gritos de dor da esposa. A cena chocou a pequena Sofia, que se aproximou de forma muito tímida e com muito medo, mas sem coragem de fazer algo naquele momento. A ambulância foi chamada e tia Maria foi levada para o hospital. Aquele não era mais um domingo qualquer. O dia, que começou com alegria e descontração, transformou-se em um clima de tristeza e preocupação. Os adultos tentaram disfarçar o ocorrido, mas as crianças, especialmente Sofia, estavam assustadas, perplexas e, sobretudo, confusas.
Aquela cena não saía da mente de Sofia. Ela não esquecia a violência que havia presenciado dentro da própria casa. A sensação era de impotência e incompreensão do porquê as coisas tinham que ser assim e o que poderia ser feito para que cenas como aquela não voltassem a acontecer. Nos dias que seguiram, uma atividade diferente começou a acontecer na escola de Sofia, um projeto especial, chamado Florescer, que trabalhava a equidade de gênero e a não-violência. Ao receber a notícia sobre a iniciativa, Sofia sentiu uma pontinha de esperança, talvez ali ela pudesse encontrar respostas para suas perguntas e, quem sabe, fazer algo para mudar a realidade que havia testemunhado.
As oficinas do projeto abordavam questões importantes sobre a igualdade de gênero, o respeito às diferenças e a importância de não tolerar qualquer forma de violência, especialmente contra as mulheres. Os professores coordenadores e a equipe do Projeto Florescer buscavam sensibilizar as crianças, mostrando como os papéis de gênero estereotipados podem levar a atitudes e comportamentos prejudiciais. Sofia participou ativamente das atividades, compartilhando sua experiência e expressando seus sentimentos em um ambiente seguro e acolhedor, com uma estrutura pensada para atender as demandas que porventura ela trouxesse à equipe. Mais do que ter sua história ouvida, ela aprendeu que a violência não é aceitável em nenhuma circunstância e que não se pode justificar ou ignorar atos agressivos.
O início do Florescer
O Projeto Florescer começou como uma proposta de estudantes do curso de Jornalismo, da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), desenvolvido na disciplina de Projetos Experimentais, no ano de 2015, voltado à conscientização da mulher vítima de violência, com o objetivo de fazer com que essas mulheres se reconhecessem como vítimas. Depois, foi transformado em um projeto de extensão da Universidade, com o apoio da Unidade Executiva do Fundo Paraná (UEF), antiga Unidade Gestora do Fundo Paraná (UGF), da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti).
De 2015 até hoje, algumas mudanças na configuração do projeto aconteceram, mas sempre com o foco no combate à violência contra a mulher. O grupo do Florescer é formado por professoras e professores, egressos e estudantes dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda, da Unicentro. Ariane Pereira, coordenadora geral do projeto e professora do curso de Jornalismo, relata que ao participar de uma palestra promovida pela Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, de Guarapuava, uma situação chamou muito a sua atenção: as imagens trabalhadas durante a abordagem do tema eram muito fortes. “Eu me lembro até hoje que uma das mulheres tinha uma machadinha na cabeça e aí, quando eu via aquilo eu ficava pensando: será que essas mulheres que estão aqui, vão se reconhecer como vítimas por conta disso ou elas vão achar que violência é só esse tipo de agressão, que já é uma tentativa de feminicídio”, questiona a professora.
Foi a partir daí que projeto começou a desenvolver os primeiros materiais de comunicação para a Secretaria da Mulher, como folhetos, vídeo-documentários, spots para rádio, para que começassem a ser divulgados os trabalhos que Pereira tinha iniciado a fazer, com base em depoimentos reais de mulheres vítimas de violência. O objetivo era gerar empatia e reconhecimento dessas mulheres diante do relato das outras, para que elas vissem que, iniciando com o momento da denúncia ou do buscar ajuda, é possível começar a reverter o problema da violência.
Além disso, evidenciar que a violência é múltipla e que essas mulheres podem estar sendo vítimas a partir de diversos aspectos e que, normalmente, a violência física é só a etapa final desse ciclo, que começa com a violência psicológica, moral, muitas vezes caminha para a patrimonial, reverbera em violência sexual até, de fato, chegar na física.
Com base nesse trabalho com a Secretaria, a equipe do projeto começou a perceber que muitas mulheres começaram a pedir ajuda. “Isso, ao mesmo tempo que nos alegrava, porque a gente achava que o trabalho estava tendo resultado, também nos incomodava, porque a sensação que dava era de que a gente estava enxugando gelo, que estávamos falando de violência para mulheres que eram vítimas, mas que elas continuariam sendo vítimas ao longo do tempo. E foi aí, então, que conversamos e vimos que precisávamos desenvolver ações que fossem muito mais voltadas para a prevenção à violência e não apenas atendimento e combate à violência que já existia”, relata Ariane Pereira.
Assim, surgiu a ideia de trabalhar no projeto não só com mulheres adultas ou homens adultos, que já têm crenças sócio-históricas muito pré-estabelecidas e pré-concebidas e, portanto, mais difíceis de mudar, mas de focar nos “adultos do amanhã”, para que eles cresçam sem essas mesmas convicções, que são atreladas ao machismo.
A metodologia utilizada no projeto
Com esse novo direcionamento das ações do projeto, a equipe foi desenvolvendo uma metodologia própria, baseada na educomunicação e na dramaturgia do telejornalismo, e, desde o ano de 2018, o Florescer funciona como ele é hoje. “Nós vamos até as escolas municipais e fazemos oficinas com crianças do terceiro ano do ensino fundamental, pois elas têm entre 8 e 10 anos, já não são tão pequenas para não reconhecerem o problema dentro de casa. Elas já percebem a violência, mas ao mesmo tempo, não têm arraigadas nelas a questão do machismo”, ressalta a coordenadora do Florescer.
São realizadas cinco oficinas por turma. Na primeira, sempre de forma muito lúdica, pensando na idade dessas crianças e como elas vão receber e processar as informações. O tema é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para que elas se reconheçam como cidadãs e, a partir disso, detentoras de direitos, mas que também saibam que têm deveres sociais, para só então chegar nos pais: o que é direito e dever do pai e o que é direito e dever da mãe? E com isso mostrar as diferenças que existem dentro de casa. “Então o pai e a mãe trabalham os dois o dia todo, quem é que chega e vai lavar a roupa, limpar a casa e fazer a comida? Quase sempre é a mãe. Ou é mal distribuído, mal dividido, e eles começam a perceber que não existe uma igualdade e começamos a questionar o que é o papel do homem e o que é o papel da mulher”, conta Ariane.
Quando as crianças percebem que não têm igualdade, acontece a Oficina 2, na qual são trabalhados os conceitos de igualdade e equidade, demonstrando como a sociedade ainda é desigual, como a mulher é colocada em desvantagem em múltiplos aspectos e que, portanto, são necessárias políticas públicas de promoção da equidade. O ponto de partida para que haja esse entendimento são outros exemplos de políticas públicas, como: o direito à vacinação, à escola pública, ao uniforme, ao material didático, à merenda, para, então, chegar até às políticas públicas de equidade entre homens e mulheres. Na sequência, é apresentada a Lei Maria da Penha, contando a história, porque a Lei tem esse nome e, novamente, as crianças vão percebendo que, dentro de casa ou na rua, um parente, alguém que conhecem, também vivem situações semelhantes e, então, toda a violência contra a mulher é abordada, em seus cinco tipos: o que é violência psicológica, moral, sexual, patrimonial e a violência física.
Na Oficina 3, as crianças são apresentadas à educomunicação, para entenderem a importância de se expressarem e começarem a pensar no material que produzirão. “A partir desse entendimento, a gente parte para dizer: ‘olha, a violência existe, não tem como negar que ela existe. Mas como a gente faz para que ela deixe de existir?’ E aí, explicamos que a Lei trabalha tanto com a prevenção, como com a punição. Falamos como as mulheres fazem para denunciar. Com isso, as crianças vão entendendo todo o ciclo da violência. Para nós, é sempre muito impressionante, pois elas entendem o ciclo da violência antes que a gente explique”, acrescenta Ariane. Nesta oficina, são aprofundados esses contextos e ressalta-se a importância de buscar ajuda, o que prepara os participantes para a próxima etapa, voltada para a produção dos materiais educomunicacionais, nos quais as crianças vão expressar suas ideias a respeito da violência contra a mulher, com base no que mais chamou a atenção delas nas oficinas anteriores.
Na quarta oficina, são disponibilizados equipamentos de vídeo, para as crianças criarem suas próprias produções, que podem ser vídeos, para plataformas como o YouTube ou TikTok, telejornais, teatros, paródias, clipes e outros. Depois disso, os materiais são finalizados e, na Oficina 5, as crianças vão até a Unicentro, onde tem uma sala de cinema, para que possam ver na tela grande o material que produziram. E, assim, se completa o trabalho, reforçando a importância do reconhecimento da cidadania e de que todos têm os mesmos direitos e deveres. “Com o Florescer, a gente não espera resultados imediatos, o que a gente quer é construir uma cidade com equidade, daqui a 10, 15 anos, quando essas crianças namorarem e deixarem essa semente Florescer. Daí vem o nome do projeto, estamos pensando em plantar essa sementinha da cidade com equidade para o futuro”, reitera Ariane.
Apesar dessa expectativa de alcançar resultados no médio e no longo prazo, é perceptível que as crianças atendidas pelo projeto se tornam disseminadoras do conhecimento que assumiram para elas, desde o momento que as oficinas começam a acontecer. A coordenadora relata que “elas vão para a casa e falam para o pai, para a mãe, para a avó, para a vizinha, e isso fica evidente nos números da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, que, desde o início do projeto, já observou um aumento médio de 40% na procura por atendimento por parte de mulheres dos bairros nos quais o projeto é realizado, o que demonstra que, além de promover ações para que as crianças não naturalizem a violência contra a mulher, elas também se tornam ativas no combate a essa ação, estimulando as mães a procurarem ajuda”, confirma a coordenadora.
E a Sofia?
Ao brincar de um jogo com bambolês que simulavam a ideia de um jogo de tabuleiros, Sofia se deparou com perguntas a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente. E, quando ela refletiu sobre algumas respostas, antes de avançar para o próximo bambolê, percebeu que, em um ambiente em que a criança é submetida a situações de violência, deixam de ser observados seus direitos mais básicos, assegurados em leis e no ECA.
Conforme o projeto avançava, também percebeu que não estava sozinha em sua busca por mudança. Seus colegas, principalmente os meninos, também compartilhavam histórias que mostravam o quanto os ambientes em que viviam reforçavam estereótipos, preconceitos, típicos papéis como sendo “de meninos ou de meninas”, o que fortaleceu ainda mais sua determinação de fazer a diferença. Ela, junto de seus colegas de classe, gradualmente começaram a questionar estereótipos de gênero e comportamentos violentos em suas próprias vidas e comunidades. Trazendo a conversa para dentro de casa, junto dos familiares, discutiram sobre a importância da equidade e do respeito mútuo, ajudando a desnaturalizar a violência contra a mulher. A menina explicou que havia uma mulher, com o mesmo nome de sua tia, Maria da Penha, que lutou bravamente pelos direitos das mulheres e, além de ter seu nome no principal instrumento de combate à violência doméstica e familiar da legislação brasileira, é uma das maiores ativistas pelos direitos delas no país.
Quando estava criando seu próprio vídeo, para demonstrar como a educomunicação auxiliou na construção de uma consciência da importância de políticas públicas que promovem a equidade de gênero, Sofia percebeu, do jeitinho dela, que é possível criar um ambiente propício para que ações como essas floresçam, formando uma sociedade mais justa, respeitosa e igualitária para todos. E tudo começa com as pequenas sementes plantadas nas mentes e corações das crianças, como Sofia, que decidiu usar suas vivências para construir um futuro melhor para todos.
Outro ponto importante observado pela equipe do Projeto Florescer é de que, quando se fala de violência contra a mulher, muitas vezes existe a tendência de achar que essa violência tem cara, classe social, escolaridade, nível de renda e não é nada disso. A violência contra a mulher está disseminada de forma muito parecida em todo o corpo social. “Não importa a escolaridade dessa mulher ou desse homem, o quanto eles ganham, onde eles moram, em todo lugar que a gente vai, acabamos recebendo muito retorno dessas crianças, mas tem algumas turmas que são muito mais do que as outras. Tem uma escola muito próxima ao Campus Santa Cruz, bairro onde está a Universidade, em que uma das turmas, 70% das crianças relataram violência contra a mulher dentro da própria casa”, expõe a professora Ariane.
São muitos relatos que chamam a atenção. Enquanto para os adultos esse é um assunto que é tratado de modo muito velado, as crianças não têm esse pudor e falam um pouco mais, justamente porque é algo que as incomoda, para elas não é algo natural. Por isso, o Florescer se preocupa em mostrar para esse público que não existe qualquer tipo de julgamento inicial a partir dos relatos que eles fazem e que a violência é resultado das formas como os sujeitos são apresentados ao mundo, mas é a maneira como eles vão reagir a isso que permite a mudança dessa realidade.
Outra situação enfrentada pelos integrantes do projeto, que, segundo a professora, é a mais difícil de todas, é quando a criança relata que a vítima é ela. “Nós estamos preparados para atuar no caso de violência contra a mulher, então se a criança relata que a mãe, a avó, a tia, ou a vizinha sofre algum tipo de violência, a gente está preparado para ajudá-las nesse aspecto, mas também acontece, muitas vezes, da criança relatar que ela é vítima, e aí, para nós, são situações mais complexas e mais difíceis”, conta a professora Ariane.
É por situações como essas que o projeto caminha sempre com a Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres de Guarapuava, que disponibiliza assistentes sociais e psicólogas que tenham preparo para o atendimento efetivo dessas crianças ou suas famílias, pois, o projeto pode fazer escuta acolhida, mas o suporte efetivo de atendimento em demandas nesses casos precisa ser feito por esses profissionais. Em caso de denúncia das crianças sobre situações como essas, o Conselho Tutelar é acionado imediatamente e, junto à Polícia Militar, atua nos encaminhamentos necessários a partir disso e, no caso de violência sexual, a criança já não volta mais para casa. A universidade atua, por meio do projeto, como propulsora de políticas públicas de combate à violência contra a mulher, então as crianças precisam perceber que há resultados práticos e efetivos na solução das demandas apresentadas. Sofia já percebeu!
Glossário
Equidade: é a busca pela igualdade para que todas as pessoas tenham acesso às mesmas oportunidades.
Estereótipos: é um conceito ou ideia padronizada e generalizada, que é atribuída a uma pessoa ou um grupo, com base em características simplificadas, preconceituosas e sem fundamentação.
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Texto: Andressa Deflon Rickli
Colaboração: Milena Massako Ito
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: