É quase impossível passar perto do bloco H35 da Universidade Estadual de Maringá (UEM) sem perceber uma casinha de madeira simpática e muito diferente de todas as outras construções de concreto. É a Tulha, que carrega consigo muita história. Ela era um depósito de café que foi cedido pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná para ser reconstruído no campus sede da UEM. Hoje, abriga o Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história (LAEE), que estuda sobre o passado e presente das populações do Sul do Brasil e áreas vizinhas, com foco especial nos povos indígenas.
Foi passando em frente à Tulha que encontramos o professor Lúcio Tadeu Mota. Ele nos esperava para uma conversa. Além de coordenador do LAEE, ele é sociólogo, mestre em Ciências Sociais e doutor em História.
Já era um fim de tarde de sexta-feira quando nos reunimos na sala de reuniões do Laboratório. As paredes eram cheias de cartazes explicando a origem dos povos Guarani, Kaingang e Xokleng. Além disso, objetos e artes indígenas estavam por todos os cantos.
Estávamos curiosas para conversarmos sobre alguns temas interessantes para essa matéria que você está lendo agora, que foi pensada especialmente para o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Celebrada em 9 de agosto e criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1994, essa data busca homenagear e reconhecer as tradições dos povos indígenas.
Mota começou o nosso bate-papo explicando que as línguas indígenas preservam a diversidade e a história do nosso país. O acesso desses povos à universidade é importante para que eles possam registrar formalmente o vocabulário, gramática e outros aspectos das línguas indígenas, que são muito baseadas na oralidade. “Se essas línguas são registradas por escrito, por exemplo, elas podem sobreviver mesmo quando a maioria do grupo não fala mais o idioma”, explica o professor.
É justamente por isso que a universidade e outras entidades devem apoiar o ingresso e permanência de estudantes indígenas no meio acadêmico. A iniciativa de preservar estas línguas e culturas deve partir de todos nós, com a universidade sendo uma das principais interessadas, para que possamos repensar a história do Brasil, destacando os povos indígenas como protagonistas, em contraste com muitos livros de história que colocam os colonizadores sob os holofotes.
Existiam cerca de 900 línguas indígenas quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500. Hoje em dia, restam aproximadamente 270. “Muitos indígenas foram dizimados por guerras e pelo contágio de doenças trazidas pelos europeus. Isso é uma das principais causas para a diminuição do número dessas línguas no Brasil. Afinal, sem o seu povo, uma língua não sobrevive”, explica Mota.
O contato com os colonizadores também fez com que alguns desses povos tivessem que viver nas cidades e, conforme as gerações mais antigas desses grupos morriam, maior era a chance de algumas culturas e línguas não conseguirem ser preservadas completamente pelas gerações mais novas.
Hoje, uma das iniciativas mais importantes para a preservação dessas línguas é a formação de professores bilíngues em escolas frequentadas pelos povos indígenas. Assim, eles podem ter acesso ao ensino de qualidade tanto da língua indígena quanto do português, explica Mota.
A estudante de Direito da UEM, Alexia Gaven Kuita Rodrigues, de 24 anos, nos ajuda a entender melhor como funcionou o aprendizado das línguas maternas indígenas para ela. Pertencente ao povo Kaingang e Xokleng, ela fala as duas línguas. Na Terra Indígena Apucaraninha, onde cresceu, ela aprendeu somente a língua Kaingang nos anos iniciais de escolarização. O aprendizado do português veio depois. “Nós temos medo que a nossa língua acabe, como já aconteceu com outros povos indígenas. Eu só posso aprender o Kaingang quando estou dentro da minha comunidade, por isso é tão importante aprendermos primeiro a nossa língua materna”, conta Alexia.
Quem também nos conta sobre a experiência com o ensino bilíngue na escola é Wallace Gabriel da Silva, indígena Guarani Nhandewa, de 21 anos. “Tive aulas de Guarani na escola mas o ensino foi precário, então cresci aprendendo principalmente a língua portuguesa”, relata o estudante de Medicina da UEM, que defende o ensino obrigatório e de qualidade das línguas indígenas nas aldeias para a preservação da cultura.
De volta a nossa conversa com o professor, ele ressaltou que a área da linguística indígena é fundamental para preservarmos essas línguas, que se organizam em camadas. As camadas mais abrangentes são os troncos. Dentro deles existem as famílias, que se dividem em línguas. E não para por aí: além disso, as línguas ainda podem ter diferentes dialetos.
Até pode parecer complicado de entender, mas não é muito diferente do princípio de organização que se aplica à língua portuguesa, por exemplo, que pertence ao tronco Indo-Europeu e à família Latina, que também engloba idiomas como o Espanhol e Francês.
“Esta familiaridade se explica porque alguns idiomas são mais semelhantes entre si do que outros. Algumas palavras de diferentes famílias, por exemplo, são muito parecidas”, lembra Mota.
Em algum momento do passado, as línguas que compõem um tronco eram uma só. No entanto, as aldeias vão se separando com o tempo e quanto mais longe estão uma das outras mais a língua se diferencia da original. É assim que surgem as famílias, línguas e dialetos.
O Instituto Socioambiental nos mostra que os principais troncos das línguas indígenas faladas no Brasil são o Macro-Jê, com cerca de nove famílias, e o Tupi, com dez famílias. Além disso, há cerca de 20 famílias linguísticas que não pertencem a nenhum tronco, já que não apresentam semelhanças entre si.
As primeiras línguas indígenas com que os portugueses tiveram contato quando chegaram ao Brasil foram as do tronco Tupi, já que os falantes delas estavam presentes por uma grande extensão do litoral brasileiro. A língua Guarani, por exemplo, faz parte deste tronco e pertence à família Tupi-Guarani.
Além disso, o Guarani se divide entre os dialetos Kaiowá, Mbya e Nhandewa, que é a variação com que Wallace teve contato. É legal relembrarmos que os Guarani migraram do norte do país para o nosso estado por meio da bacia do Rio Amazonas e também podem ser encontrados na Argentina, Uruguai e Paraguai. Outra língua da mesma família e tronco linguístico é a Xetá, falada pelo povo indígena de mesmo nome, que é um dos mais presentes no Paraná, assim como os Guarani.
Os Kaingang são outro grupo presente no nosso estado. Vindos originalmente da região central do Brasil, chegaram aqui por volta de 2500 anos atrás. A língua falada por eles pertence ao tronco linguístico Macro-Jê. Dentro desse tronco está a família Jê, que contempla o Kaingang e outras línguas. Só quando os portugueses chegaram ao interior do Brasil é que encontram falantes dessas línguas.
Quando alguns povos indígenas entraram em contato com o idioma dos colonizadores, alguns aspectos do português foram sendo incorporados às línguas deles, e vice-versa. Mota explica que o português incorporou e continua incorporando palavras de outros idiomas e, do mesmo jeito, o nosso vocabulário foi muito influenciado pelas línguas indígenas.
Por exemplo: o nome do nosso estado, Paraná, é de origem Guarani. Outras palavras do tronco Tupi também marcam presença no nosso cotidiano, como xará, piranha, jacaré, arara, maracujá, mandioca e cupim. Alguns termos até mesmo influenciaram idiomas como o inglês e francês. Palavras como capybara, toucan e jaguar, por exemplo, têm origem nas palavras indígenas capivara, tucano e jaguar.
Após uma tarde de conversa com o professor, a nossa entrevista foi chegando ao fim e a relação entre a valorização dessas línguas e a presença de estudantes indígenas na universidade ficou ainda mais clara. A preservação é a chave para entendermos melhor sobre a nossa própria história e repensá-la sob o ponto de vista dos povos que estavam aqui muito antes dos colonizadores. Além disso, a valorização dessas línguas significa que podemos aprender mais sobre a cultura dos povos indígenas que também frequentam a nossa universidade.
Os estudantes indígenas garantem a diversidade de conhecimentos no ambiente acadêmico. Afinal, a troca intercultural e de saberes deve ser um dos pilares da universidade. Uma das políticas públicas para o ingresso de estudantes indígenas no ensino superior é o Vestibular dos Povos Indígenas, criado em 2001. Segundo o Governo do Paraná, a coordenação da iniciativa é responsabilidade da Comissão Interinstitucional de Acompanhamento dos Estudantes Indígenas (Cuia). Também estão envolvidos a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti), representantes das universidades e líderes de diferentes povos indígenas.
Wallace nos conta que participou do Vestibular dos Povos Indígenas e lembra que a prova foi realizada em dois dias, além de ser dividida em avaliações orais e escritas. “O Vestibular dos Povos Indígenas é importante para garantir nosso lugar dentro das universidades. É como sempre reforçamos: a universidade também é território indígena, e nada mais justo que estarmos no nosso lugar de direito”, conta o estudante.
A política estadual de inclusão indígena no ensino superior público no Paraná é fundamentada nas Leis 13.134/2001 e 14.995/2006, conta com bolsa auxílio permanência e é conduzida pela Seti. Nas universidades, a organização responsável pela inclusão e apoio para permanência estudantil indígena é a Cuia. Na UEM, uma das responsáveis pela Cuia é a professora Maria Christine Berdusco Menezes. Ela nos conta que, em 2024, a universidade tem 69 estudantes indígenas na graduação e quatro em programas de mestrado e doutorado.
Wallace destaca que o trabalho realizado pela Cuia é muito importante: “Do meu ponto de vista, o curso de medicina é extremamente elitizado. É bem difícil acompanhar os outros colegas de turma que tiveram uma educação diferente da minha. Muitos professores ainda não planejam as aulas pensando naqueles que não participaram dos clássicos cursos preparatórios para vestibular, por exemplo. Enfim, é uma luta diária para se manter na universidade. A Cuia, por exemplo, nos oferece apoio. Isso é bem importante, já que eles me ajudaram com cada dificuldade que tive. Sempre que precisei procurar assistência, estiveram dispostos a fazer tudo para me ajudar”, destaca Wallace.
Alexia também ressalta a importância de estar na universidade: “Muitas vezes, não conhecemos nossos próprios direitos. Devemos saber das nossas garantias por demarcação de terras indígenas, por saúde e por educação para os nossos povos. Isso me motivou a cursar direito. Quero ensinar as futuras gerações de crianças e jovens que estão nas comunidades indígenas a não terem medo de lutar pelos nossos direitos.”
Apesar do Dia Internacional dos Povos Indígenas ser um importante instrumento de luta e apoio às causas indígenas, devemos nos lembrar que a resistência indígena acontece em todos os dias do ano. Sem dúvidas, uma maneira muito poderosa de todos fazermos parte dessa luta é termos curiosidade sobre a história, conhecimentos e culturas desses povos, principalmente dos mais presentes na nossa região. O C² já havia conversado, em 2021, com o professor Lúcio sobre a história não contada dos primeiros paranaenses. Recomendamos que você não deixe de ler essa matéria!
Além disso, não se esqueça de conferir o nosso podcast Conexão Dia Internacional dos Povos Indígenas. Nele, o professor, pesquisador e artista visual Tadeu dos Santos, indígena Kaingang, conta que ainda é comum o imaginário de que os povos indígenas estão concentrados no norte do Brasil, principalmente na floresta amazônica. É essencial conhecermos os povos mais presentes no nosso estado para rompermos com essa ideia equivocada. Não deixe de conferir a entrevista completa com Santos, que também aborda outros temas sobre a valorização das culturas indígenas.
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Texto: Luiza da Costa e Beatriz Angeli
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Milena Massako Ito e Silvia Calciolari
Arte: Mariana Muneratti e Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
Glossário
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