Adoção é o sonho de ter uma família para chamar de sua

Adoção é o sonho de ter uma família para chamar de sua
De acordo com a legislação, no processo de adoção a prioridade é atender as necessidades da criança e do adolescente, e não da família

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12 de outubro de 2023, Dia das Crianças, registrou um astral diferente para a Família Vieira que mora na cidade de Maringá, região Noroeste do Paraná. Houve presentes, gostosuras e muitas brincadeiras no chão com os gêmeos que desde dezembro de 2021 trouxeram grande alegria para a casa.

Diferente de um ano atrás, quando os bebês ainda estavam em fase de adaptação à nova realidade de vida, agora já há condições perfeitas para justas comemorações. A rotina da casa de quatro adultos ao receber os irmãos com 1 ano e 3 meses foi radicalmente transformada, mas nada que muito amor e acolhimento não resolva. 

O que para muitos pode parecer um drama, para os Vieira é a certeza de que finalmente as crianças poderão ter tranquilidade emocional para uma vida plena e suporte para todas as necessidades que poderão ocorrer no futuro. E esta perspectiva não está amparada no fato de um dos meninos ser autista e o outro estar sob investigação, o que requer cuidados e tratamentos especiais, mas sim numa determinação coletiva.

“A adoção foi uma decisão da família desde sempre. Tudo acontece na hora certa e hoje estamos tão felizes que parece que os bebês sempre estiveram aqui”, diz emocionada Marilse Alessandra, agora mãe de quatro filhos como sempre esperou. 

 “A adoção é uma escolha, um encontro de almas, onde a criança nasce para nós e não por nós”, diz Marilse Alessandra, na imagem com os gêmeos, o marido, Darci, e os filhos Hellen e Heuler (Foto/Arquivo Pessoal)
🎧 Marilse Alessandra traz recomendações sobre como abordar o tema da adoção junto às famílias que fazem esta opção

Da habilitação para a adoção até a chegada dos gêmeos na família se passaram ‘2 anos, 11 meses, 17 dias e 12 horas’ quando o telefone tocou, relembra a pós-graduada em Educação e Saúde, com atuação na área do Serviço Social.

O tempo exato de espera guardado no coração de Marilse demonstra que o processo de adoção, considerado por muitos burocrático e demorado, não precisa ser necessariamente um martírio. O que vai interferir diretamente no quanto se espera é o perfil da criança que o casal escolhe.

“No nosso caso, a ideia inicial era uma criança de 0 a 5 anos e com uma doença tratável, até porque já temos um casal de filhos que sofreu muito na infância com doenças respiratórias. No decorrer do processo, optamos por irmãos. Foi quando veio a notícia de que havia dois meninos, gêmeos, e foi uma festa desde aquele momento”, relembra Marilse.

Mas o perfil flexível escolhido pela Família Vieira é a exceção e não é sempre assim que acontece. 

Por que a conta não fecha?

Para entender essa questão, basta ver os números divulgados em tempo real pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) que apontam mais de 34 mil pretendentes à adoção para aproximadamente cinco mil crianças e adolescentes aptos a terem uma família. No Brasil, pelo menos 35 mil crianças acolhidas em instituições e lares de passagem estão à espera de uma família. 

Uma matemática básica nos mostra que é possível zerar a fila. Sim? Talvez? Infelizmente, não.

De acordo com o SNA, do total de adoções realizadas entre 2015 e 2020, 51% foram de crianças até 3 anos completos e outros 27% foram de crianças de 4 aos 7 anos; 53% do sexo masculino e 46,9% do sexo feminino. 

Quando tratamos de adolescentes, cerca de 70% das crianças são maiores de 8 anos e não estão no radar da maioria dos pretendentes, assim como meninos, pretos, grupo de irmãos, portadores de alguma deficiência permanente ou mesmo doenças tratáveis de grau leve ou severo. Neste contexto, os números de adoções não são nada animadores. Isto porque o perfil ‘preferido’ pelas famílias contempla o gênero feminino, de 0 a 5 anos com opção por recém-nascido, branca e sem enfermidades detectadas.

Dados recentes apontam que no país tramitam em torno de cinco mil processos de adoção. Somente 300 deles envolvem grupos de irmãos adotados por uma mesma família. Apenas 73 processos envolvem adolescentes acima de 16 anos. E menos de 15% do total são de crianças negras.  

Desde 2019, o SNA surgiu da união do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA) e abrange milhares de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, buscando a proteção integral prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Os maiores beneficiários do SNA deveriam ser as crianças e adolescentes em acolhimento familiar e institucional, que aguardam o retorno à família de origem ou a sua adoção.

Mesmo com a unificação dos dados, sem sombra de dúvidas ainda temos muito que avançar.

“Somos todos adotados!”

A primeira mudança necessária a se promover na sociedade é transformar a mentalidade de que a adoção é uma ‘caridade’ e a criança é uma ‘mercadoria’ que se pode devolver, caso ela não corresponda as suas expectativas. Não podemos romantizar a adoção e muito menos a maternidade gestada. Também não podemos demonizar nenhuma delas. Resta apenas racionalizar um processo natural que é a função de cuidar do outro, seja ele quem for.

E aqui devemos recorrer à Françoise Dolto, pediatra e psicanalista francesa, para quem “somos todos adotados” já que a parentalidade – ser pai ou mãe – está na ordem do desejo e do amor. 

Na perspectiva de Dolto, adotar implica desejar aquela criança como sua, ou seja, como seu próprio filho. E mais: essa criança também tem de adotar esse adulto como seu pai ou sua mãe. E isso é construído e fortalecido com o tempo, com a convivência, com a rotina do dia a dia. Biológico ou não, isso deve acontecer porque a parentalidade vai muito além dos laços sanguíneos e genéticos.

Portanto, a adoção é um processo que deve envolver toda a família e agregados para que juntos possam garantir à criança o direito fundamental a ter uma família e suas necessidades atendidas, tanto materiais como emocionais. E a Escola não deve ficar de fora deste processo.

Combater o preconceito

Neste sentido, as pesquisadoras e professoras Gilmara Lupion Moreno e Cleide Vitor Mussini Batista, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), estão juntas desde 2016 pesquisando como a questão da adoção pode ser introduzida na escola, especialmente na educação básica, envolvendo profissionais não só da Pedagogia, mas também do Serviço Social e Psicologia.

“A proposta é sensibilizar os acadêmicos para promover uma cultura da adoção na educação básica, sem preconceito ou olhares enviesados, com empatia e generosidade junto às crianças e suas famílias”, explica Gilmara Lupion Moreno, ela própria mãe por adoção. 

“É neste contexto que eu e a professora Cleide trabalhamos na UEL junto aos acadêmicos para que o tema adoção seja debatido intermitentemente, cumprindo assim o papel da Escola na rede de acolhimento a crianças e adolescentes adotivos ou aptos à adoção, promovendo a cultura da adoção”, esclarece a pesquisadora.

Gilmara Lupion Moreno (à esquerda) e Cleide Vitor Mussini Batista estão juntas desde 2016 no projeto de extensão Escola e Adoção na UEL (Foto/Arquivo Pessoal)
🎧 As pesquisadoras falam da contribuição da Psicanálise na compreensão do desejo de ser mãe e pai pela via da adoção, do encontro com o filho e o entrelaçamento de desejos da nova família

Já para a pesquisadora e professora Cleide Vitor Mussini Batista, que junto com Gilmara atua no projeto de extensão sobre a relação entre Escola e Adoção, chama atenção para o fato de que não precisa haver crianças adotivas na sala de aula para o tema entrar em debate. “A ideia não é estimular a adoção, mas transformar o significado para que uma criança possa ser adotada por toda a família sem preconceito, sem mais violência, onde a harmonia prevaleça”, explica ela.

Outro aspecto que Cleide destaca ainda é o direito que cada criança tem a sua própria história. “Fale sempre a verdade sobre a origem à criança, por mais dura que ela seja, como o nome que ela tinha em caso de troca, se tem irmãos. Não tem como apagar esse passado”. Liderando o Grupo CNPq -Núcleo de Estudos e Pesquisas Psicanálise e Infância, Cleide entende que “é preciso que todos acolham essa história e deixem que a criança vá ressignificando e dando continuidade a ela [a história] em suas novas relações”. 

As duas pesquisadoras da UEL já produziram diversos artigos que tratam da adoção de forma didática, na maioria dos casos recorrendo à literatura e ao cinema, que estão disponíveis para consulta de educadores. Entre os temas estão a relação entre escola, família e adoção, o tempo de espera entre o acolhimento e a adoção, como interagir quando há a devolução de uma criança, ou mesmo como construir a cultura adotiva na escola. E para o próximo ano, elas já estão organizando um material com aproximadamente 15 temas relativos à adoção, com sequências didáticas que estará disponível on-line para consulta de professores que são sensíveis e desejam trabalhar o tema em sala de aula.

Adoção é a última medida protetiva

Quando ampliamos nosso olhar sobre a adoção e o processo que a antecede, é possível enxergar a complexidade que compreende esse verdadeiro milagre de promover o entrelaçamento entre o desejo da criança ter uma família e o da família ter um filho/a/s. 

Para a pesquisadora e professora Cleide Lavoratti da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), na região central do estado, é preciso reforçar que o ponto central é garantir à criança o direito a uma família, seja ela biológica ou substituta. “A própria legislação coloca que é direito da criança ter uma família, e não a família idealizar uma criança perfeita para a adoção. Até porque, nem os filhos biológicos nos dão a garantia de serem perfeitos”, enfatiza.  

A professora de Serviço Social da UEPG, Cleide Lavoratti, tem experiência na área da Infância e da Adolescência, com ênfase em Políticas de Enfrentamento às Violências (Foto/Arquivo Pessoal)
🎧 Cleide Lavoratti chama atenção para a idealização do perfil da criança, como se fosse possível evitar os percalços que a vida pode impor aos filhos, adotivos ou biológicos.

É preciso apostar em um processo educativo. “Precisamos educar a sociedade para superarmos a mentalidade que a criança deve suprir as expectativas da família substituta. E sim buscar que esta família se organize para garantir, da melhor forma possível, os direitos fundamentais das crianças e adolescentes”, alerta a pesquisadora. 

Outro ponto que a professora Cleide defende é que antes de se chegar à adoção, é preciso investir na família de origem e encaminhá-la para programas oficiais de apoio para que esta consiga cumprir sua função protetiva. No Brasil, infelizmente, ainda não há políticas públicas estruturais que garantam condições dignas de moradia, renda para prover segurança alimentar e proteção às famílias e seus integrantes, especialmente os menores. 

“O pano de fundo da vulnerabilidade dessas crianças que estão em abrigos é a negligência do Estado na falta de políticas públicas estruturais. A partir da institucionalização das crianças, as possibilidades dessas famílias sozinhas vierem a superar essa situação de risco é muito pequena. É difícil conseguir uma renda, uma casa, o que impede a reintegração à família original. Somente a partir dessas tentativas é que se coloca a opção da adoção para a uma família substituta”, completa. Afinal, a adoção é a última medida protetiva prevista no ECA.

Por esse debate ser complexo e cheio de variantes, o ideal seria garantir os direitos da criança junto com a sua família biológica. E somente as exceções que envolvam situação de violência, que extrapolam as possibilidades da família biológica de gerir os problemas, fossem colocadas para adoção. 

“São várias etapas para uma pessoa adotar uma criança porque a gente tem que ter a garantia de que há estabilidade emocional, saúde mental e física e condições materiais para prover as necessidades da criança. Senão, no primeiro percalço, a criança é devolvida e isso, essa dupla, tripla rejeição, gera danos emocionais irreversíveis”, reforça Cleide. 

São questões que merecem atenção dos gestores públicos, especialmente para defender os direitos de todas as crianças acolhidas e que estão à espera de uma família. E mais: o ECA garante que os filhos adotivos têm todos os direitos que os biológicos, acabando com aquela prática história da ‘adoção à brasileira’, onde a criança adotada não recebia a mesma atenção e cuidados que os filhos legítimos. 

Adoção internacional

A professora Cleide Lavoratti coordena na UEPG o Programa de Extensão: Núcleo de Estudo, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre Infância e Adolescência e o Núcleo de Estudos e Defesa dos Direitos da Infância e Juventude (NEDDIJ) e tem experiência para falar sobre as alternativas que são viabilizadas para garantir uma família às crianças acolhidas.

“Por ter menor rigidez no perfil, ocorrem muitas adoções internacionais como Itália, França e EUA, por exemplo, onde prevalece uma ideia de adotar grupos de irmãos, com deficiência, adolescentes, que é o perfil majoritário das nossas crianças aptas à adoção”, explica.

De 2018 a 2021 no Paraná, foram realizadas 42 adoções internacionais, justamente nesses perfis que os brasileiros não querem. Sempre com o mesmo cuidado, os processos visam garantir um ambiente saudável, com respeito aos direitos fundamentais, condições materiais para cuidar da educação e crescimento. “A preferência é de adoção por brasileiros para manter a criança no seu ambiente natural, cultural e língua, mas quando não é possível, tenta-se encontrar uma família que acolha a criança ou adolescente”.

Assim como em outras cidades do Brasil, o processo de adoção segue os mesmos parâmetros determinados pelo Conselho Nacional de Justiça. 

“Aqui na realidade de Ponta Grossa, o preparo dessa família prevê seis encontros visando troca de informações para fundamentar a análise dos pretendentes, que somente depois de finalizada esta etapa o processo é inserido no cadastro nacional”, informa Cleide. 

E nesse período de inscrição e análise, que pode demorar anos dependendo dos critérios do perfil, às vezes pode acontecer de a família estar em outra dinâmica quando surge uma criança: casal se separou ou tiveram um filho, por exemplo. Por isso é importante dar suporte a família de origem, quando o problema é da ausência de estrutura para permanecer com a criança, e não há ocorrência de casos de violência ou falta de afeto.

Por fim, basta sabermos que crianças e adolescentes precisam, como tantas outras crianças e adolescentes, de um lar acolhedor onde possam se sentir pertencentes a uma família, recebam amor, carinho, segurança e proteção.

No fundo, vimos que a adoção é a chamada ‘tempestade perfeita’. Um verdadeiro encontro de almas.

É quase um milagre a ser comemorado todos os dias.

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Texto:
Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Milena Massako Ito
Edição de áudio: Bruna Mendonça
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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