Nos últimos anos, o sucesso em torno da produção hollywoodiana Pantera Negra trouxe para os fãs de histórias de heróis um universo de representações diferente acerca do continente africano. No roteiro, Wakanda é uma nação próspera, tecnologicamente mais “evoluída” que as chamadas ocidentais. Embora o modelo de desenvolvimento ainda se ancore no ideal de cidade com arranha-céu própria dos países do norte-global, a produção consegiu levar uma quantidade grande de espectadores para as salas de cinema que, espantados, viam pela primeira vez protagonistas negros em uma super produção, recheada de efeitos visuais e tecnologias avançadas, que quase nunca figurou no imaginário de uma nação no continente europeu.
A surpresa não ficou na sala de cinema. O desfile de roupas nos tapetes vermelhos, que mostrava uma nova forma de ser, de se vestir e de agir dos atores negros, gerou ainda mais burburinho em torno dessa estética e aparência evocadas pelo filme. Nessa produção, tivemos a primeira mulher negra a ganhar o Oscar de melhor figurino.
O efeito Pantera Negra é espantoso. Embora se reconheça que a representatividade gerada por essa produção é significativa e relevante, ela também escancara a miopia social e as visões equivocadas que surgem de diversos povos e nações. No enredo do filme, sociedades ocidentais querem acessar o Vibranium, tecnologia dominada por Wakanda, um metal que ajuda a dar superpoderes. Essa narrativa reproduz inclusive o modelo imperialista adotado por países europeus no final do séc XIX, que se apropriou do território em busca de suas riquezas.
A nossa surpresa é de que uma produção que mostra uma África desenvolvida e rica tenha chamado tanto atenção, mas também que isso tenha acontecido somente recentemente, em meados de 2020.
Sociedades que são consideradas como “primitivas” já foram apresentadas por antropólogos como complexas e evoluídas. Pantera Negra foi apenas a ponta do iceberg, talvez a mais comercial e conhecida pela população, de um movimento político, estético, criativo e tecnológico, chamado Afrofuturismo. O C² conversou com pesquisadores da área para entender esse movimento.
A primeira vez que um de nós se deparou com o conceito de Afrofuturismo a partir de uma recomendação do algoritmo da plataforma de streaming de música, Spotify, ele gerou um gráfico com os estilos de músicas que a Maysa Ribeiro, mulher preta e estudante de comunicação mais escutava. Nas recomendações estava escrito: “música afrofuturista”, o que a intrigou. Ao pesquisar mais sobre o conceito, o filme “Pantera Negra” estava sendo citado, mas ela estava certa de que o termo surgiu para se conectar às vivências da condição humana que os negros e negras são mundialmente sujeitos. O Afrofuturismo está em muitos produtos e mídias, e podemos provar.
Mas, afinal, o que é Afrofuturismo? Quem explica o conceito é Ana Paula Medeiros, formada em História, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), e em Design de Produto, pela Universidade Cruzeiro do Sul, mestre em Tecnologia e Sociedade, e que, atualmente, está fazendo doutorado em Design pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Ao longo de sua carreira acadêmica, ela tem pesquisado como especular e construir futuros a partir de perspectivas negras, indígenas e decoloniais. O Afrofuturismo é uma forma de pensar o futuro a partir de uma perspectiva negra. Segundo Medeiros, existem dois conceitos, o Afrofuturismo, que é diaspórico, definido pelos africanos como uma visão ainda muito ocidental, e a vertente denominada Africanfuturismo ou Afrifuturismo, propriamente africana. Porém, o Afrofuturismo se liga a cada nação e cultura de maneiras diferentes, como é o caso do Brasil, por exemplo, em que o conceito vem carregado perspectivas indígenas.
Enfim, o Afrofuturismo é um conceito amplo que vai além das artes e está em disputa, visto que o pesquisador branco Mark Dery é reconhecido como um dos primeiros a cunhar o termo, na década de 90, após lançar um livro que entrevistava afrofuturistas. Ou seja, o “termo já circulava antes entre pensadores, artistas e escritores negros, só que neste livro [o termo] ainda estava muito limitado principalmente à literatura, à ficção especulativa e à escrita na música. Hoje a gente entende o conceito de uma forma muito mais ampla que pode estar presente em qualquer prática profissional”, diz Medeiros.
A doutoranda também afirma que, estudando o Afrofuturismo mais a fundo, aprendeu que ele não começou nos anos 90, 80 ou 70. “Começou muito antes disso, nós já tínhamos pessoas negras preocupadas em construir futuros melhores partindo dos seus problemas do presente. O Afrofuturismo faz parte de uma coisa chamada ‘movimentos especulativos’. A gente especula sobre o que pode ser, outras realidades, também existem outros movimentos especulativos negros, que convivem com o Afrofuturismo há muito tempo”, detalha a designer.
O movimento do Afrofuturismo traz a proposta de “desbranqueamento” do futuro, uma vez que, quando paramos para pensar em obras futuristas, seja no cinema ou na literatura, por que não encontramos pessoas negras? Uma das teses afrofuturistas reflete o lugar que as pessoas negras, indígenas, com deficiência, ocupam nessas produções e a grande maioria se encontra exercendo algum tipo de serviço. “No futuro tem robôs para fazer isso, então esses corpos negros, indígenas, deficientes, não existem, porque ninguém precisa deles. Por isso, existe a visão de que pessoas negras não pertencem ao futuro”, explica Ana Paula.
É como diz o escritor brasileiro e indígena, Ailton Krenak: “eu preciso sonhar para conseguir pensar em um futuro”. Quando as coisas estão indo muito bem, é muito fácil projetar um futuro que é agradável. Mas, quando falamos de minorias, esse processo se torna mais difícil. Por isso, no doutorado, Medeiros pesquisa como é possível planejar futuros melhores por meio de uma perspectiva afrofuturista. Ela propõe uma estrutura de sonho e de desejo, a partir do design especulativo e prospectivo, para as pessoas conseguirem projetar transições.
Conceber e planejar o futuro é um exercício que requer certa projeção de se “estar lá”. Sabemos que, para as pessoas escravizadas, a vida cotidiana já era árdua, por isso, imaginar um amanhã era uma atividade que poderia dar uma razão de ser, de agir e de resistir. Nunca paramos para pensar que, por trás das representações que fazem, ou fazemos, sobre o futuro, existe uma concepção política, histórica e de poder.
Em Maringá, no Paraná, por exemplo, o novo empreendimento imobiliário imaginado para o futuro da cidade se chama “Eurogarden”. Quando pensamos mais profundamente, identificamos claramente que há uma associação entre a visão europeia para algo que se quer para o futuro. Mas um bairro chamado “Afrogarden”, muito provavelmente não atenderia às necessidades da especulação imobiliária. O que os afroturistas fazem é tentar mudar essa realidade.
Afrofuturismo e Cyberpunk
Uma das possibilidades de encontrar diálogos e raízes do Afrofuturismo é o de identificar movimentos que o alimentam. O universo da ficção científica é um deles. O pesquisador Rodolfo Rorato Londero, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), tem se debruçado por anos na ficção científica latino-americana focando no Cyberpunk, em especial na literatura. Segundo Londero, “o Cyberpunk tem origem norte-americana e trata sobre futuro distópico, que envolve a chamada alta tecnologia trabalhando a péssima condição de vida em um cenário já dominado pelo neoliberalismo, falência do Estado e as grandes corporações que dominam tudo”.
Como o Afrofuturismo, o Cyberpunk trata sobre a representação em um futuro utópico das populações marginalizadas em que essas têm suas realidades diferentes das que são experimentadas diariamente, em que são constantemente segregadas e não têm o direito de sonhar com o próprio futuro, pois não são disponibilizados os materiais necessários para a construção dessa realidade. Desta forma, a ficção científica produzida mundialmente e reconhecida como normal é a norte-americana, que é negada pelo Afrofuturismo e o Cyberpunk. Esses conceitos reconfiguram a ficção científica padronizada para dar voz a essas pessoas.
Londero explica como o seu estudo sobre o Cyberpunk se liga com as populações que passam pela exclusão do futuro. “Acabei descobrindo que muitas trazem elementos utópicos que não são algo que você encontra na ficção científica norte-americana. E, muitas vezes, esses elementos utópicos estão relacionados à resistência, a guetos, a temas como utopias ecológicas, feministas e indígenas. Então, acaba tendo uma relação muito próxima com o que também interessa, o Afrofuturismo”, explica o professor da UEL.
Para trazer um exemplo, Londero cita o filme Bacurau, de Kleber Mendonça, que considera uma ficção cyberpunk brasileira, com uma estética diferente da ficção cyberpunk norte-americana. O filme começa a trazer elementos mais utópicos como é o caso da vila, de como eles se relacionam com a tecnologia e, principalmente, como eles enfrentam o imperialismo norte-americano. Tem proximidade com o Afrofuturismo nesse sentido quando você começa a pensar nessa ficção científica que é feita na periferia”, reforça.
O pesquisador ainda destaca a origem desse povo e onde baseou os seus estudos. “Eu me baseio, principalmente, em uma afirmação que o Fredric Jameson faz no debate dele sobre o pós-modernismo em que diz ‘que o cyberpunk é a representação máxima do capitalismo tardio’. Então, quando você começa a pensar essa representação máxima sendo elaborada e pensada na periferia, tem alguns elementos que não fazem parte desse sistema mundial que vai aparecer, é aí que a hipótese que desenvolvi na minha tese se encaixa, e é aí que entram os elementos utópicos. Nesta tese, trabalhei com uma obra peruana chamada ‘De quando em quando Saturnina’ (2014), ela vai trabalhar com o feminismo indígena, são elementos que você não encontrará na ficção cyberpunk norte-americana”, explica ele.
Mas de onde vem o tal Cyberpunk? Esse movimento começa na literatura na década de 80, mais especificamente com o livro “Neuromancer”, de William Gibson, que teria inspirado produções diversas como Matrix e animes japoneses. Foi nessa época que vimos a ascensão do ciberespaço, a expansão da internet e a cultura hacker sendo promovida. Naquele momento, tínhamos uma atmosfera distópica, uma visão mais pessimista do futuro, já que grandes corporações informáticas começavam a falar da biotecnologia e o imaginário da Inteligência Artificial, algoritmos e cibernética apareciam nos filmes. O C² já produziu matérias lidando com alguns desses aspectos.
Especulações sobre o futuro
Ana Paula Medeiros já vê o movimento Afrofuturista provocando transformações na forma de pensar e de fazer ciência, e espera que isso consiga mudar a visão das pessoas. “Nós temos visto mais abertura para que o Afrofuturismo não seja só uma tendência, porque, mesmo se sair do cinema e da televisão, ainda assim a gente continua existindo fora disso e trabalhando para promover essa mudança”, afirma ela.
A população preta nas sociedades atuais tenta a todo momento sonhar, além de buscar imaginar um futuro em que não seja necessária a luta constante para conseguir os mínimos direitos que uma pessoa com dignidade necessita no seu dia a dia. Por isso, Medeiros destaca a importância de movimentos como o Afrofuturismo, que vem para falar que as pessoas pretas pertencem ao futuro. “Se nós pertencemos ao futuro, precisamos cuidar desse presente que temos hoje e precisamos olhar para o passado, para ver se aquilo que contaram para a gente estava certo”.
Uma certeza é que o Afrofuturismo tem se tornado tema de estudos de várias áreas, já que qualquer trabalho pode ser pensado pela perspectiva afrofuturista, seja em história, física, química, biologia, moda, artes visuais, literatura, música, entre tantos outros campos.
Dessa forma, o C² preparou o podcast – Produções afrofuturistas, com indicações de conteúdos que abordam o conceito na internet, no cinema e em outros meios. Não deixe de conferir!
Glossário
Decoloniais: Trata-se de um pensamento que se desprende de uma lógica de um único mundo possível (eurocêntrico) e se abre para variadas possibilidades.
Diáspora/Diaspórico: Dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.
Distópico: Um país, uma sociedade ou realidade imaginários em que tudo está organizado de uma forma opressiva e totalitária.
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Texto: Maysa Ribeiro Macedo, Milena Massako Ito e Tiago Franklin Lucena
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: