Além da bengala: a luta por direitos da pessoa idosa

A ilustração, em tons quentes e suaves, mostra idosos praticando atividades variadas, como esportes, dança, leitura e convivência. As figuras se movem em diferentes plataformas conectadas por escadas, simbolizando o envelhecimento ativo e a crescente participação dos idosos na sociedade moderna.
Ainda é preciso se desfazer de alguns rótulos para compreender a importância de novos olhares sobre o envelhecimento

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Elizete é uma mulher com espírito e aparência que desafiam o tempo. Sorriso radiante, alegria contagiante, passos fortes e rápidos, além de uma vitalidade sem fim. Sua família costuma brincar que ela é ‘intermunicipal’, ora está em Guarapuava, cidade da região central do Paraná, auxiliando a filha no cuidado com os netos, ora no sítio há 50 quilômetros dali para estar com o marido e o filho, ora no distrito de Entre Rios, que fica a 18 quilômetros de Guarapuava, para estar com a família do outro filho. Numa tarde de sexta-feira, Elizete estava na rodoviária para voltar para o sítio onde seu marido e filho mais novo moram.  

Vestida com seu jeans e uma camiseta estampada, que lhe oferecia um ar ainda mais jovial, Elizete dirigiu-se com tranquilidade à fila preferencial para pessoas idosas. Enquanto esperava, notou um senhor na outra fila, que a observava com uma expressão de dúvida e até certa desaprovação. Depois de algum tempo, ele foi até a fila em que ela estava e disse:

— Com licença, acho que a fila preferencial é para idosos. Sua voz era respeitosa, mas clara em seu questionamento. 

Para ele, Elizete não deveria estar ali. 

Ela, que já havia passado por situações semelhantes, sorriu simpaticamente e de forma leve e amigável brincou respondendo:

— Pois é, essa fila é mesmo para idosos e é por isso que eu estou aqui. 

O senhor, que aparentava ter mais de 60 anos, franziu a testa e insistiu:

— Mas você parece tão jovem! Tem certeza de que está na fila certa?

Elizete riu, agradeceu o questionamento, que soou para ela como um elogio, e lhe garantiu: — Sim! No auge dos meus 64 anos posso te dizer que sim, estou na fila certa. São 64 anos muito bem vividos.

O senhor esboçou um misto de surpresa com incredulidade e disse: — Sessenta e quatro? Eu jurava que você teria, no máximo, uns cinquenta e pouquinhos! Além de tudo, ainda é mais velha do que eu, que tenho 60. 

Com sua habitual simpatia, Dona Elizete colocou a mão no ombro do senhor e disse:

— A idade é um estado de espírito. O importante é como nos sentimos por dentro e eu me sinto muito jovem! Quantos anos eu tenho é só um detalhe.

O senhor sorriu largamente e concordou. 

Com as passagens em mãos, Elizete se encaminhou para o embarque, rotina que repete semanalmente, com a sensação de ter feito um novo amigo, deixando para trás mais um dia em que sua jovialidade, mais que em suas rugas e linhas de expressão, estão no seu jeito de viver a vida com entusiasmo e vitalidade de dar inveja a muitos jovens. 

Dona Elizete Selita Deflon Rickli é minha mãe. E ao presenciar essa cena lembrei de um marco importante para a consolidação dos direitos das pessoas idosas no Brasil: O Estatuto da Pessoa Idosa, instituído pela Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Tal lembrança me ocorreu justamente porque aquela cena sobre o atendimento preferencial está prevista nessa norma. 

Os desafios das pessoas idosas ainda se apresentam na vida em sociedade das mais diversas formas, mas antes da criação do Estatuto, os desafios eram ainda maiores. A pessoa idosa não tinha suas necessidades reconhecidas, respeitadas e, muitas vezes, era marginalizada e tratada como cidadãos de menor importância, sem a devida atenção aos seus direitos sociais, econômicos e de saúde.

  • A imagem mostra uma mulher sorridente, com cabelos escuros presos para trás. Ela está vestindo uma camisa de mangas compridas com um padrão floral em tons de rosa e lilás. O ambiente parece ser ao ar livre, possivelmente em uma varanda ou área externa, com árvores e plantas ao fundo. Há uma atmosfera acolhedora e natural na cena, refletida pelo sorriso e expressão amigável da mulher.
  • A imagem mostra um casal sorridente em um ambiente ao ar livre, perto de uma casa simples com paredes brancas de madeira e janelas abertas. À esquerda está um homem de cabelos brancos, usando uma camisa xadrez de mangas curtas e uma tipoia azul no braço esquerdo, indicando que ele está com o braço imobilizado. À direita, uma mulher de cabelos escuros, vestindo uma blusa cinza com detalhes em laranja e um padrão geométrico. Eles estão em frente a uma árvore, com folhagem verde ao redor e algumas flores lilases no canto direito da imagem. O clima parece ser ensolarado e descontraído.

Respeito e inclusão

Foi a partir da promulgação do Estatuto que esse cenário começou a mudar e a pessoa idosa passou a ser formalmente considerada um cidadão pleno, com direitos garantidos e específicos. Além de uma série de diretrizes voltadas à proteção e promoção da dignidade das pessoas idosas – direito à saúde, à assistência social, à educação, à cultura, ao lazer e ao respeito. 

A Lei também reforçou, em seu Art. 4º, que nenhuma pessoa idosa será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei. 

Prevê também, em seu Art. 10, que é obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis. 

Mais do que a garantia de direitos, o Estatuto da Pessoa Idosa é de extrema relevância para que a sociedade tenha consciência a respeito do envelhecimento da população e a necessidade de uma convivência inclusiva e respeitosa com essas pessoas. É, ainda, uma forma de evidenciar que pessoas idosas são cidadãos com plena capacidade de exercerem seus direitos, participarem da vida social e de serem tratados com respeito. 

Apesar de muitos avanços, de perspectivas mais justas e equitativas, com mais garantias e valorização, existem alguns desafios significativos na implementação dos direitos garantidos pelo Estatuto da Pessoa Idosa na prática. Especialmente, no que se refere à conscientização da população sobre esses direitos e à fiscalização para o cumprimento da legislação. 

Políticas públicas eficientes

A falta de informação, tanto por parte das pessoas idosas quanto de seus familiares, muitas vezes impede que esses direitos sejam plenamente exercidos. Além disso, a infraestrutura pública e privada, em muitos casos, não está adequadamente preparada para atender às necessidades específicas da população idosa. 

Para a professora da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) e coordenadora da Universidade Aberta à Terceira Idade (Unati) na instituição, Maria Cleci Venturini, o Estatuto da Pessoa Idosa é um avanço e tem muitas coisas importantes, mas a implementação desses direitos no cotidiano não é totalmente cumprido. 

A imagem mostra uma mulher com cabelos curtos e grisalhos, usando óculos de armação escura e sorrindo levemente. Ela veste um casaco escuro com uma blusa ou cachecol com padrão em tons neutros, marrom e bege. Sua expressão é amigável e ela está em um ambiente iluminado, com o fundo branco e simples.
Professora Maria Cleci Venturini (Foto/Arquivo Pessoal)

Maria Cleci usa um exemplo, muito simples, que é a vaga de estacionamento: “A pessoa idosa tem direito de estacionar na vaga reservada a ele, mas precisa ter o Estar Digital, e para isso ele precisa ter o aplicativo. Além disso, se ele esquece de colocar a identificação de idoso, é multado. E eu entendo assim, se o carro estiver registrado, não deveria ser multado, afinal o carro está registrado”. 

A professora ainda aponta que nem todos têm condições de cadastrar e usar um aplicativo de forma assim tão simples. Então, faltam estratégias que de fato incluam a pessoa idosa nessas pequenas demandas que são de todo dia. 

É evidente que muito já se avançou, mas áreas como a saúde e a mobilidade urbana precisam de maior atenção. Dificuldade de acesso a serviços de saúde especializados, filas preferenciais que não funcionam adequadamente e a falta de infraestrutura para garantir mobilidade segura e confortável para a população com 60 anos ou mais são alguns dos exemplos. A conscientização sobre violência contra a pessoa idosa também necessita de um foco mais profundo, pois muitos casos ainda passam despercebidos ou não são devidamente denunciados. 

  • A imagem é um infográfico intitulado "Expectativa de Vida". Ele apresenta uma linha do tempo destacando a expectativa de vida ao nascer em diferentes anos: 1991: 66,9 anos 2000: 73,9 anos 2010: 69,8 anos 2022: 75,5 anos Abaixo da linha do tempo, há uma explicação adicional: Texto: "Nos últimos 30 anos, a expectativa de vida ao nascer aumentou em quase 9 anos, refletindo avanços em saúde pública e melhorias nas condições de vida. As mulheres continuam a viver mais que os homens, com uma diferença de cerca de 7 anos em 2022 (79 anos para mulheres e 72 para homens)." O infográfico é creditado a "Conexão Ciência" com arte de Mariana Muneratti.
  • A imagem é um infográfico intitulado "População Idosa (60 anos ou mais)". Ele apresenta uma linha do tempo com o crescimento da população idosa ao longo dos anos:
1991: 10,7 milhões de pessoas (8,8% da população total)
2000: 14,5 milhões de pessoas (9,8% da população total)
2010: 20,5 milhões de pessoas (10,8% da população total)
2022: 32,1 milhões de pessoas (15,8% da população total)
Abaixo da linha do tempo, há uma explicação adicional:
Texto: "Nos últimos 30 anos, a população idosa mais que triplicou em números absolutos, e a participação dos idosos no total da população subiu de 8,8% para 15,8%. Isso se deve ao envelhecimento natural da população, com a queda da taxa de natalidade e o aumento da longevidade." 
O infográfico é creditado a "Conexão Ciência" com arte de Mariana Muneratti.

“A questão da saúde é muito relevante, assim como a mobilidade na cidade. Muitas vezes são ações que chegam somente nas pessoas idosas com maior poder aquisitivo e aquele que não tem não tem condições, ou que não tem familiares que possam auxiliar sentem-se, muitas vezes, abandonados. São necessárias ações que envolvam mais a família na conscientização dos cuidados com a pessoa idosa, valorizando no sentido de tudo o que ele sabe, da experiência que ele tem, que construiu ao longo da vida.  A lei, no papel, não tem muitos efeitos, ela deve ter efeitos práticos no dia a dia, no cotidiano e no sentido de mudar essas visões ainda equivocadas a respeito dessa população”, pontua a professora Maria Cleci.

Mas na contramão de lacunas que ainda existem, há estratégias de impacto positivo, como é o caso das ações da Unati que desempenham um papel importante na conscientização dos direitos das pessoas idosas. A promoção de eventos, ações e programas que colocam a população com 60 anos ou mais como protagonistas, pessoas ativas e cheias de vida, não só proporcionam aos alunos desfrutar dessas oportunidades, como evidenciam para toda a comunidade acadêmica e população em geral a importância de vê-los dessa forma. 

“Os grupos da Universidade Aberta da Terceira Idade contribuem muito para a conscientização dos direitos das pessoas idosas entre os alunos da própria universidade e a comunidade em geral, mostrando através da atuação deles nas danças, frequentando cursos de línguas, fazendo atividades físicas, mostrando todo o companheirismo que eles têm, a alegria que eles têm de se encontrar. É um bom exemplo, uma forma de mostrar, para os próprios jovens universitários, como ser uma pessoa idosa não significa que a idade fez deles pessoas incapazes, que eles têm capacidade de continuar”, afirma a professora. 

Bengala: nunca mais!

Com pessoas idosas ocupando cada vez mais os espaços públicos, um profundo constrangimento surge quando a pessoa estaciona seu carro nas vagas preferenciais. Aquele sujeito arcado, de bengala, pode até ter sido uma representação no passado, mas que hoje está completamente superado.

Já há vários projetos de lei sendo discutidos nos mais diferentes estados e municípios similar ao projeto de Lei 3413/2021,  que tramita em caráter conclusivo na Câmara Federal, em Brasília. A proposta prevê a mudança do símbolo que identifica os espaços exclusivos para pessoas idosas e ainda depende de análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Legislativo. Afinal, aquela imagem que os representava com uma bengala na mão, enquanto a outra segura o quadril, não pode ser mais inapropriada e precisa ser aposentada, pois não condiz com a realidade. 

“É necessária essa mudança dos espaços, da identificação das pessoas idosas, pois certamente não estão se sentindo representados com uma muleta, todo encolhido, com as costas tortas. É preciso uma forma mais alegre de identificar esses espaços, por isso esses projetos de lei são muito bem-vindos”, analisa a professora Maria Cleci. Até mesmo o ‘Estatuto do Idoso’ teve seu nome alterado em 2022, quando passou a ser denominado Estatuto da Pessoa Idosa, para garantir maior inclusão e respeito a essa parte significativa da população. 

A mudança na identificação dos espaços destinados as pessoas idosas pode parecer quase banal a um olhar menos atento ou de alguém mais distante dessa faixa etária. Porém, o símbolo com a bengala reforça estereótipos que associam a velhice exclusivamente à fragilidade, dependência, falta de vigor. 

A forma como as pessoas são representadas influencia diretamente na maneira como elas se percebem e se posicionam no mundo. É essencial que esses símbolos acompanhem a realidade diversa e multifacetada da população idosa. Aparentemente uma alteração “simples”, mas muito mais respeitosa e menos caricata, que pode impactar na autoestima e no senso de pertencimento das pessoas idosas e no seu reconhecimento como cidadãos capazes e ativos. 

Além disso, uma representação mais moderna e sem estigmas pode ajudar a começar um movimento na sociedade como um todo, buscando redefinir a percepção do envelhecimento, promovendo uma visão mais positiva e ativa da velhice. 

Até porque, como diria Dona Elizete, “tem muito idoso por aí dando um baile em muito jovenzinho”.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Andressa Deflon Rickli
Revisão: Silvia Calciolari
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Lucas Higashi e Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

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