Sabe aquele pão francês macio, crocante e cheiroso, com o miolo tomado por aquela margarina derretida, amarelinha, que faz salivar? Ou aquele sorvete cremoso, saboroso, dos deuses? Se depender de pesquisadores da UEM, a partir de 2024 eles continuarão exatamente assim – irresistíveis -, com a enorme vantagem de preservar a integridade do sistema circulatório de seus apreciadores.
Isso porque a indústria alimentícia tem até o fim de 2023 para banir a gordura trans dos alimentos processados e ultraprocessados, conforme a RDC 632/22, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Advinda principalmente da conhecida gordura vegetal hidrogenada, creme vegetal ou gordura parcialmente hidrogenada, a gordura trans passou a ser utilizada com vigor pela indústria alimentícia a partir dos anos 1970. Produzida durante a hidrogenação de óleos vegetais, tem como principais vantagens a melhora da crocância e o aumento do prazo de validade de alimentos como massas instantâneas, pipoca de micro-ondas, salgadinhos, biscoitos e sorvete, dentre outros. Seria ótimo se não fosse péssimo, pois essa composição contribui com o risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares ao alterar o perfil lipídico, aumentando o colesterol “ruim” (LDL) e diminuindo o colesterol “bom” (HDL). A gordura trans também pode ser encontrada em produtos lácteos ou na carne de ruminantes, que a produzem no processo de digestão.
O que fizeram pesquisadores do APLE-A/UEM – Analítica Aplicada a Lipídios, Esterois e Antioxidantes, para auxiliar a indústria a cumprir o combinado imposto pela Anvisa? Desenvolveram o organogel, até o momento a alternativa ganhadora do pódio nos quesitos saúde e integridade dos alimentos. Orientado pelo professor doutor Oscar Oliveira Santos Junior, o doutorado em Ciências de Alimentos Bruno Henrique Figueiredo Saqueti colocou a mão na massa, ou melhor, em ácidos graxos saturados, e o resultado obtido foi além das expectativas.

Gordura boa é a melhor gordura
Quem, assim como eu, tem vaga lembrança da diferença entre gordura insaturada, grupo à qual a gordura trans pertence, e gordura saturada, atenção. Com a palavra, o professor doutor Oscar Oliveira, que começa lembrando ser a gordura animal – saturada – pouco benéfica à saúde se consumida em excesso. Para substituí-la em alimentos triviais – pães, manteigas etc – surgiu a gordura vegetal hidrogenada – com a consistência de saturada – mas com cadeia carbônica insaturada. Esse ácido graxo possui carbono e hidrogênio em sua estrutura. E entre os carbonos há ligações químicas, cada um tem que interagir com outro. Nos saturados, a ligação é simples. Os insaturados têm pelo menos uma dupla ligação entre os carbonos.
Desenhando: saturado tem estrutura quase linear, são mais estruturas químicas interagindo umas com as outras. Romper esta interação demanda muita energia e aquecimento para separar as moléculas. À temperatura ambiente, considerada a 25°C, a estrutura é sólida porque as moléculas estão muito próximas. É preciso mais de 25°C para derretê-la.
Poli-insaturado não tem cadeia linear. A insaturação forma um ângulo, como se fosse um cotovelo, para essa ligação. Onde caberiam 4 ou 5 moléculas cabem 2 ou 3. A distância entre elas também é maior em função deste cotovelo. Quanto mais distância, menos energia para romper a interação. Ou seja, quanto mais insaturações, mais angulações, mais líquida a substância.
“Se pensarmos que a temperatura do nosso corpo é 37°C, substâncias com ponto de fusão menor que 37°C estarão líquidas, fluindo bem. Ao contrário, substâncias com ponto de fusão maior do que 37°C terão dificuldade de fluir. Por isso aumenta a consistência do sangue se tiver muito lipídio saturado”, diz Oliveira.

Além da temperatura de derretimento elevada, nosso organismo não reconhece os ácidos graxos trans para ser metabolizados, motivos pelos quais os ácidos graxos trans, presentes na gordura vegetal hidrogenada, são de difícil metabolização e acabam entupindo nossas veias e artérias. Bem faz a Anvisa em eliminá-los das refeições nossas de todo dia.
Antes de prosseguir, um lembrete oportuno. “A gordura é muito importante nos produtos industrializados, sendo responsável por características organolépticas como maciez, sabor e palatabilidade, entre outros. Não há como retirá-la dos alimentos por causa dos malefícios, por isso a importância da substituição. Precisamos de gordura, mas gordura saudável”, explica Oliveira. Bingo!
Sorvete com gosto de sorvete
É isto o que faz do organogel o mocinho da trama. Preparada em laboratório à base de óleos e estruturantes, a substância permite a inclusão de elementos ricos em ômegas e outros tão benéficos à saúde quanto. À temperatura ambiente é sólido, pastoso. E o que é melhor, por ser rico em poli-insaturados tem a temperatura de degradação próxima à do corpo humano, fluindo pelo sistema circulatório sem encontrar – muito menos sem ser – barreiras. “Se fosse possível hierarquizar o que faz menos mal ao organismo, a ordem seria organogel, gordura animal e só então a gordura vegetal hidrogenada”, afirma Oliveira.
Segundo o professor, as primeiras pesquisas sobre organogel começaram no Brasil em meados de 2015, na Universidade de Campinas (Unicamp). Na UEM, os integrantes do APLE-A iniciaram os trabalhos em 2022, e Bruno Saqueti é aluno de doutorado de Ciência de Alimentos nessa linha. Há outros dois trabalhos de doutorado na iminência de publicação e um aluno de iniciação científica trabalhando na mesma linha de pesquisa.
Saqueti desenvolveu um sorvete de base láctea convencional – óleo + estruturante -, sem adição de sabor, para verificar se haveria ou não interferência do organogel. Entre as variáveis analisadas, a textura e a qualidade nutricional destacaram-se. “Conseguimos resultados que nem esperávamos. No teste sensorial preliminar não sentimos sabor algum. A consistência é a mesma e a grande diferença é a qualidade nutricional”, comemora o jovem doutor.
Com o uso do estruturante, o óleo de canola que antes estava líquido adquiriu consistência semi-sólida e já como organogel foi utilizado no sorvete (Foto/Arquivo APLE-A) Com o uso do estruturante, o óleo de canola que antes estava líquido adquiriu consistência semi-sólida e já como organogel foi utilizado no sorvete (Foto/Arquivo APLE-A)
O óleo utilizado foi o de canola, rico em monoinsaturado, que é ácido graxo oleico, com diversos benefícios à saúde, principalmente controle de colesterol e prevenção de diversas doenças cardiovasculares. Os estruturantes (substâncias que formam a rede química) foram três, em baixas concentrações, para dar ao óleo a condição ideal de aplicada ao alimento. Enquanto o sorvete com gordura hidrogenada tem ácidos graxos trans, o sorvete com organogel possui alta concentração de poli-insaturados e, no caso, de ômega 3 e 6.
A depender do produto que se pretende, os compostos estruturantes podem ser mais ou menos líquidos ou pastosos. São estes compostos que dão a característica final do alimento.
Outro ponto positivo do organogel é o menor custo em relação à interesterificação, utilizada pela indústria alimentícia como alternativa à gordura trans há cerca de uma década. O processo produz óleos e gorduras com funcionalidades específicas. Por exemplo, o resultado da mistura de ácidos graxos e banha de porco (gordura monoinsaturada). De acordo com Oliveira, a reação é cara e demorada, razão pela qual as pesquisas migraram para os lipídeos estruturados, ou seja, os organogéis.
Apesar da conquista exitosa do APLE-A e da data prevista para a indústria se adequar à nova realidade, os alimentos processados podem demorar para ter o organogel incluído em suas fórmulas. Antes de chegar às prateleiras dos mercados, a formulação criada na universidade deve ser primeiro patenteada para só então ser comercializada. “Este é o papel da ciência. Buscar soluções para os problemas que se apresentam e transferir a tecnologia desenvolvida”, afirma Oliveira.
Frutas revestidas, sobremesa garantida
Aumentar a vida útil de alimentos perecíveis e diminuir o excesso de embalagens plásticas dispersas na natureza foram alguns objetivos do trabalho de mestrado do APLE-A que desenvolveu revestimentos biodegradáveis para frutas. No caso, morangos, que têm 92% de água em sua composição e degradam com apenas cinco dias a temperatura ambiente.
Segundo Oliveira, a água que compõe a fruta é a mesma que permite o crescimento microbiano que a deteriora, murchando o morango em pouco tempo ao ser eliminada por processos metabólicos. Por essa característica, o revestimento deveria evitar a perda de água, sendo semipermeável de dentro para fora.
Feito com produtos biodegradáveis – amido e álcool polivinílico, compostos que dão estrutura ao revestimento – e óleo de soja, um produto da região, o produto praticamente invisível duplicou a vida de prateleira da fruta, de 5 para 12 dias, a 25° C. “Fizemos a 25° C, teoricamente a temperatura ambiente, para a fruta ser mantida fora da geladeira”, explica o orientador do estudo.
Sem alterar o sabor, o revestimento modifica o aspecto da fruta, que ganha mais tempo para ser consumida (Foto/Arquivo APLE-A) Sem alterar o sabor, o revestimento modifica o aspecto da fruta, que ganha mais tempo para ser consumida (Foto/Arquivo APLE-A) Sem alterar o sabor, o revestimento modifica o aspecto da fruta, que ganha mais tempo para ser consumida (Foto/Arquivo APLE-A)
O revestimento não altera o sabor, mas o aspecto da fruta. Os naturais, como a cera de carnaúba ou a parafina, são largamente utilizados. A maçã, o limão, a mexerica ou a laranja bonita, brilhosa, que se destaca na banca de frutas, muito provavelmente está revestida. Na verdade, polida. O polimento também aumenta a vida de prateleira, mas as ceras naturais deixam sabor característico, dependendo da quantidade utilizada, o que não pode acontecer.
De acordo com Oliveira, no começo dos estudos o desperdício de alimentos chamou bastante atenção dos pesquisadores. As dúvidas eram muitas. Como amenizar o problema que tem início ainda no campo, no momento de encaixotar os frutos, continua no mercado, onde às vezes colocam lado a lado frutas que não poderiam estar juntas, e termina indo para o lixo na casa daquele consumidor que tem o olho maior que a barriga, como diria minha avó?
Com o revestimento, todo mundo ganha. “A ideia é o produtor aplicar o produto na colheita, diminuindo o desperdício e a perda de alimentos. No mercado, as frutas revestidas e separadas corretamente terão mais vida de prateleira, e o próprio consumidor terá tempo maior para consumir”, exemplifica Oliveira, descrevendo o melhor dos mundos.

De acordo com o professor, a pesquisa teve início no APLE-A há dois anos e encontra-se em fase avançada. A aplicação por imersão nos morangos deverá ser substituída pela aspersão, facilitando a vida do produtor e do consumidor, fase que deve ser concluída até 2024. O próximo passo será encontrar uma indústria interessada e apta a testar o revestimento líquido.
A pesquisa seguiu do revestimento para o plástico, seguindo a tendência mundial de substituição do mesmo por embalagens inteligentes, biodegradáveis, capazes de proteger o alimento e sinalizar ao consumidor se o mesmo já entrou ou não em processo de decomposição. De acordo com Oliveira, alguns países utilizam essas embalagens para peixes. “Um adesivo muda a coloração conforme a qualidade da carne. Feito com resíduo da casca de uva (antocianina), o adesivo fica roxo quando o Ph da carne está normal e vai mudando para rosado quando está estragando”, diz ele. No APLE-A, os pesquisadores estudam compostos presentes nos resíduos de uva e jabuticaba. Os resultados prometem.
Glossário
Ácidos graxos – são ácidos carboxílicos, componentes presentes nos óleos e gorduras
Ômegas – são ácidos graxos essenciais, moléculas de gordura encontradas em sementes de oleaginosas e que, para ter papel nutricionalmente funcional, devem ser extraídas a frio. Cientificamente é a nomenclatura utilizada para identificar a primeira dupla ligação do ácido graxo da esquerda (metil terminal) para a direita (em direção ao grupo funcional)
Organoléptico – substâncias que podem ser facilmente percebidas pelos sentidos (olfato, visão, paladar e tato).
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Texto: Juliana Daibert
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Juliana Sandaniel
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS:
