Naná Vasconcelos, pernambucano considerado por diversas vezes como o melhor percussionista do mundo, apresentou grande parte da sua produção artística por meio de músicas e melodias. Para ele, a arte é como uma religião, como ele mesmo afirmou em entrevista para o extinto jornal O Diário do Norte do Paraná, meses antes de morrer, em 2016: “Minha religião é a música”.
Para o poeta, dramaturgo e teórico russo Vladimir Maiakóvski: “a arte não é um espelho erguido para a realidade, mas um martelo para moldá-lo”. Para o artista surrealista René Magritte: “A arte evoca o mistério sem o qual o mundo não existiria”. Já para o pintor simbolista Gustav Klimt: “A arte é uma linha em torno de seus pensamentos”. Ou seja, cada um traz uma definição para a arte, de forma que receberíamos mais de 7 bilhões de respostas diferentes, caso pedíssemos a definição para os mais de 7 bilhões de habitantes do mundo.
Entre essas definições, é possível dizer, de forma mais abrangente, que a arte é um tipo de expressão ou de manifestação dos seres vivos. Sim, seres vivos. Alguns estudiosos defendem que aves e outros diversos animais produzem arte. Outros identificam que é algo inato apenas ao ser humano. Esse é um debate acalorado que mistura pesquisas do campo da antropologia, cultura, biologia, neurociência e outras áreas, para definir o que é o assunto desta matéria: a arte.
Para o Prof. Dr. Rael B. Gimenes Toffolo, líder do Grupo de Estudos Interdisciplinar de Arte Interativa (Gritaria) e Diretor de Cultura da Universidade Estadual de Maringá (UEM), de forma mais ampla: “a produção da arte é uma maneira de convidar a pessoa àquilo que é inusitado para ela. Tirar a pessoa do cotidiano e fazê-la repensar sobre a própria forma como ela está vivendo, como o corpo dela age nessa situação provocativa que é a arte. Arte é uma provocação dos sentidos”, define.
E Rael, ainda na missão quase impossível de explicar a arte, fala dela como forma de expressão. Ele afirma que, na produção de uma obra, há alguém ocupando a posição de artista, propondo alguma transformação de um espaço, de uma realidade e de um jeito de viver, para que um outro experiencie isso. A arte é algo para ser experimentada e experienciada.
Dentro dessa impossibilidade de estabelecer o que é arte, existem muitas possibilidades de entendê-la. No áudio abaixo, do professor Rael, é possível ouvir mais uma delas, a de revelar e transformar, revelando-se um papel social das produções artísticas.
Ao ouvir a fala do professor, é possível analisar as famosas e já batidas frases: “A arte imita a vida” e “A vida imita a arte”. Elas fazem sentido, mas, agora, para melhor entendê-las é preciso acatar a sugestão de Rael e substituir a palavra “imita” nessas citações, pensando as frases da seguinte forma: a arte é uma maneira de criar em vida sobre a vida. E por que isso faz sentido?
O processo acontece em movimento circular, como explica Rael: “A gente coloca uma produção artística no mundo a partir de algo que vivemos e que, de alguma forma, virou algo organizado ou desorganizado. Depois, essa produção vai criar um conjunto de percepções, que, caso tenha a capacidade de transformar o outro, transformará uma ou mais vidas. Então, você tem artes criadas pela vida e vidas transformadas pela arte”.
Quando se fala de percepções do outro em relação a uma obra de arte, Rael lembra que elas diferem para cada um, para cada individualidade. Essa compreensão depende do espaço em que vive o indivíduo, da educação que ele tem, dos gostos, da história e de todas as experiências de vida.
O mesmo vale para o autor. O artista indígena contemporâneo, por exemplo, utiliza um modelo de arte européia, da arte como objeto, para materializar e demonstrar não só a própria identidade, mas as diferentes identidades das tribos indígenas e suas concepções de arte: “A arte indígena para nós está essencialmente no dia a dia, na comunidade, na coletividade, nas práticas, que transcendem uma habilidade manual ou oral. Pressupõe todo um composto de vida, onde a arte maior é esse viver harmônico com o ambiente, isso que o Ocidente já separou como natureza”, explica Jaider Esbell, artista plástico indígena da etnia Makuxi, de Roraima, em entrevista para o site Brasil de Fato, semanas antes de ser encontrado morto em casa, em novembro do ano passado.
O que Jaider faz é trazer para reflexão uma arte que é originariamente brasileira, uma produção artística que fluía nas comunidades e tribos, antes dos portugueses invadirem o Brasil (terra dos indígenas). Eram bastantes musicais, visuais e sensoriais. A produção artística indígena contemporânea continua trazendo a espiritualidade e a denúncia, sendo sempre uma arte política, não deixando que eles sejam vistos como algo histórico do passado, mas atualizando a própria existência enquanto povos plenos, com filosofias, com modelos de educação, direito e toda uma sociedade constituída.
Esse movimento de busca por uma identidade nacional foi um dos grandes motivadores da Semana de Arte Moderna, que completa 100 anos em 2022. Naquele momento, artistas que, inclusive foram formados em escolas européias, começaram a discutir e a pensar o que seria uma arte brasileira. O movimento propunha uma série de interpretações do fazer artístico, incorporando a ideia de “comer” o que era de fora e “regurgitar” algo com a originalidade brasileira, numa antropofagia (significado no fim do texto) que remete a uma imagem estereotipada de índio canibal. Tarsila do Amaral, uma das participantes da Semana, é autora do quadro mais famoso do Brasil “Abapuru”, que foi interpretado e contemporaneizado por diversos artistas, como Alexandre Mury. Os reflexos da semana ainda se encontram em produções contemporâneas, na abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos do Rio 2016, por exemplo, os organizadores se inspiraram nas paletas de cores e algumas contribuições desses artistas brasileiros.
Saindo da semana de arte, uma outra artista que se valeu da arte para discutir os papéis sociais é a norte-americana Cindy Sherman, que utiliza o próprio corpo como modelo para criar diferentes personagens em suas próprias fotografias, fazendo associações sociais, visuais e comportamentais, que levam o público a refletir sobre os diferentes papéis desempenhados (ou seriam rotulados? estabelecidos?) pelas mulheres na sociedade contemporânea. Ela utiliza suas obras para lançar olhares para outros entendimentos sobre o corpo e os papéis de gênero, por exemplo. Cindy anula a sua própria identidade para questionar outras identidades. Atualmente, ainda produzindo e experimentando, ela aproveita as redes sociais, como o Instagram, para divulgação e exposição. Essa utilização de meios não convencionais para a apreciação da arte, como a rede social, é um dos caminhos que a arte moderna apontou e que é mais explorada cotidianamente. Não precisamos mais ir ao museu para apreciar arte, ela pode estar em qualquer lugar.
Função
A arte também se apresenta com muitas e muitas funções, inclusive a de não ter função, como defendem muitos estudiosos. Algumas manifestações artísticas podem ser políticas, pedagógicas, outras, podem funcionar como entretenimento, para refletir, para fazer rir e, dessa forma, podemos citar tantas outras.
Atualmente, dois objetivos estão muito presentes nas produções artísticas. O professor Rael cita o objetivo de chocar e o de atingir e mexer com a percepção do outro, de forma que as pessoas enxerguem a(s) própria(s) realidade(s) de uma forma não cotidiana e não convencional, como estão acostumadas. É com isso que boa parte da arte contemporânea trabalha, inclusive a arte interativa.
Na UEM, entre os grupos de pesquisas da área das artes, dois específicos estão diretamente relacionados com os objetivos citados acima: O Grupo de pesquisa e experimentação em arte, subjetividade, educação e diferença (Dobra), criado pela artista e professora do curso de Artes Visuais da UEM, Roberta Stubs, e o Grupo de Estudos Interdisciplinar de Arte Interativa (Gritaria), criado e liderado pelo próprio professor Rael B. Gimenes Toffolo.
Esses grupos investigam as provocações da arte e convocam, em alguns casos, os espectadores a saírem da sua posição de “apenas ver e ouvir” a arte, e participarem de sua criação. Na história da arte, vimos isso com artistas que convidam o público a participar, dançar, vestir roupas, consumir algo. Grupos de improvisação teatral e de performances são bons exemplos. Mas dois nomes das artes plásticas são sempre mencionados nesse sentido, pois inauguraram o que podemos chamar de “arte participativa”, os brasileiros: Hélio Oiticica e Lygia Clark. O uso do recurso computacional para propor interatividade foi um movimento natural, tendo em Waldemar Cordeiro um dos pioneiros no mundo. As experimentações e problematizações dos grupos de pesquisa na UEM atualizam e levam as possibilidades da arte para novos e inexplorados lugares. Mas como a arte é um campo aberto, muito ainda tem que se fazer.
Para tratarmos melhor sobre a arte contemporânea, passemos à próxima reportagem desta semana: Quando o corriqueiro se transforma em obra de arte?
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio e Tiago Franklin Lucena
Edição de áudio: Rafael Donadio
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior