Cabeça vazia, oficina de uma obra de vida

A ilustração retrata uma pessoa relaxando em uma rede azul em um ambiente interno, com plantas ao redor, uma janela mostrando uma cidade ao entardecer e cortinas suaves. A paleta de cores inclui tons quentes e verdes. A cena transmite tranquilidade, descanso e conexão com a natureza.
Descanso não deve ser um luxo, mas sim uma necessidade que nos lembra de respeitar nossos limites

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A rotina acelerada é uma realidade para muitos de nós, não temos como negar. Trabalhadores que enfrentam longas horas no transporte público e universitários que estudam à noite e trabalham em tempo integral, por exemplo, frequentemente, se veem diante de um dilema: usar o pouco tempo livre para descansar ou evitar o ato de fazer nada, que é interpretado como preguiça.

Nas redes sociais, somos constantemente bombardeados por coaches dizendo que dormir é perda de tempo, já que, enquanto descansamos, outros estão trabalhando mais. Há, ainda, bordões que marcam as redes como “por que você não conquistou tudo que queria? Será que não foi falta de esforço?” 

Essa ideia de que tudo está sob nosso controle e que o excesso de trabalho é sinônimo de sucesso se tornou muito comum. O problema é que, ao buscar alcançar a “vida perfeita” que nos é imposta, acabamos percebendo que nunca há tempo suficiente para cumprir todas as expectativas. Essas cobranças são fruto de uma sociedade que glorifica a hiperprodutividade e deixa pouco espaço para o equilíbrio e o bem-estar.

É nesse ritmo frenético e incontrolável que, infelizmente, as nossas noites de sono se tornam cada vez mais curtas, as pausas para as refeições se transformam em um desperdício de tempo, e nossos hobbies são deixados de lado, simplesmente, porque não oferecem retorno financeiro.

“Ah, mas logo chegam minhas férias e, aí sim, vou poder descansar” já se tornou um pensamento normal. No entanto, será que descansar, realmente, é um luxo só para o período de férias? A professora do curso de Comunicação e Multimeios da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Ana Cristina Teodoro da Silva, aborda a temática do ócio em suas aulas e nos alerta sobre a insustentabilidade de nos cansarmos diariamente sem reservar tempo para recarregar as energias antes de iniciar um novo ciclo de esforço.

Ela faz questão de reforçar que o problema não é o cansaço. “Trabalhar cansa, correr no bosque cansa, ler cansa… Enfim, as coisas boas também são cansativas. O importante é lembrar que, depois de nos cansarmos, precisamos descansar. Estamos vivendo de maneira que acumulamos cansaço e ultrapassamos o limite do esgotamento físico e mental, já que não somos máquinas, e achamos que fazer uma pausa seria um erro.”

Na imagem, vemos a professora Ana Cristina, que tem cabelo curto e ondulado, de cor castanha escura com fios grisalhos. Ela está com a cabeça levemente inclinada, apoiando o queixo em sua mão. Seu olhar é reflexivo e direcionado para o lado, com um leve sorriso no rosto. O fundo é externo, com galhos de árvores e luz natural, transmitindo uma atmosfera tranquila e contemplativa.
Professora Ana Cristina Teodoro da Silva (Foto/Arquivo Pessoal)

Assim, adiar o descanso se torna cada vez mais comum e o ócio e lazer passam a ser vistos como um prazer culposo. O ócio, no entanto, nem sempre foi encarado como sinônimo de preguiça, como nos dias de hoje. Na verdade, ele desempenha um papel vital e é muito importante para o descanso. Prova disso é que, ao longo da história e em diversas culturas, ele já foi ou é valorizado como um privilégio e, até mesmo, uma virtude.

Mas, afinal, o que é o ócio? Precisamos entender o que existe por trás desse conceito que foi tão demonizado com o passar do tempo. A professora Ana explica que o ócio, em sua essência, significa literalmente fazer nada, inação, descanso. Esse conceito está completamente desvinculado de qualquer atividade produtiva e é uma ótima opção para recarregar as energias. 

E não se engane: fazer nada significa… fazer nada. Mexer no celular, assistir vídeos curtos por horas e rolar o feed do Instagram, por exemplo, foi normalizado como uma forma de descanso, mas, na realidade, exige um engajamento mental considerável. Por isso, não pode ser considerado como parte do verdadeiro ócio.

O tempo de ócio pode ser uma oportunidade para refletir sobre nossas interações recentes. Perguntas como “como me senti com essa conversa?” ou “o que aprendi de interessante?” ajudam a acalmar a mente. Com essa liberdade mental, criamos espaço para que a criatividade floresça. “É interessante, no fazer nada, observar nosso movimento mental, para onde vai o pensamento. O que vem à cabeça? Qual o desejo? A mente é insuportavelmente agitada? Se sim, merece cuidado”, lembra a professora.

Ana Cristina destaca que a criatividade se manifesta em diversas atividades, como na pintura, no esporte, na música, leitura, na cozinha e, principalmente, na construção da nossa própria obra de vida, que é a forma como vivemos e damos sentido à nossa existência. “Como artistas da nossa própria obra, não podemos dedicar a ela apenas os fins de semana ou as férias. Nossa rotina também é parte desse legado, e valorizar o tempo de qualidade é um investimento essencial nele”, destaca a professora.

Isso não significa, no entanto, que fazer nada seja o único recurso para o descanso. O tempo de lazer de qualidade também é um grande aliado no desaceleramento da rotina frenética. Atividades que proporcionam prazer, conforme os gostos pessoais de cada um, como caminhadas, leitura, prática de yoga, meditação ou até mesmo orações para quem é religioso, podem trazer benefícios extraordinários para a saúde.

O infográfico explica a diferença entre ócio e tempo de lazer. No ócio, a pessoa está completamente inativa, sem estímulos externos ou tarefas produtivas. Ele serve para recarregar energias, acalmar a mente e estimular a criatividade, favorecendo a introspecção e a liberdade mental. Já o tempo de lazer envolve atividades prazerosas e relaxantes, como leitura, caminhadas, yoga ou hobbies. Essas atividades exigem algum nível de engajamento físico ou mental, ajudam a desacelerar a rotina e promovem o bem-estar. Visualmente, o infográfico destaca as diferenças com textos claros e ilustrações que simbolizam descanso e relaxamento

Quando estamos inseridos em um ritmo frenético, o resgate do tempo de lazer de qualidade pode ser um processo lento, mas que vale totalmente a pena, já que o descanso não deve ser limitado às férias. Algumas práticas que podem auxiliar a qualificar o tempo, segundo Ana Cristina, incluem comer sem o celular, o que nos permite apreciar o sabor dos alimentos e o ambiente ao redor. Além disso, desconectar-se das telas antes de dormir e ao acordar auxilia a romper com a falsa sensação de “fazer nada”, que, na verdade, nos prende e prejudica a concentração. Essas ações nos ajudam a refletir criticamente sobre a rotina, que muitas vezes é executada no modo automático. 

A professora Ana Cristina aproveita para destacar o pensamento crítico como chave para a mudança. “Quando percebemos como a pressa invade nosso dia, entendemos que o pensamento exige tempo, e que a busca constante por produtividade prejudica nossa capacidade de tomar decisões e enxergar o descanso como prioridade para o nosso bem-estar. Essas práticas podem ser um primeiro passo para percebermos o tempo como um recurso valioso para o pensamento. A partir dessa sensibilidade, conseguimos valorizar o ócio e o lazer e, aos poucos, desconstruir o mito de que o ócio e as pausas são algo negativo”, lembra Ana Cristina. 

No entanto, a professora enfatiza que essas práticas, sozinhas, não são suficientes para resolver o problema do ritmo acelerado de uma sociedade que busca produtividade 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Não podemos encarar esse problema como algo puramente individual. Ou seja, apenas com ações individuais não conseguimos retomar o significado positivo do ócio e valorizar o tempo de lazer. Isso acontece porque, por mais que tentemos reservar momentos para nos desconectar das tarefas do trabalho ou da universidade, esse tempo, muitas vezes, é invadido por demandas externas. Um exemplo disso é quando recebemos mensagens de trabalho fora do horário comercial, nos fins de semana ou até durante as férias.

“Um dos maiores problemas para quem tem alguns tipos de trabalho é que o celular unifica conversas tanto pessoais quanto profissionais. Então, se vou mandar uma mensagem pra minha mãe no fim de semana, acabo vendo que meu chefe me mandou alguma coisa. Por mais que não seja respondida imediatamente, aquela mensagem fica na minha cabeça e pode atrapalhar o descanso”, explica a professora.

A luta por jornadas de trabalho mais saudáveis é, acima de tudo, uma questão política. É fundamental cobrar dos representantes em cargos públicos ações concretas, como a implementação de jornadas mais curtas, a redução das pressões excessivas no ambiente de trabalho e a promoção de políticas que incentivem o lazer e o bem-estar.

 Imagem de uma manifestação com várias pessoas segurando faixas e cartazes. A faixa principal diz: "NÃO À ESCALA 6X1 - Pela vida além do trabalho!". Outros cartazes ao fundo trazem frases similares, reforçando a luta por melhores condições de trabalho e qualidade de vida. Ao redor, prédios altos indicam que o protesto ocorre em um ambiente urbano.
Movimento pelo fim da escala 6×1 (Foto/Reprodução)

Tomar consciência de que é insustentável ter uma rotina hiperprodutiva, que negligencia o tempo de qualidade, é o primeiro passo para resistir a esse sistema. Em seguida, podemos refletir individualmente sobre o que está ao nosso alcance: temos controle sobre a situação que nos incomoda? Podemos mudá-la? Nem sempre é possível trocar de emprego facilmente, por exemplo, especialmente, quando dependemos do salário para viver (exatamente o que discutimos antes, de que essa luta é política e não inteiramente individual). No entanto, podemos adotar limites para minimizar os impactos, como evitar enviar ou responder mensagens fora do horário de trabalho.

No processo de reconhecer a importância do ócio e do tempo de lazer para a saúde física e mental, é comum sentir culpa. Pensamentos como “será que estou certo de descansar enquanto meus colegas trabalham extra de casa?” ou “será que esse hobby deveria mesmo ocupar meu tempo livre, já que não me traz nenhum lucro?” são frequentes. Mas precisamos encarar com cuidado essas questões para não interromper a busca por um descanso merecido. Se o sentimento de culpa persistir ou se, na tentativa de descansar, a agitação e ansiedade causam desconforto, é importante procurar a ajuda de um profissional de saúde mental.

As férias estão chegando e são um convite especial ao descanso, mas elas não precisam ser a única época do ano em que nos permitimos realmente parar. Nosso corpo e nossa mente pedem descanso a cada dia. Ter escuta para ouvir os sinais é já um passo no caminho de uma vida plena. Aproveitar as férias é importante, claro, mas cultivar pequenos momentos de desconexão e prazer ao longo do ano é o que realmente transforma a rotina. Afinal, descansar não é um luxo, e sim uma necessidade para viver com mais equilíbrio e significado.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Luiza da Costa
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Luiza da Costa
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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