Café mais que especial: vai uma xícara aí?

Arte de Murilo Mokwa
Tem gente empreendedora que se desdobra para oferecer uma bebida de primeira qualidade no norte do Paraná

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N

o século XX, o café foi muito importante para o desenvolvimento do Paraná. Durante a década de 60, o Estado era considerado um dos maiores produtores cafeeiros do Brasil, concentrando quase metade da produção nacional. Mas, esse cenário se modificou em 1975, com a geada negra, que acabou com lavouras inteiras. Desde então, a região não mede esforços para se reerguer e, hoje em dia, grande parte deste movimento se dá por meio da agricultura familiar. E tem mais, a atividade cafeeira ganhou um componente empreendedor: a produção de cafés especiais, que surgiu como uma oportunidade para restabelecer a economia da região.

Uma das pessoas envolvidas nesta nova era cafeeira do Paraná é Nira Souza, que mora no município de Tomazina, no bairro do Matão. A história da família de Nira no cenário da agricultura começa há mais de 100 anos, em 1915, quando seus bisavós maternos chegaram ao bairro do Matão. Não muito tempo depois, já deram início às plantações de café. Após esse primeiro pontapé, o amor pela produção cafeeira foi passado de geração em geração e com a Nira não foi diferente. Ao ver seus familiares e, principalmente, seu pai trabalhar no campo, desenvolveu uma enorme conexão com o produto que transformou a vida de sua família.

Bairro do Matão (Crédito da Foto: Bem Contado)

Mas os cafés especiais entraram na vida da produtora meio que por destino. Ela já tinha ouvido falar sobre eles nas feiras do Norte Pioneiro do Paraná. Tinha muita curiosidade em conhecer mais a respeito da produção para, também, entrar no ramo. Mas ela pensava que, por serem especiais, deviam ser cultivados por grandes fazendeiros.

A visão dela mudou quando foi criada a Associação de Produtores de Cafés Especiais do Matão (Aprocem). Ela viu seus familiares e pessoas do bairro entrarem nela, mas a cooperativa era somente de homens. Havia algumas mulheres que participavam, mas porque seus maridos eram associados e, como Nira é solteira, tornou-se mais complicado entrar sozinha. 

Ari Dias
Nira Souza (Ari Dias/AEN)

Por causa disso tudo, os cafés especiais vieram para a vida da empreendedora, definitivamente, em 2013, com o projeto Mulheres do Café, idealizado pelo  Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-PR). A iniciativa tem como principal objetivo fortalecer o papel das mulheres no contexto da agricultura familiar, qualificando o trabalho delas e dando voz e oportunidades para demonstrarem cada vez mais a potência que possuem como produtoras e empreendedoras. 

Por conta do café especial necessitar de um cuidado mais específico em sua produção, para atingir determinada qualidade, Nira explica que “as mulheres têm uma facilidade maior em aprender e colocar em prática os conhecimentos adquiridos com especialistas no assunto, e que o projeto vem ajudando muito no desenvolvimento das habilidades que suprem as demandas exigidas pelo mercado desse tipo de café”, destaca a agricultora.

Em 2014, o irmão de Nira a convidou para se integrar à Aprocem e, a partir desse convite, ela chamou mais duas primas para também se associarem. Com a entrada delas na Associação, o nome da entidade foi alterado para Approcem, incluindo mais um “p” na sigla, passando a ser chamada de Associação de Produtores e Produtoras de Cafés Especiais do Matão. “Esse ‘p’ tem um significado tão grande para nós. Dá muito orgulho em saber que eu e minhas primas começamos a mudar a história dentro do nosso bairro e de uma associação que só homens faziam parte”, revela a produtora. 

Hoje, Nira é presidente da Associação das Mulheres Cafeicultoras do Norte Pioneiro do Paraná (Amucafé), um grande feito para ela. Desde quando via seus pais nas plantações de café, reconhecia o quão dignificador aquele trabalho era e o orgulho que a cafeicultora sente por tudo isso é inestimável. “O trabalho quando é feito com amor não é trabalho, é realização. O café é o meu sustento, faz parte da minha história e é a minha paixão. Eu sou, orgulhosamente, a mulher do café”, declara a empreendedora, que agora, é reconhecida por colocar no mercado um café super especial.

Nira e seu pai Edesio (Crédito da Foto: Arquivo pessoal)

Mas, o que é café especial? 

O café é, sem dúvida, uma das bebidas mais consumidas no mundo inteiro. Todo mundo conhece alguém que não fica sem café nem um dia. Mas, será que essas pessoas sabem a qualidade do produto que estão consumindo? Para avaliar o café, existe um protocolo internacional de metodologias de qualidade da Specialty Coffee Association, chamado de protocolo SCA que é a Associação de Café Especiais. A partir dele, são avaliados os atributos de qualidade da bebida em si, que são chamados de intrínsecos (relacionados somente ao café). É aí que se determina a qualidade do grão, qual a taxa de defeitos que ele possui e, dependendo do percentual de defeito, o produto pode ter maior ou menor desconto no preço. 

Depois, são selecionados os melhores grãos para a análise da bebida. Esse passo conta com procedimentos super controlados, definidos também em protocolos de torra e moagem. Após esse processo, é feita a prova da bebida pelos chamados Q-Graders, provadores credenciados que devem ter passado por treinamento com certificado. Nessa degustação, identificam-se as características do café. Os provadores avaliam a bebida em 10 critérios: aroma/fragrância, sabor, retrogosto, acidez, uniformidade, corpo, balanço, doçura, ausência de defeitos e conceito final. Confira abaixo a tabela com o protocolo SCA:

Tabela com os 10 critérios SCA

A partir desses critérios, os Q-Graders determinam a pontuação da bebida em uma escala que chega a 100 pontos. O café com pontuação acima de 80 já é considerado um café especial, segundo o protocolo SCA. Entre 80 a 83, estão os chamados cafés de entrada, que são cafés limpos e sem defeito, porém, não possuem grandes sabores. Com 86 ou mais pontos, encontram-se os cafés que, normalmente, conseguem pontuação excepcional em algum critério, esses são cheios de sabores e, por consequência, são os mais valorizados.

Para a definição do valor do café, também existem os componentes extrínsecos (não dependem somente do café). O simples fato de ser produzido em determinada região, por exemplo, já pode atribuir valor ao produto. Esse é o caso do café do Paraná, que por ser de um local com condições específicas de solo e clima, está buscando dar novo significado à cafeicultura, superando a história da geada negra e buscando a qualidade, por esse motivo, pode ter maior valorização. 

A pequena produção, a garantia do comércio justo (fair trade), a produção orgânica e a agroecológica, os apelos de gênero, como, por exemplo, o Mulheres do Café, grupo do qual a Nira faz parte, são levados em consideração. Também pesa a história, a situação e a importância do grão para o desenvolvimento social de um produtor, ou de um grupo. Enfim, todos são componentes extrínsecos que podem agregar valor ao café.

No vídeo abaixo, são apresentados os diferentes tipos de café:

É importante reconhecer as diferentes nomenclaturas que existem quando se trata do café, pois a maioria das pessoas não sabe o que elas significam. Quem se interessa em trabalhar a produção dos cafés especiais é Sandra Schiavi, professora do Departamento de Administração, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, e do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPA /UEM). Economista de formação, a docente é líder do Grupo de Estudos em Estruturas Coordenadas (GECor), estuda a coordenação de cadeias agroindustriais e estratégias para inserção de pequenos produtores em cadeias de alto valor agregado, como é o caso dos cafés especiais. 

O começo do trabalho de Sandra com os cafés foi em 2012, por meio de orientações em trabalhos de mestrado sobre o tema. A pesquisa nessa cadeia avançou e, em 2018, ela iniciou um projeto sobre a produção de cafés especiais no Paraná. Naquele mesmo ano, o assunto também se tornou um projeto de extensão “Agricultura Familiar e Agrossistemas Sustentáveis: ações para gestão e desmistificação da qualidade na cadeia de cafés especiais no Paraná”, coordenado por ela. A professora atuava com os alunos de pós-graduação, além de bolsistas de extensão, contando com o apoio do Programa Universidade Sem Fronteiras e da empresa exportadora de cafés Capricórnio Coffees. A ideia era trabalhar junto à agricultura familiar, para que houvesse a compreensão do que é o mercado dos cafés especiais e, assim, os produtores pudessem empreender nele. 

Uma parte do projeto tratava a questão do mercado, discutia com os produtores as formas de comercialização e como eles conseguiriam acessá-las, visto que podem vender para cafeterias locais e, até, para exportadores internacionais, fazendo com que o café chegue em países da Europa, nos Estados Unidos e na Austrália, por exemplo. Entretanto, compradores como esses exigem determinados níveis de qualidade do café e o trabalho do grupo de levar uma noção ao produtor sobre o funcionamento da cadeia para além do campo foi essencial, porque, normalmente, ele era movido pelo mercado de cafés convencionais.

Havia pessoas dessa área que ajudavam, também, os produtores a desenvolverem as técnicas para produção desses cafés. Atingir qualidade significa mudar os métodos. “Os produtores precisavam entender que eles tinham que mudar a forma do trato cultural do café, a maneira de adubar, as considerações da nutrição de solo, a parte de colheita (colher o café maduro ou separar o verde do maduro), a de pós-colheita, da separação e da secagem, porque é necessário muito cuidado e a adoção de um processo distinto do que se tem para o café convencional”, explica a professora Sandra.

O projeto coordenado por ela colabora, inclusive, com o grupo Mulheres do Café, citado no início do texto. A equipe da UEM chegou para aprimorar o crescimento pessoal das agricultoras do Matão. No começo, para Nira e as demais, parecia muito distante da realidade delas alguém do meio acadêmico se prontificar a ir até o bairro e vivenciar o cotidiano do campo, seja lá para qual objetivo fosse. Os integrantes do grupo ajudaram a desmistificar essa ideia, visto que foi estabelecida uma troca mútua de saberes entre eles e as produtoras. Logo, ambos os lados passaram por constantes aprendizados. “Além de contribuir para a disseminação das informações a respeito dos cafés especiais, o projeto trouxe para nós o reconhecimento do valor de cada uma dentro da sociedade”, declara Nira.

Papel da Universidade

Para a professora Sandra, a Universidade é quem tem o papel de levar esse conhecimento científico teórico para a sociedade, porque tudo que é falado para os produtores, é embasado em muito estudo. “Não é uma mera prestação de serviços. É a gente levar, de fato, a construção teórica, a ciência para aquele grupo específico de produtores. Eu acho que esse é o melhor ganho para nós aqui na Universidade, e para comunidade, é saber que a gente consegue, sim, fazer tudo que a gente precisa fazer em termos de pesquisa, ao mesmo tempo que a gente atende às necessidades da sociedade empreendedora e contribui para a economia do país”, afirma Schiavi.

Com a ajuda do projeto, os produtores passaram a entender a importância de pensar e agir coletivamente em algumas situações e o quão importante é pensar na qualidade do produto, não só pelo fato de se obter um café excepcional, gerando mais lucro para ele, mas também, por se estar tratando de um alimento que será entregue para o mercado consumidor e é preciso garantir o mínimo de segurança do alimento, porque, dependendo do nível de defeito do café, ele terá em sua composição toxinas maléficas à saúde. Com essa mentalidade, o produtor adquire noção daquilo que está sendo feito lá na ponta e isso gera uma consciência sobre o processo, e a participação dele nessa cadeia, que é muito importante. Ele se sente valorizado e passa a enxergar que há um caminho a ser seguido. 

Sandra destaca que, quando se fala de cafeicultura no Paraná, também há o problema de envelhecimento dos produtores, que acaba sendo agravado pela falta de interesse na sucessão familiar. “Talvez os filhos não queiram continuar naquela atividade exercida pelos pais. E, à medida que a gente começa a trazer essas outras possibilidades, que são trabalhosas, obviamente, e que envolvem um nível de profissionalismo e gestão muito maior, começamos a criar novos panoramas para os agricultores”, diz Schiavi.

A Isis é um exemplo das ações do projeto junto às famílias. A menina de 14 anos conta que passou a desejar estudar Agronomia na faculdade após ver o trabalho da professora e do grupo da UEM na produção de seus avós.

Ísis Santos de Cambira - PR (Arquivo pessoal)
Ísis Santos, de Cambira – PR (Arquivo pessoal)
Ísis conta o impacto do projeto do grupo da UEM em sua percepção de vida

Em um curto prazo, Sandra conta que talvez não aconteça uma resposta tão grande em termos de aumento da produção dos cafés especiais, apesar disso estar acontecendo aos poucos, porém, hoje, já se tem cafés de melhor qualidade comparado a alguns anos atrás. “Mas tem esses outros componentes que acabam gerando mudança, uma percepção por valor, uma chance de resolver problemas de sucessão familiar a partir da inserção de mercados que, de fato, permitem gerar mais renda para o produtor. Em uma busca de canais de comercialização diferentes, eles começam a enxergar como funciona e a encontrar alternativas para sair daquele canal convencional de vender café para cafeeiras, sem nem saber qual é a qualidade do produto”. A professora explica que a falta de conhecimento sobre o mercado e a qualidade do produto pode trazer problemas para a negociação: “quando não se sabe a qualidade do produto, o comprador paga o que quer e joga o preço lá para baixo”, expõe Schiavi.

Como presidente da Amucafé, a empreendedora Nira é uma das pessoas que lidera a produção do café especial no Paraná, contribuindo para o desenvolvimento desse mercado, e colaborando para o restabelecimento da região como grande produtora de grãos de qualidade. Assim, a produtora alinha a tradição familiar e o amor pelo café que carrega desde pequena com as novas oportunidades nesse ramo.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Ana Paula Machado Velho, Maria Eduarda de Souza Oliveira e Milena Massako Ito
Edição de áudio: Maria Eduarda de Souza Oliveira e Milena Massako Ito
Roteiro de vídeo: Maria Eduarda de Souza Oliveira
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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