Capital de Ciência: conhecimento, poder e desigualdade

Explorando como o Capital de Ciência no Brasil influencia o poder e redefine o acesso ao conhecimento

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“Conhecimento é poder” assim como “dinheiro [também] é poder”. Você certamente já se deparou com uma dessas frases, mas entende a relação de poder que se constitui entre capital e ciência?

O que vem à sua mente quando ouve a palavra ‘capital’? Dinheiro? Recursos? Poder? E se eu lhe dissesse que existe um tipo de capital que não está necessariamente atrelado a dinheiro, mas pode ser crucial para o sucesso e entendimento no mundo da ciência? Estamos falando do capital de ciência.

Esse conceito, apesar de pouco conhecido, é fundamental para entender como as pessoas se conectam com a ciência e como o acesso ao conhecimento científico pode variar, de acordo com diferentes fatores sociais.

Em um mundo cada vez mais movido pela informação e tecnologia, o conhecimento científico se torna uma moeda valiosa, capaz de transformar sociedades, economias e até mesmo dinâmicas de poder global. Aqueles que detêm conhecimento especializado, sobretudo nas áreas de ciência e tecnologia, acumulam capital científico, que, por sua vez, pode ser convertido em influência, recursos econômicos e prestígio social.

O capital de ciência, diferentemente do capital financeiro, não é simplesmente acumulado, mas também compartilhado e disseminado. No entanto, o acesso a esse conhecimento nem sempre é equitativo, criando uma hierarquia na qual indivíduos, instituições e países com maior acesso e capacidade de produção científica dominam o cenário global. Esse domínio científico pode, então, ser traduzido em poder econômico e político, reforçando a posição de quem já detém esses recursos.

Portanto, o conhecimento, ao ser apropriado e capitalizado, se torna uma ferramenta de poder que não só possibilita avanços tecnológicos e científicos, mas molda as relações de poder em um mundo onde a informação e o domínio técnico são cruciais.

Em uma entrevista com o pesquisador da Universidade Federal do Paraná, Jailson Rodrigo Pacheco, doutor em Educação em ciências e matemática, mergulhamos nesse tema a fim de entender qual relação se estabelece entre capital e ciência. Porque ela pode ser a chave para você expandir seus horizontes no universo do conhecimento e, mais do que isso, compreender melhor o mundo e as oportunidades à sua volta.

Na imagem está o professor e pesquisador Jailson. Homem branco, careca, veste uma camisa social preta xadrez e está sorrindo.
Professor Jailson Rodrigo Pacheco da UFPR (Foto/Arquivo Pessoal)

Mas, atenção! Ao longo desta matéria, usamos os termos “capital de ciência” e “capital científico”. Embora ambos sejam corretos, eles derivam de conceitos distintos e refletem abordagens diferentes sobre como o capital se relaciona com a ciência.

Primeiramente, vamos entender esses dois conceitos similares, mas não iguais, que são constantemente tidos como sinônimos, embora não sejam: Capital Científico e Capital de Ciência.

Seguindo a tradição, começaremos do conceito mais antigo para o mais recente.

Capital Científico

O conceito de capital científico não surgiu do nada. Para entendê-lo, precisamos voltar no tempo e conhecer Pierre Bourdieu, um sociólogo francês que, nas décadas de 1970 e 1980, revolucionou a forma como entendemos as relações sociais. 

Na imagem está o sociólogo Pierre Bourdieu. A foto está em preto e branco. Bourdieu olha para a câmera, a expressão é séria. Ele é branco, tem cabelos curtos, usa camisa social com um blazer por cima.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês que elaborou a teoria do Capital Científico (Foto/Magnum Photos – Martine Franck)

Durante parte de sua vida, lutou na Guerra da Independência da Argélia e desenvolveu uma teoria sociológica, na qual destaca-se três conceitos fundamentais: o habitus, o campo e o capital.

Vamos entender cada um!

Habitus refere-se aos sistemas de disposições duráveis que as pessoas adquirem ao longo de suas vidas, influenciados pela educação, cultura e experiências. É como um “filtro” que molda como percebemos e reagimos ao mundo.

Campo representa o espaço social onde ocorrem as interações e disputas entre indivíduos e grupos, cada um buscando manter ou melhorar sua posição. No caso da ciência, o campo científico é o ambiente onde cientistas competem e colaboram para produzir conhecimento.

Capital vai além do capital econômico (dinheiro e bens). Bourdieu identificou outras formas de capital, como o capital cultural (conhecimentos, habilidades) e o capital científico, subcategoria do capital cultural, específica do campo científico.

Assim, capital científico (“scientific capital”), relaciona o capital científico às instituições e pessoas que dominam o campo científico, refletindo o poder e a influência acumulados dentro desse ambiente. Bourdieu não fornece um método específico para medir esse capital.

Capital de Ciência

Desenvolvido por Louise Archer, o termo capital de ciência, tradução do inglês “science capital”, inclui uma inovação significativa.

Na imagem está a pesquisadora Louise Archer. A foto é um retrato preto e branco. Archer é uma mulher branca de cabelos loiros, veste um óculos de grau preto, cabelo preso com franja ondulada no rosto, na orelha usa um brinco de estrela e está sorrindo para a foto.
Louise Archer, pesquisadora inglesa que desenvolveu a teoria do Capital de Ciência (Foto/European Conference on Education)

Archer, diferentemente de Bourdieu, criou um índice para medir o capital de ciência, utilizando um questionário para classificar indivíduos em categorias de baixo, médio e alto capital de ciência.

O conceito determinado por Archer é utilizado constantemente nas pesquisas de percepção pública da ciência, no Reino Unido, afirma o pesquisador Pacheco. 

Essa abordagem permite uma análise mais prática e inclusiva, abrangendo não apenas aqueles diretamente envolvidos na produção de ciência, como estudantes e professores, mas também outros indivíduos fora do círculo acadêmico.

Para manter a clareza, a partir de agora, adotaremos exclusivamente o termo “capital de ciência”, conforme a preferência de Pacheco.

Como mensurar o capital intelectual de um indivíduo?

Para quantificar o capital de ciência de maneira prática e acessível, Louise Archer desenvolveu um método, que se traduziu em um formulário.

O questionário elaborado por Archer é projetado para avaliar o envolvimento com a ciência de forma concreta e prática. A pesquisa considera fatores como a frequência de visitas a museus de ciência, que são uma parte importante da realidade inglesa, e a participação em atividades científicas fora da sala de aula, distinguindo essas experiências do ambiente acadêmico formal.

Para descrever de forma simplificada o método de Archer, Pacheco utiliza como analogia uma mochila. “Imagine que você carrega uma mochila ao longo da vida e tudo o que você acumula em termos de conhecimento e experiências científicas é comparado ao que você coloca nesta mochila.”

Enquanto Pierre Bourdieu, na sua abordagem do capital científico, se concentra na objetificação do capital por meio de certificados e reconhecimento simbólico, Louise Archer utiliza um questionário que avalia o envolvimento com a ciência de forma prática e cotidiana.

Esse questionário examina como aspectos diversos da vida cotidiana, como o envolvimento em atividades científicas e a exposição a conhecimento científico, contribuem para o acúmulo do capital de ciência, para que, assim, consiga medir a quantidade de capital de cada indivíduo.

Visita a museus, atividade comum na realidade inglesa, está entre as principais atividades intelectuais que geram acúmulo de capital de ciência descritas por Archer. Mas a realidade brasileira é outra! Visitas a museus, por exemplo, não se configuram como um hábito dos brasileiros.

No Brasil, “as principais atividades de produção de capital de ciência são feiras de ciência, desenvolvimento de pesquisas, atuar em projetos extraclasses, leitura de livros, realizar ações de ciência cidadã, participação em congressos e demais eventos e atividades acadêmicas que ampliem o conhecimento”, descreve Jailson Pacheco.

Aplicação do método de Archer no Paraná

Apoiado no que foi postulado por Archer em relação ao Capital de Ciência, o pesquisador da UFPR traduziu o questionário, realizando as devidas adaptações, e replicou o método da pesquisadora inglesa em escolas aqui do Paraná. O objetivo foi medir o nível de acúmulo de Capital de Ciência dos estudantes como um todo e a partir de um recorte de raça e de gênero.

Pacheco explica que, de acordo com a teoria de Archer, o principal momento de acúmulo de Capital da Ciência ocorre na educação básica. Assim, ele aplicou o método em estudantes deste nível escolar de duas escolas que se diferenciam muito entre si. A primeira está localizada em uma área central e nobre da capital paranaense, Curitiba; a outra na cidade de Paranaguá, litoral do estado, em uma “área mais excluída”.

O pesquisador diz que, em um primeiro momento, pensou que o maior capital estaria na escola de Curitiba e que haveria uma grande diferença de acúmulo entre raça e gênero. Mas se surpreendeu!

Os estudantes da escola de Paranaguá apresentaram um acúmulo de capital de ciência muito maior. O motivo principal? A constante participação dos alunos em atividades extraclasses, como feiras de ciências. Segundo Pacheco, “a feira de ciências, nesse caso, foi o grande impulsionador do acúmulo de capital de ciência”.

O professor salienta, ainda, que, na distinção entre raça, não houve uma diferença notável. Uma desfecho diferente do esperado por Pacheco, dado que o Brasil é um país racista, onde negros têm acessos limitados aos aparatos da cultura científica. E mais, o pesquisador lembra que Archer registrou que estudantes negros possuem um acúmulo de capital muito menor em relação aos brancos em suas pesquisas.

Desigualdade social brasileira x acúmulo de capital de ciência

Na imagem aparece 5 pilhas de moedas, cada uma tem um tamanho diferente, vai aumentando da esquerda para direita, em diagonal. Em cima de cada pilha de moeda tem um bonequinho que se assemelha a um ser humano. A imagem busca fazer referência a desigualdade social, tema abordado neste tópico.
(Foto/Freepik)

No Brasil, as desigualdades sociais afetam diretamente a educação e, por isso, nem todos os estudantes conseguem acumular o mesmo nível de conhecimento científico. Em escolas de áreas nobres, os alunos têm acesso a feiras de ciências, laboratórios modernos e muitas atividades que ampliam seu aprendizado. Eles também contam com o apoio da família e da escola para explorar a ciência fora da sala de aula.

Por outro lado, estudantes de regiões menos favorecidas enfrentam grandes desafios. As escolas nessas áreas costumam ter menos recursos. Para além disso, muitos alunos precisam trabalhar desde cedo, o que limita suas oportunidades de participar de atividades extracurriculares e suscita a evasão escolar. Mesmo assim, quando têm a chance de participar de feiras de ciências, esses alunos se destacam e acumulam conhecimento científico.

Pacheco diz acreditar que todos os estudantes deveriam ter as mesmas oportunidades de aprender ciência. “Não se limite ao conteúdo da ciência na sala de aula. Leiam livros de ciência […] ouçam podcasts […] não se limitar à ciência de sala de aula é o grande diferencial pro acúmulo de capital de ciencia”, incentiva o pesquisador.

Em um país tão desigual, é fundamental que todos os estudantes tenham a chance de explorar e aprender sobre ciência, para que possam enfrentar os desafios do futuro com mais conhecimento e confiança ao se tornarem “ricos” em capital científico.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Sabrina Heck e Yumi Aoki
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

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