Cara Gente Branca: a representação que queremos ver

A ilustração retrata quatro pessoas negras em traços expressivos sobre um fundo laranja vibrante. Uma figura segura um megafone, simbolizando voz e resistência. Ondas coloridas fluem ao redor, evocando dinamismo e movimento. A arte destaca identidade, ativismo e representatividade negra.
A série, que abarca sobre racismo e representações de pessoas negras, foi foco de uma dissertação de mestrado em Educação

compartilhe

Você consegue dizer qual o último filme, série ou programa de TV que assistiu com um protagonista negro? E dos últimos dez desses produtos, quantos atores e atrizes negros faziam parte? E, claro, se eles estavam presentes, quais papéis eles interpretaram? 

Essas questões, às vezes, passam batidas por nós, mas, ainda que pareçam simples, refletem muito do que vivemos em sociedade. Quando vamos ao cinema, vemos filmes que trazem poucos personagens fortes e importantes interpretados por pessoas negras e, ao mesmo tempo, escolhem esses profissionais para interpretar papéis secundários ou com pouco tempo de tela. 

Felizmente, é possível perceber uma mudança dessa perspectiva nos últimos anos, mas não anula o fato de existir um longo caminho para ser trilhado em busca de mais representações positivas. 

Um excelente exemplo é a série “Cara Gente Branca”, que estreou em 2017, na Netflix. Ali, conhecemos a história de diversas personagens negras, que estão vivendo um dos momentos mais desafiadores da vida: o período da faculdade. 

É possível assistirmos pessoas negras interpretando papéis de destaque, que fogem de muitos estereótipos estabelecidos e que possuem uma carga de complexidade incrível, proporcionando o desenvolvimento de questões interpessoais, tensões sociais, bem como racistas.

Essa foi uma série que teve uma ótima repercussão na Netflix, com uma audiência interessada em consumir um entretenimento mais questionador. Mas, o historiador, comunicólogo, mestre em Educação e doutorando em Comunicação, Andrey Gabriel Souza da Cruz, não assistiu ao seriado apenas como um momento de lazer. O doutorando viu nesse produto midiático a chance de produzir ciência! Já imaginou?

O pesquisador explica que seu ímpeto para a pesquisa sempre parte de algo que lhe gera um incômodo. Por ser um homem preto, a representação de masculinidades negras sempre o atravessou e, quando se viu perante uma série que abordava uma representatividade de homens negros de um modo mais “fora da curva”, percebeu ser um bom ponto de partida para o desenrolar de uma dissertação de mestrado. 

Isso porque, desde muito novo, o historiador só se via rodeado pelas mesmas representações o tempo todo. Por exemplo, nas televisões, o que se vê é o motorista, que é um homem negro, a empregada doméstica, que é uma mulher negra, a amiga da personagem principal, que é a garota negra, ou mesmo o bandido, que é um homem negro. 

O comunicólogo comenta que o advogado, filósofo e professor, Silvio Almeida, afirma que anos consumindo uma mesma imagem de representação de pessoas negras, cria uma naturalização dessas posições, tanto por pessoas brancas, quanto por pessoas negras. 

Dessa forma, o doutorando explica que, se todos os repertórios culturais de um homem negro ou tudo aquilo que ele sempre consumiu, sempre o apresentam a mesma possibilidade de masculinidade, uma mesma forma de ser homem negro, ele acaba condicionando ou limitando a sua possibilidade de existência.

“Então, eu falo, ‘talvez meu corpo esteja mesmo destinado à criminalidade ou subserviência’. Até porque eu nunca vi pessoas parecidas comigo em outras posições que não fossem essas. Então, essas imagens me educaram e me apresentaram apenas essas possibilidades, e é nesse lugar que eu brinco de existir”, aponta o pesquisador. 

Dessa forma, quando esses homens negros passam a ver outras representações na televisão, o primeiro impacto é essa possibilidade de se imaginar em outros espaços! Assim, Cruz participou do Mestrado em Educação, na Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, seguindo a linha de pesquisa em ensino, aprendizagem e desenvolvimento humano, que resultou na sua dissertação “‘Cara Gente Branca’: masculinidades negras, representações midiáticas e pedagogias culturais”.

A imagem mostra Andrey Gabriel Souza da Cruz, um homem negro com barba e cabelo com tranças curtas, sentado em uma cadeira, segurando um microfone enquanto fala. Ele veste uma camisa sem mangas rosa clara com detalhes rosa e uma calça preta. Ele está apresentando sua dissertação de mestrado. Ao fundo, há uma tela grande exibindo um slide de apresentação com o título "CORPUS DE ANÁLISE" e imagens de três personagens masculinos negros da série Cara Gente Branca (Dear White People), acompanhadas de texto explicativo. O slide menciona a criação da série por Justin Simien e a referência a uma festa "blackface". Um laptop está conectado à tela, apoiado em uma mesa azul, com cabos e equipamentos eletrônicos ao redor. O ambiente é uma sala de aula, com paredes brancas, uma porta de madeira e um quadro branco parcialmente visível à esquerda.
Me. Andrey Gabriel Souza da Cruz apresentando sua dissertação de mestrado (Foto/Arquivo pessoal)

“A gente pensa ‘não, pera, eu posso sim ocupar uma universidade’, porque eu estou vendo pessoas negras dentro da universidade. É o potencial pedagógico que as imagens têm, que, obviamente, depois vão ser confrontadas com uma sociedade que te nega esses espaços, mas a possibilidade de sonhar, de se imaginar, é o primeiro passo para existir”, expõe Cruz.  

Com base no conceito de Pedagogias Culturais, o pesquisador entende essas representações como formas de ensinar as pessoas. Afinal, essa linha teórica explica que “as mídias, não apenas representam a sociedade e mostram a cultura, mas elas também educam, porque elas ensinam posições e possibilidades”, segundo o doutorando.

“Eu vou amarrando esses conceitos de Pedagogias Culturais, nessa ampliação do que me educa, forma-me enquanto indivíduo e apresenta-me possibilidades de ser. Entendendo que, por vezes, marcadores da diferença, enquanto racialidade, gênero e sexualidade, tem uma constante forma de apresentação negativa e, por vezes, são acessados pelas mídias enquanto material denunciativo”, explica o pesquisador. 

Assim, o mestre em Educação parte de uma análise da mídia que não se prende apenas à denúncia dos corpos negros, mas que também mostra que esses corpos podem ser muito mais e, em especial, grandes potências representativas de coisas boas e positivas!

“Então, eu já sei o que me atravessa e já sei quais são as mazelas que o meu corpo carrega, mas eu quero saber o que a mídia tem produzido que pode me fazer me enxergar em outro espaço. Se antes a gente concentrava o ensino e a educação dentro de espaços de saber como universidades, escolas e afins, agora a gente começa a entender que todos os espaços estão nos educando. A minha vivência, a minha cultura, as imagens que eu consumo, basicamente tudo é uma forma de educação”, afirma o pesquisador. 

Mas e como é possível analisar um produto audiovisual com um olhar científico e técnico?

Bom, o mestre em Educação utilizou o método científico PROVOQUE, formado por cinco etapas, desenvolvido pelo doutor em Educação João Paulo Baliscei e que permite que as imagens sejam problematizadas e questionadas, gerando uma busca pela presença ou não de estereótipos.

A imagem apresenta um infográfico sobre as etapas do método científico "Provoque" em um fundo rosa com texto em tons de laranja, preto e branco. O título "ETAPAS DO MÉTODO CIENTÍFICO PROVOQUE" está centralizado na parte superior.
As etapas do método são numeradas de 1 a 5 e incluem:
FLERTANDO: Escolha de critérios de seleção e exclusão, com ponderações subjetivas entre pesquisador e pesquisa.
PERCEBENDO: Exposição das imagens e narrativas selecionadas.
ESTRANHANDO: Questionamentos e indagações sobre o que foi apresentado.
DIALOGANDO: Pontos de conexões e reflexões para as provocações geradas, com base em teorias e métodos.
COMPARTILHANDO: Partilha e socialização do que foi/está sendo produzido.
O design inclui linhas curvas que conectam as etapas, destacando a fluidez do processo. No rodapé, há os créditos: "© Conexão Ciência | Arte: Hellen Vieira."

Seguindo essas etapas, o ponto de partida do pesquisador foi selecionar os personagens a serem analisados dentro de Cara Gente Branca. O comunicólogo escolheu três: Lionel Higgins, Troy Fairbanks e Reggie Green. A partir daí, ele buscou entender se eles são representados a partir de estereótipos ou não.

“Conforme eles foram se distanciando dos estereótipos recorrentes, começa essa análise de que existe sim a possibilidade de representar esses mesmos personagens e essa masculinidade negra, distante desses estereótipos ligados à criminalidade ou à subserviência”, aponta Cruz. 

O pesquisador expõe que, por mais que a série evidencie o racismo, ela não constrói os personagens a partir de estereótipos racistas e de uma limitação de representação básica. Isso permite que ele analise como diversos marcadores sociais, como raça, gênero, sexualidade e classe, vão constituindo esses três personagens de formas diferentes,  evidenciando uma masculinidade plural.

Todos os personagens estão inseridos no contexto universitário, o que para o pesquisador já é algo super diferente, distanciando muito das representações clássicas de pessoas negras que estão longe desse ambiente, ou seja, rompe com um estereótipo constante. 

Em específico sobre Lionel, Cruz analisa, principalmente, a interseccionalidade que ele carrega, de ser um homem preto e gay, ou seja, lidando mais com gênero e sexualidade. Já com Reggie, o pesquisador aborda um marcador mais relacionado à classe social, bem como a representação de ser um homem preto mais combativo, caminhando para um estereótipo de militância.

Por fim, o personagem Troy, também tem o marcador de classe, tendo em vista que ele é filho do reitor da universidade, permitindo uma análise de como o poder aquisitivo vai interferir na constituição e na construção de representação de masculinidade negra.

A imagem mostra Marque Richardson, Deron Horton e Brandon P. Bell sorridentes posando juntos contra um fundo colorido com um efeito gradiente. Eles estão vestidos de maneira elegante e moderna: O homem à esquerda veste um terno verde vibrante com uma camisa branca e uma gravata borboleta preta; O homem no centro usa um traje preto estiloso, com detalhes sutis nas costuras; e O homem à direita veste um blazer branco sobre uma camisa preta, criando um contraste sofisticado. Todos parecem felizes e confortáveis, olhando diretamente para a câmera. O fundo texturizado tem tons suaves e misturados, dando um toque artístico à imagem.
Marque Richardson, Deron Horton e Brandon P. Bell que interpretam os personagens Reggie Green, Lionel Higgins e Troy Fairbanks, respectivamente (Foto/Essence)

“A partir desses pontos, é possível buscar uma perspectiva maior de como essas imagens são pedagógicas a ponto de apresentar outras formas de ser masculino. Então, eu pego os estereótipos constantes de sociedade, que trazem a animalização do corpo negro masculino, ou seja, homens negros são selvagens e sem sentimentos, e comparo com os personagens analisados, que choram constantemente, seja por serem atravessados por racismo ou por questões afetivas, mas que permite a representação desses indivíduos a partir de outras óticas”, explica o pesquisador. 

E são essas outras óticas que evidenciam toda a força desse tipo de estudo e desse olhar crítico para o que está sendo produzido pelas mídias. O pesquisador conta como explicou para o seu pai a importância do tema de sua dissertação: 

🎙️ Me. Andrey Gabriel Souza da Cruz explica a importância de pesquisar representações de pessoas negras na mídia

E a pergunta que fica é: que tal você também trocar as lentes dos óculos que lhe foram dados?

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Mariana Manieri Pires Cardoso
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Mariana Manieri Pires Cardoso
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Hellen Vieira
Edição Digital: Guilherme Nascimento

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Gostou do nosso conteúdo? Nos siga nas nossas redes sociais: Instagram, Facebook e YouTube.

Edição desta semana

Artigos em alta

Descubra o mundo ao seu redor com o C²

Conheça quem somos e nossa rede de parceiros