Cátia Millene Dell’Agnolo: a menina que decidiu ser enfermeira para virar marinheira

A teimosia chamada de determinação traçou a vida da adolescente que sempre soube o que queria ser e fazer

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– “Alô! É da Marinha do Rio de Janeiro? Como faz para entrar para o quadro de militares de vocês?” Quem atendeu a ligação percebeu a voz de mocinha e perguntou se os pais sabiam da ligação. A menina de 13 anos disse que queria contar para eles quando já tivesse todas as informações e insistiu na pergunta. A pessoa, então, respondeu que teria que estudar enfermagem ou contabilidade. 

Nessa época, a paranaense de Rio Claro, que morava em Palmeira, a 45 km distante de Ponta Grossa e a 80 km de Curitiba, decidiu que faria o curso técnico de enfermagem, equivalente ao segundo grau, na cidade mais próxima de casa, para poder entrar para a Marinha.

Comunicados, os pais disseram que era uma carreira difícil e seria melhor fazer medicina. Como ela não abriu mão do curso escolhido, os pais concordaram com uma condição: aliar outro curso para não perder o segundo grau. E assim foi. De manhã, Cátia estudava enfermagem, à tarde trabalhava no escritório de contabilidade do pai e, à noite, fazia o curso de auxiliar de contabilidade. 

Quando concluiu esses estudos, já havia esquecido a Marinha. Amava a enfermagem e decidiu que faria a faculdade em Maringá, cidade que conhecia apenas de passagem como atleta dos jogos escolares de vôlei e handebol. 

Sempre determinada, Cátia reconhece que deu bastante trabalho aos pais e à irmã, dois anos mais velha. “Uns chamam de teimosia, eu chamo de determinação. Tinha curso de enfermagem em Curitiba e Ponta Grossa, mas eu queria estudar em Maringá e, aos 16 anos, já estava na faculdade”, conta.

Cátia explica que não lembra de nada que ocorreu com ela antes do 13 anos. O motivo é que sofreu um acidente com sua Monareta (célebre bicicleta dos anos 1960) ao tentar atravessar um trevo na saída da cidade. Um carro em alta velocidade bateu na sua roda traseira, causando um traumatismo craniano grave. Um rapaz correu, pegou a menina no chão, chacoalhou e a colocou de volta no chão sem saber o que fazer. “Hoje, eu sei que ele me salvou porque eu bati a cabeça no chão e fiquei de barriga para cima. Quando ele me colocou no chão novamente, fiquei de barriga para baixo e, por isso, não asfixiei com meu próprio sangue. Não lembro o tempo de recuperação. Sei que era fim de ano e eu já tinha notas para passar”, relata. 

Como ficou com lentidão de pensamento, a família mostrava fotos e perguntava se lembrava de algo. “Contam que professoras foram me visitar e levaram bombons. Eu só ficava quieta olhando. Depois de quase duas horas de conversa, eu lembrava de agradecer o presente. Era meio letárgico. Chegou um tempo que já não sabia se as fotos eram lembranças ou imaginação. Me recuperei, fiquei bem e toquei a vida. Perdi parte da memória, mas acho que não me fez falta”, revela. 

Aos 20 anos de idade, Cátia já estava graduada. Foi para Palmeira, trabalhou dois meses em Ponta Grossa, voltou para Maringá para atuar na Terapia Intensiva e, esse ano, completa 25 anos de carreira fazendo o que gosta, no Hospital Universidtário Regional de Maringá, (HUM), vinculado à Universidade Estadual de Maringá (UEM), cidade no noroeste do Paraná.  

Apaixonada pela área, a enfermeira não para de buscar conhecimentos. Fez especializações em terapia intensiva e administração hospitalar; mestrado e doutorado na UEM, outro doutorado sanduíche no Canadá e pós-doutorado em Londrina. Esse último em meio a pandemia e aguarda a titulação que ainda não foi entregue. 

Cátia Millene Dell’Agnolo
Cátia Millene Dell’Agnolo (ASC/UEM)

 Cátia conta que, em 2019, saiu a primeira turma de mestrado do Departamento de Medicina da UEM.  “Um colega me convidou para fazer parte do grupo montado para refazer o projeto que já haviam tentado aprovar anteriormente, sem êxito. Conseguimos a aprovação do Mestrado Profissional em Gestão, Tecnologia e Inovação em Urgência e Emergência (Profurg) e já estamos indo para a quarta turma. Por conta da pandemia, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) adiou a avaliação, que deve ser realizada em breve”, informa a enfermeira. 

Desde então, mesmo sendo técnica, Cátia faz esse trabalho a parte como docente permanente do Profurg. Ela orienta alunos e ministra disciplinas obrigatórias e optativas. O mestrado é multiprofissional e aberto a profissionais de qualquer área de atuação. 

Todo esse amor pela profissão não significa que o caminho tenha sido fácil. “Sair de casa aos 16 anos, descobrir uma nova cidade, enfrentar a vida de adulto, trabalhar, estudar e ser mulher não é tão simples”, confessa. Embora a profissão seja predominantemente composta por equipes femininas, Cátia diz que não é tão diferente de algumas profissões. “A enfermagem tem o estigma da desvalorização profissional. É cultural. A maioria precisa de dois empregos e até alguns ‘bicos’ para se manter e ainda tem a questão do assédio, enfrentada por qualquer mulher em qualquer situação. Mas acho que isso nos torna mais resistentes. A mulher já é forte por si só e a enfermagem nos fortalece mais ainda”, ressalta. 

Pandemia 

Quando começou a pandemia da Covid-19, Cátia estava na coordenação de Internamento. Em março de 2019, houve eleição e com a troca da diretoria, foi eleita  coordenadora para responder por todos os setores de Internamento e passou a responder, também, pelas alas Covid, da Clínica Médica e UTI.

A especialista lembra que “no primeiro grande bum da pandemia, a ocupação de leitos foi lá em cima, aumentamos 50 leitos de uma hora para outra. Muitos profissionais não tinham experiência em terapia intensiva e nós tentamos diversas situações que pudessem ajudar. Eu pedi exoneração da coordenação e assumi a UTI Covid, com a ocupação de 100% durante os períodos críticos.” 

De acordo com a enfermeira, o HUM tinha 20 leitos de UTI Covid e 20 na Clínica Médica. Foram disponibilizados mais 10 leitos para cada setor e a ocupação de 100% não baixava durante os piores momentos da pandemia. “Chegamos a ter 20 pacientes intubados na UTI Covid e 10 na Clínica Médica. Fizemos uma semi-uti do lado de fora e, como eu tinha experiência em terapia intensiva, acabei indo pra lá. Foi um período bastante difícil, com bastante trabalho, tivemos situações em que cinco ambulâncias do setor Covid paravam na frente do hospital, cada um com cinco ou seis pacientes. Foi muito desgastante para toda a equipe”, lembra. 

Cátia conta, ainda, que a questão de pessoal foi a mais difícil. “A enfermagem sobrecarregada, normalmente com dois ou três serviços, falta de experiência em terapia intensiva e afastamentos. Colaboradores, colegas, ficaram longe dos filhos e da família por mais de quatro meses, por medo. Ainda não tinha vacina. Foi um período de bastante cansaço físico e emocional para toda equipe. Teve uma melhora e piorou, novamente. Foi uma situação ímpar, com equipe multiprofissional recém-contratada, se adequando, treinando e adquirindo experiência. Tudo muito difícil mesmo, mas conseguimos superar”, desabafa.

Se a pandemia dificultou a vida de todos, para Cátia não foi diferente. “Por conta da idade avançada e das comorbidades, não deixei meus pais virem para Maringá como sempre faziam, até mesmo após a primeira dose da vacina. Sou solteira com filhos de patas. Tenho quatro cachorrinhas e, nem por isso, meus cuidados diminuíram ao voltar pra casa após um exaustivo dia de trabalho. Graças a Deus, não perdemos nenhum colega que teve o vírus na ala Covid”, diz.

Segundo a especialista, todo medo enfrentado pela população foi mais acentuado para os profissionais da saúde. “Na UTI Covid lidamos com muitas perdas, muitas dificuldades, muito estresse e nada disso nos impediu de trabalhar da melhor forma possível para reverter o quadro de cada paciente. Não tem profissão melhor ou pior, mas a enfermagem mostrou seu valor e falo isso com orgulho”, desabafa. 

Apesar de todos os pesares, Cátia diz que foi um período de muito aprendizado, crescimento e fortalecimento. “Foram dois anos que mudaram muitas coisas. Profissional e pessoalmente. Saio grata, realizada e mais determinada a ser enfermeira de terapia intensiva pelo resto da minha existência. Minha experiência fez diferença naquele momento. Esse trabalho é o grande amor da minha vida e não troco por nada”, afirma.

Cátia acredita que a enfermagem é uma missão. “Tenho minha espiritualidade muito tranquila dentro de mim. Somos instrumentos de algo maior. A gente vê isso no paciente que, às vezes, desenganado pela medicina, sai andando da UTI. Minha parte é fazer meu trabalho bem feito e com muito amor. É muito gratificante fazer a diferença na vida de uma pessoa”, declara.

A Marinha do Brasil perdeu e Maringá ganhou uma grande e dedicada profissional. Agradecemos a escolha e clamamos por mais cátias em nossos hospitais!

Confira a quinta temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Cátia contada por ela mesma

Donas da Ciência – T5 E1 – Cátia Millene Dell’Agnolo Conexão Ciência C²

Neste episódio, conheça a doutora e mestre em enfermagem, Cátia Millene Dell’Agnolo, apaixonada por Maringá, e pelo trabalho na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Noth Camarão
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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