Ciência e MST: uma relação saudável entre campo e universidade

Em parceria com o Núcleo de Estudos em Agroecologia da UEL e IDR-Paraná, integrantes do Movimento unem esforços para uma agricultura sustentável e de qualidade

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Nos últimos anos, o debate acerca do uso de fertilizantes e agrotóxicos tem se intensificado ao redor do mundo por causa do aumento considerável do uso desses produtos. Já foi comprovado em diversas ocasiões que, se ingeridos em grandes quantidades, eles têm potencial para o desenvolvimento de doenças como o câncer, além de causarem danos ao meio ambiente.

Uma pesquisa recente divulgada pela Fundação Heinrich Böll, em colaboração com outras instituições, revela que em 2020, a região da América do Sul foi líder global no consumo de agrotóxicos, totalizando 770.393 toneladas. Isso a coloca à frente até mesmo da região inteira da Ásia, com 658.529 toneladas, e que possui mais do que o dobro do território sul-americano, além de abrigar cerca de 60% da população mundial. O documento também emite um alerta, indicando que no Brasil, aproximadamente 49% dos pesticidas comercializados são classificados como “extremamente perigosos”.

Além disso, o estudo ainda menciona que tanto o Brasil quanto a Argentina ocupam atualmente posições de destaque entre os principais consumidores mundiais de herbicidas, classificando-se respectivamente em terceira e quarta posição, ficando atrás apenas da China e dos Estados Unidos.

Uma das soluções para esse problema é a produção de alimentos orgânicos e agroecológicos, que não envolvem o uso de pesticidas, fertilizantes ou sementes transgênicas, sendo, portanto, inteiramente seguros para o consumo. Conforme dados atualizados do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), até a publicação desta reportagem, o Brasil conta com 24.772 produtores orgânicos certificados. O Paraná lidera em número (3.757), seguido pelo Rio Grande do Sul (3.667) e o Pará (2.822). 

No entanto, grande parte dessa produção é realizada por agricultores familiares associados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Atualmente, o grupo é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil. As variedades predominantes cultivadas englobam o arroz agulhinha e o cateto. 

Universidade no campo

Em Londrina, a Universidade Estadual de Londrina (UEL) tem se destacado como uma valiosa parceira desse Movimento. Juntos, trabalham para promover a ciência por meio da partilha de conhecimentos e recursos. 

É o caso de Jovana Cestille, integrante do Assentamento Eli Vive e militante do MST, desde 1997. Atualmente, ela reside no Sítio Novo Amanhecer, em Lerrovile, distrito de Londrina,  com o marido, Davi José da Costa, e o filho, Lorenzo Cestille Costa. O assentamento abriga 501 famílias.

Cestille é uma das assentadas que recebe acompanhamento do Núcleo de Estudos em Agroecologia da UEL (Neagro), um projeto orientado pelo professor Mauricio Ursi Ventura, do Departamento de Agronomia. 

Os agricultores Jovana Cestille e Davi José da Costa no Sítio Novo Amanhecer (Foto/Barbara Zen)

O Neagro tem como objetivo principal fomentar atividades voltadas para a produção orgânica e agroecológica. Com uma equipe de cerca de 15 integrantes, além de seu papel como núcleo de estudos, o Neagro também faz parte das 12 unidades do programa Paraná Mais Orgânico, projeto financiado pela Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti), que estão distribuídas pelo Estado. Em colaboração com o Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná-Iapar-Emater (IDR-Paraná), o Núcleo se dedica a orientar e apoiar agricultores familiares interessados na produção de alimentos orgânicos. Além disso, auxilia esses agricultores no processo de obtenção da certificação de produtor orgânico.

Nos dias atuais, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 70% dos alimentos consumidos no Brasil têm origem na agricultura familiar.

Esse tipo de agricultura está profundamente entrelaçado com a base do MST. Dessa forma, assim como outros membros do grupo, Cestille e Costa se tornaram agricultores familiares de sua própria terra ao receberem lotes, o que os tornou elegíveis para o acompanhamento do núcleo da UEL, por meio do programa Paraná Mais Orgânico. 

No ano de 2018, eles faziam parte de um grupo de assentados do Eli Vive 1, que estava sendo acompanhado pelo Neagro, juntamente com outro grupo de assentados do Eli Vive 2. Eles compartilhavam o objetivo de obter a certificação de produtor orgânico, assim como outros membros do Movimento. Inicialmente, planejaram obter a certificação por meio da Rede Ecovida. No entanto, essa certificação era realizada em grupo (certificação participativa), e o grupo de Cestille não obteve êxito. 

Em 2020, por estar em conformidade com a Lei 10.831/2003, que dentre várias coisas, dispõe das normas para obter a certificação de um alimento orgânico, o Núcleo a orientou a buscar o reconhecimento legal de produtora orgânica por meio da certificação individual do Tecpar (Instituto de Tecnologia do Paraná). No mesmo ano, o casal, finalmente, obteve a certificação.

No processo de certificação conduzido pelo Tecpar, duas inspeções são realizadas ao longo de um ano nos locais cadastrados, a fim de garantir a conformidade com as diretrizes estabelecidas por lei. Além disso, os locais estão sujeitos a inspeções surpresa por representantes do Ministério da Agricultura. Entre as medidas de adequação necessárias estão a rastreabilidade detalhada dos alimentos. Essa certificação é de suma importância, pois garante ao consumidor que os alimentos estão em conformidade com a legislação e, portanto, são seguros para consumo. “Na hora que a gente comercializar, o consumidor que comprar esse alimento terá essa rastreabilidade de tudo que a gente fez na produção”, conta Cestille, ressaltando a importância de um produto certificado.

“O selo Produto Orgânico Tecpar Cert garante ao consumidor que, durante todas as etapas de produção e processamento do produto certificado, não foram utilizados agrotóxicos ou qualquer insumo químico sintético, nem foram identificadas práticas que comprometam a saúde humana, animal, das plantas e do solo”, informa o Tecpar.  

O Sítio Novo Amanhecer abrange aproximadamente três alqueires e meio, correspondentes a cerca de oito hectares e meio, e é dedicado ao cultivo de uma diversidade de alimentos. O destaque entre eles é o tomate, sendo um dos principais produtos do sítio. Além disso, são produzidos muitos outros alimentos que têm como destino escolas municipais e estaduais da região, além daquilo que também é comercializado em feiras.

Outras atividades

O Neagro ainda promove diversas oficinas, incluindo adubação verde, técnicas de poda e orientação para a produção de café, com o objetivo de transferir o conhecimento científico adquirido na universidade para o campo, visando aumentar a produção agrícola sustentável e de alta qualidade. Em certas ocasiões, até mesmo mudas e sementes são distribuídas às famílias. No entanto, não são apenas os assentados que aprendem, mas os membros do  Núcleo também. Isso ocorre porque, conforme Victor Hugo Caetano Silveira, técnico bolsista do Paraná Mais Orgânico do Neagro, há conhecimentos que são exclusivos dos agricultores do campo devido ao contato direto e constante que eles mantêm com a terra. 

“Nós aprendemos muito com eles, porque, muitas vezes, a gente é da cidade, a gente não teve oportunidade de crescer no campo e, aí, a gente não tem muito esse contato com o campo. Então, eles sabem muito mais do que nós. Eles passam muitos ensinamentos para a gente e a gente aprende muito com eles”, conta Silveira.

Victor Hugo Caetano Silveira é o técnico do Paraná Mais Orgânico responsável por acompanhar os camponeses Jovana Cestille e Davi José da Costa (Foto/Leonardo de Jesus Dias)

Além disso, o Núcleo já construiu uma estufa de baixo custo com os membros do assentamento Eli Vive. Isso não apenas permitiu a participação e aprendizado dos assentados envolvidos, mas, também, possibilitou que essa técnica fosse reaplicada por eles.

Atualmente, o Neagro está planejando, em parceria com alguns agricultores do assentamento, um projeto voltado para a produção de um ‘café especial’, saudável e de maior qualidade. O cultivo de café à sombra, conhecido popularmente como café sombreado, é valorizado pela sua qualidade superior. A raiz desse método está na sua origem, nas montanhas da Etiópia, país africano famoso por suas terras montanhosas. Nessas regiões, a luz solar não atinge diretamente as plantações de café, resultando em condições ideais para o cultivo. No Brasil, a maioria dos agricultores cultivam o café a pleno sol.

Reconhecimento

O trabalho de Jovana Cestille e Davi José da Costa tem sido reconhecido em todo o estado do Paraná. Em dezembro de 2022, em colaboração com o IDR-Paraná e a Organização das Cooperativas do Estado do Paraná (Ocepar), o Grupo Ric realizou a segunda edição do prêmio Orgulho da Terra, em Curitiba. Esse reconhecimento contemplou agricultores em 16 categorias diferentes. Representando o MST, o casal recebeu o prêmio na categoria “Produção orgânica – agroecológica”. O evento contou com autoridades do Estado e do campo, como o secretário da Agricultura e Abastecimento do Paraná, Norberto Anacleto Ortigara.

Já, este ano, os agricultores foram reconhecidos pelo IDR-Paraná como uma unidade de referência agroecológica.

“É gratificante produzir um alimento que tem qualidade. A gente recebe vários elogios dos consumidores, o que é uma prova que de fato o alimento tem qualidade, que ele não está causando mal ao meio ambiente e nem as pessoas”, conta Cestille.

Ambos os momentos refletem a qualidade do trabalho desenvolvido e evidenciam a importância de apenas uma das diversas relações entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Universidade Estadual de Londrina. Essa colaboração simboliza uma parceria transformadora que une forças para enfrentar os desafios complexos e urgentes da agricultura contemporânea, como o uso excessivo de pesticidas.

A união entre o conhecimento científico da UEL e a sabedoria dos agricultores do MST é um testemunho da capacidade de unir diferentes perspectivas para criar mudanças positivas. O Neagro exemplifica essa abordagem colaborativa, buscando aprimorar as práticas agrícolas tradicionais com o saber científico atual, dando origem a uma nova forma de abordar a agricultura.

Os resultados visíveis dessa aliança estão em cada colheita de alimentos orgânicos e agroecológicos que chega às mesas das famílias. A certificação conquistada por Jovana Cestille e Davi José da Costa representa não apenas um marco em suas jornadas individuais, mas também um passo em direção a uma produção de alimentos mais saudável e sustentável para todos.

Para saber mais sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a parceria com as universidades estaduais, o C² preparou o podcast Conexão MST. Dê um play e fique por dentro!

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Texto: Leonardo de Jesus Dias e Fábio Augusto e Silva
Revisão: Rodolfo Rorato Londero
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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