Ciência nas férias: jovens contra o abuso de drogas

CAPA-DROGAS
Curso de férias transforma alunos do ensino médio em pesquisadores ao explorarem os impactos das drogas por meio da experimentação científica

compartilhe

Férias escolares. Tempo de dormir até tarde, maratonar séries e filmes, sair com os amigos. Para um grupo de estudantes do ensino médio da região metropolitana de Curitiba, esse período ganha um significado diferente: uma semana inteira dentro da universidade. O motivo? Um curso de férias promovido pelo projeto de extensão “Prevenção ao Abuso de Drogas”, ligado ao Departamento de Farmacologia, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

A ideia de trocar dias de descanso por aulas e experimentos talvez não pareça atrativa à primeira vista. No entanto, os participantes rapidamente percebem que a proposta vai além de palestras teóricas e conteúdo expositivo. O curso é estruturado a partir de perguntas feitas pelos próprios alunos sobre o tema, baseadas na realidade em que vivem. Essas questões são respondidas por meio da investigação científica, experimentos e dinâmicas interativas. E, assim, os estudantes se tornam jovens cientistas indo atrás de novos conhecimentos!

Criado em 2022, o projeto de extensão foi pensado nos moldes de outros cursos de férias da Rede Nacional de Educação e Ciência Leopoldo de Meis – Novos Talentos da Rede Pública (RNEC). O curso ocorre no Departamento de Farmacologia, da UFPR, e recebe entre 15 e 20 alunos por edição. Durante uma semana, eles participam de atividades supervisionadas por docentes e estudantes de pós-graduação, que tornam o processo de aprendizagem mais descontraído.

A foto mostra um grupo grande de aproximadamente 30 pessoas, a maioria jovens, reunidos em frente a um prédio com paredes brancas e janelas de vidro. Acima deles, há uma faixa colorida anunciando o "2º Curso de Férias para Alunos do Ensino Médio – Prevenção ao Abuso de Drogas", organizado pelo projeto de extensão da UFPR. O grupo está sorridente e vestindo camisetas de diferentes cores (preta, vermelha e verde), todas estampadas com o logotipo do evento. Alguns participantes estão agachados na frente, enquanto outros ficam de pé atrás deles. O dia está ensolarado, e o reflexo do céu azul pode ser visto nos vidros do prédio.
Turma da segunda edição do curso do projeto de extensão “Prevenção ao Abuso de Drogas” (Foto/Arquivo Pessoal)

Os impactos do projeto vão além dos participantes diretos. Os alunos compartilham o conhecimento adquirido com amigos e familiares, ampliando o alcance da informação e contribuindo para a conscientização sobre um problema urgente: o abuso de drogas. 

Mas, afinal, o que caracteriza esse abuso? E quais são os fatores que levam a esse problema? Essas são algumas das dúvidas que surgem ao longo do curso e que servem de ponto de partida para os experimentos e discussões.

O que a ciência diz sobre o abuso de drogas?

O tema, frequentemente associado apenas ao vício, envolve aspectos muito mais complexos. De acordo com a professora e pesquisadora, Janaina Zanoveli, que integra o projeto da UFPR, considera-se que há abuso quando o consumo de uma substância deixa de ser esporádico e passa a ser contínuo ou descontrolado. Esse padrão de uso pode gerar alterações psicológicas, comportamentais e biológicas, tornando-se um fator de risco para a dependência química, um transtorno reconhecido pela medicina como Transtorno de Uso de Substâncias (TUS). 

O Relatório Mundial sobre Drogas 2024, publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), destaca um aumento significativo no consumo global de drogas, com mais de 292 milhões de pessoas utilizando substâncias ilícitas em 2022, representando um crescimento de 20% em relação à década anterior.

O desenvolvimento do abuso de drogas não acontece de maneira uniforme para todas as pessoas. Há múltiplos fatores envolvidos nesse processo, desde influências externas, como experiências de vida, ambiente social e cultura, até predisposições psicológicas e biológicas. Estudos científicos indicam que doenças psiquiátricas, traumas e certas características comportamentais podem aumentar a vulnerabilidade ao consumo problemático. 

Além disso, o próprio efeito das substâncias no cérebro desempenha um papel determinante: drogas como álcool, cocaína e opioides estimulam áreas relacionadas ao prazer e à motivação, promovendo uma liberação de dopamina, um neurotransmissor que reforça comportamentos repetitivos. “Esse mecanismo pode levar ao uso compulsivo, tornando cada vez mais difícil para o indivíduo controlar o consumo”, destaca Janaina.

A imagem é um infográfico com o título "Classificação das Drogas", dividido em duas seções principais. A primeira aborda a legalidade das substâncias, apresentando três categorias: lícitas, prescritas e ilícitas. As drogas lícitas são representadas por um cigarro aceso, com a palavra "LÍCITAS" escrita no filtro, e acompanhadas de uma explicação que indica que seu uso e comercialização são regulamentados pelo governo, com exemplos como álcool e cigarro. As prescritas são ilustradas por um frasco de remédios aberto, com comprimidos espalhados ao redor e a palavra "PRESCRITAS" no rótulo, explicando que sua compra e uso ocorrem mediante prescrição médica, como no caso dos remédios tarja preta. Já as drogas ilícitas são simbolizadas por um pequeno saco plástico contendo um pó branco, rotulado com a palavra "ILÍCITAS", com um texto informando que seu consumo, produção, distribuição e comercialização para uso recreativo são proibidos, citando a cocaína e a maconha como exemplos. 
A segunda parte do infográfico trata dos efeitos das drogas no organismo, dividindo-as em estimulantes, alucinógenas e depressoras. As drogas estimulantes são ilustradas por um saco plástico contendo cristais brancos e a palavra "ESTIMULANTES" escrita em vermelho, com uma explicação indicando que essas substâncias aumentam as atividades do sistema nervoso central (SNC), incluindo exemplos como nicotina, cocaína e anfetamina. As alucinógenas são representadas por um pote metálico com um desenho de folha de maconha e ervas ao lado, com a palavra "ALUCINÓGENAS" no rótulo, e a explicação de que essas drogas distorcem as atividades do SNC, citando LSD e maconha. Por fim, as depressoras aparecem representadas por um copo de whisky com a palavra "DEPRESSORAS" escrita no vidro, com um texto informando que essas substâncias diminuem as atividades do SNC, dando como exemplos o álcool e os opioides.
O fundo da imagem tem uma textura em tons de cinza e vermelho, e a tipografia utilizada nos títulos tem um estilo manuscrito, criando um visual dinâmico e informativo.
*O Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizou o porte de até 40g de maconha ou seis plantas fêmeas para consumo próprio. Apesar da descriminalização, a posse de maconha ainda é uma prática ilícita, ou seja, permanece proibido fumar a droga em público, mas as punições definidas contra os usuários passam a ter natureza administrativa, e não criminal.

A professora Janaina, que é membro do Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (NAPI) em Neurociências, também comenta que diferenciar o usuário ocasional de um dependente químico nem sempre é simples. O uso recreativo de certas substâncias não implica necessariamente em dependência, mas quando o consumo se torna frequente e descontrolado, há sinais claros de que a relação com a droga mudou. 

Um dependente químico pode sentir necessidade contínua da substância, desenvolver tolerância – ou seja, precisar de doses cada vez maiores para obter o mesmo efeito – e apresentar sintomas de abstinência na ausência da droga. Esses sintomas podem variar de acordo com a substância consumida, mas incluem desde ansiedade, irritabilidade e insônia até manifestações mais graves, como convulsões, delírios e depressão severa. O impacto da abstinência pode ser tão intenso que o indivíduo passa a consumir a droga não mais para sentir prazer, mas para evitar o sofrimento da sua ausência.

O uso prolongado das drogas ainda pode comprometer funções essenciais do corpo, afetando órgãos como o fígado, os rins, o coração e o cérebro. Drogas depressoras podem causar insuficiência hepática, falência respiratória e danos neurológicos irreversíveis. Já substâncias estimulantes aumentam significativamente o risco de infartos, AVCs e surtos psicóticos. 

Para além das consequências individuais, o abuso de substâncias impacta a sociedade como um todo. O aumento da criminalidade, os acidentes de trânsito causados por motoristas sob efeito de drogas e a sobrecarga dos sistemas de saúde e assistência social são reflexos diretos desse problema. O tratamento da dependência exige esforços multidisciplinares, combinando apoio psicológico, tratamento medicamentoso e estratégias de reintegração social para que o indivíduo possa reconstruir sua vida longe do vício.

Aprendizado na prática

Todas essas informações são trabalhadas ao longo da semana do curso organizado pelo projeto de extensão “Prevenção ao Abuso de Drogas”. Nesse período, os alunos participantes mergulham no universo da ciência por meio de experimentos, visitas e dinâmicas interativas. O objetivo é proporcionar uma experiência que vai além da teoria e permita que eles compreendam, na prática, os efeitos das drogas no organismo e na sociedade.

Segundo a coordenadora do projeto e integrante do NAPI Neurociências, a professora Joice Maria da Cunha, o foco das ações são sempre relacionadas ao abuso de substâncias e em especial à nicotina e ao álcool. Uma das atividades envolve o uso de fígado bovino submerso em soluções com diferentes concentrações alcoólicas. No decorrer dos dias, os estudantes observam como o tecido se altera, refletindo os danos que a substância pode causar ao fígado humano. 

A parceria com a Polícia Científica também adiciona uma camada realista ao aprendizado. Durante a simulação de uma cena de crime, os estudantes analisam vestígios e discutem o impacto do abuso de substâncias na segurança pública. Além do mais, o curso conta com atividades lúdicas para reforçar conceitos. Em uma delas, os alunos utilizam óculos especiais que simulam os efeitos da embriaguez e tentam percorrer um circuito sem derrubar objetos

  • A imagem mostra uma sala de aula onde ocorre uma atividade teatral chamada "O Julgamento do Cigarro". No centro, há uma mesa coberta por um tecido preto, onde uma pessoa vestida de juiz, com uma peruca escura e uma roupa preta, segura um martelo vermelho. Atrás dela, um projetor exibe o título da atividade. À direita, uma pessoa sentada segura um cartaz grande com o logo da marca de cigarros Marlboro, vestindo roupas claras. Atrás dela, uma outra pessoa vestida de preto e usando um chapéu escuro observa a cena. À esquerda, há um grupo de participantes fantasiados. Um deles veste um macacão amarelo e um chapéu cinza, segurando um objeto verde na mão. Outros estão usando ternos escuros e chapéus, como se representassem advogados ou personagens de um tribunal. O público assiste à encenação sentado em cadeiras escolares organizadas em um semicírculo. No fundo, há um quadro verde com anotações e uma decoração com balões coloridos presos à parede. Um banner exibe o "Método Científico" com ícones e passos numerados. O ambiente tem iluminação artificial, com lâmpadas fluorescentes no teto.
  • A imagem mostra um grupo de estudantes reunidos em um laboratório, todos vestindo jalecos brancos com o logotipo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) na manga. Eles estão atentos a professora Joice, também de jaleco, que gesticula enquanto explica algo. Os alunos apresentam expressões concentradas e estão posicionados ao redor de uma mesa coberta com materiais de laboratório, como frascos de vidro contendo substâncias, tubos de ensaio, pinças metálicas e folhas de papel com informações escritas. No fundo, há armários brancos fixados na parede, uma pia e alguns equipamentos de laboratório. Entre os alunos, há diversidade nos estilos: alguns usam toucas, cachecois ou chapéus, e há variação nos tons de pele e traços faciais. A atmosfera da sala é bem iluminada e organizada, transmitindo um ambiente acadêmico e científico.
  • A imagem mostra um grupo de dez pessoas em uma sala de aula, todas sorrindo e posando para a foto. A maioria veste camisetas pretas com um logotipo colorido e o nome do projeto "Prevenção ao abuso de drogas" escrito nelas, enquanto algumas usam jalecos brancos. O grupo é diverso, com homens e mulheres de diferentes idades e estilos. Algumas pessoas fazem gestos com as mãos, como o "hang loose" (dedo mínimo e polegar estendidos). No fundo, há cartazes educativos sobre bebidas alcoólicas. Um deles exibe uma "Tabela periódica das bebidas alcoólicas", organizada em cores semelhantes à tabela periódica dos elementos químicos. Outro cartaz fala sobre a "Dose padrão de álcool" e a quantidade de álcool puro presente nas bebidas típicas. Na frente do grupo, há uma mesa verde com alguns copos pequenos e objetos espalhados, incluindo um par de óculos. O ambiente tem paredes claras e janelas cobertas com persianas bege, deixando entrar um pouco de luz natural. A iluminação do local é feita por lâmpadas fluorescentes no teto.

O teatro é mais um destaque do curso. Nele, a nicotina é colocada no banco dos réus e os participantes assumem os papeis de promotores, advogados e jurados, debatendo os danos causados pelo cigarro, vapes e narguiles. 

Ao final da semana, os alunos apresentam uma feira de ciências aberta à comunidade acadêmica. Nesse momento, eles compartilham os conhecimentos adquiridos no curso por meio de experimentos e explicações interativas. “A feira é um ponto alto da experiência, pois permite que os estudantes se sintam protagonistas do próprio aprendizado e levem essa mensagem adiante”, comenta Joice.

Impacto e futuro do projeto

O curso de férias representa um primeiro contato dos alunos com o ambiente universitário. Muitos deles, estudantes de escolas públicas, nunca haviam pisado em uma universidade antes. O projeto não apenas desperta a curiosidade científica, mas também amplia horizontes, tornando o ensino superior mais acessível e tangível.

Um dos participantes do curso relata como essa vivência superou suas expectativas. “Eu não tinha uma expectativa tão alta, mas resolvi participar, porque não tinha nada programado para as férias. Já no primeiro dia, percebi que era um curso diferente. A organização foi impecável e a metodologia fez com que eu absorvesse o conteúdo sem precisar anotar nada, porque eu sou uma pessoa que, para aprender alguma coisa, tenho que escrever. No decorrer do curso inteiro, eu tinha um bloquinho de um papel, eu não escrevi uma palavra, eu entendi tudo, muito por causa das dinâmicas. Quando acabou, fiquei com um vazio, como se quisesse que durasse mais”, conta Gabriel Santos de Paula. 

Os impactos do projeto se estendem para além dos participantes diretos. A professora Joice reforça que o conhecimento adquirido no curso reverbera em suas famílias, amigos e comunidades, fortalecendo a conscientização sobre os riscos do abuso de drogas. Além disso, para alguns alunos, essa experiência pode ser um ponto de virada, despertando o interesse por carreiras científicas ou da área da saúde. Os monitores universitários que atuam como facilitadores ressaltam que fazer parte dessa missão os aproxima ainda mais da própria área de estudo, além de desenvolver habilidades como didática, comunicação e trabalho em equipe.

🎙️Ouça o depoimento da doutoranda Bruna Isadora Pilger, que atuou como monitora no curso.

Com o sucesso das edições realizadas, “a proposta para o futuro é expandir as atividades para outras instituições e estimular que outros departamentos da UFPR ofereçam cursos similares na mesma semana, criando uma feira de ciências interdisciplinar”, diz a pesquisadora. Desse modo, o curso poderá beneficiar um número ainda maior de estudantes e reforçar o papel da universidade na disseminação do conhecimento. 

Ao conectar pesquisa, ensino e extensão, o projeto “Prevenção ao Abuso de Drogas” é uma prova da importância da universidade na construção de uma sociedade mais consciente, informada e saudável.

Aliás, a professora Joice é responsável por uma ação que envolve o NAP Paraná Faz Ciência. Além do C², existe o Programa Interinstitucional de Ciência Cidadã na Escola, o PICCE, também vinculado ao NAPI. A professora Joice é líder na equipe que desenvolveu o protocolo ‘Marketing e o Consumo de Drogas: implicações psicossociais’.

A publicação está disponível para dar sustentação a ações que possam detectar as mídias sociais mais populares entre os jovens e identificar os tipos de produtos aos quais estes estão expostos. A equipe do PICCE acredita que os resultados obtidos nestas iniciativas podem orientar políticas públicas no sentido da reduzir risco e as consequências do abuso de drogas.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Maria Eduarda de Souza Oliveira
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Gustav Bartmann
Arte: Camila Lozeckyi
Supervisão de arte: Hellen Vieira
Edição Digital: Guilherme Henrique

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Gostou do nosso conteúdo? Nos siga nas nossas redes sociais: Instagram, Facebook e YouTube.

Edição desta semana

Artigos em alta

Descubra o mundo ao seu redor com o C²

Conheça quem somos e nossa rede de parceiros