Em tempos de emergência climática, é provável que, toda vez que nuvens escuras se destacam no horizonte, o vento começa a chacoalhar as árvores e telhados, e os trovões anunciam que algo grave está por vir, muitas pessoas sentem um arrepio de apreensão e medo.
Quando a previsão do tempo ainda emite alerta de chuva muito acima da média para determinada região e riscos de ventania, raios e granizo, para as famílias que vivem em áreas de risco de deslizamentos e inundações o desespero bate ainda mais forte.
Eu não sei você, mas comigo acontece assim, mesmo não morando em área de risco. E me desespera mais pensar que, até áreas consideradas seguras para riscos de inundações, há alguns anos, vêm sendo impactadas, seja com enchentes ou quedas de árvores.
E não é para menos. É difícil entender como a água, recurso natural essencial para a vida no planeta azul, em eventos climáticos extremos, pode proporcionar tamanha destruição e morte como temos visto nos últimos meses. Tais fenômenos têm sido mais intensos e frequentes no Brasil, assim como em todo o mundo.
Para muitos, mais difícil ainda é aceitar que os mesmos locais que registram deslizamentos, enchentes e inundações históricas e causam grandes perdas materiais, de biodiversidade e de vidas, continuem a sofrer os mesmos impactos devastadores sem que nada seja feito.
Banco de dados
Por tudo isso e muito mais, torna-se urgente a adoção de medidas para amenizar e prever os impactos dos extremos do clima causados a populações que estão – e poderão estar no futuro – em situação de vulnerabilidade climática.
Com a proposta de mapear as regiões paranaenses mais suscetíveis aos impactos das chuvas em excesso, cientistas que atuam em 12 instituições de ensino superior do Paraná, e que têm a água como objeto de pesquisa, fazem parte do programa Novos Arranjos de Pesquisa e Inovações (NAPI) Águas.
O principal objetivo é reunir pesquisadores em rede para mapear e criar um banco de dados que auxilie na identificação das regiões com maior vulnerabilidade e na tomada de decisão para investimentos, impactando na melhora da vida da comunidade em geral.
A coordenadora do NAPI Águas (NA), Yara Moretto, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que a perspectiva é trazer indicadores e índices de vulnerabilidade e exposição aos efeitos das mudanças climáticas pensando em setores estratégicos no Paraná.
“O desafio é grande, porque, até agora, nunca houve um esforço como este, apesar da relevância do tema, quando se fala em água num contexto da problemática das mudanças climáticas e dos extremos do clima”. A coordenadora lembra que o NA nasceu na crise hídrica de 2021 e, atualmente, contempla também as inundações. O fomento vem da Fundação Araucária, agência que financia a ciência, no Paraná, e a coordenação é da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia e Ensino Superior (Seti).
“Vamos construir um banco de dados do Paraná para abranger e englobar a maior quantidade possível de informações ambientais que, hoje, estão muito dispersas. Temos uma grande quantidade de subsídios que não estão reunidos e disponíveis para os pesquisadores e para a sociedade”, afirma Yara. Ela explica, ainda, que um dos principais parceiros dos pesquisadores do NAPI Águas, nesta etapa, é o Sistema Meteorológico do Paraná (Simepar), que irá hospedar o banco de dados e torná-lo acessível a todos.
Há, também, no NAPI Águas, uma cooperação técnica com a Aliança Tropical de Pesquisa da Água, tradução da sigla em inglês TWRA – Tropical Water Research Alliance, uma parceria entre instituições públicas e privadas e o meio acadêmico do Brasil e da Austrália. A parceria busca promover uma abordagem que integre a pesquisa e a gestão das bacias hidrográficas tropicais. Inclusive, é na Austrália que a professora Yara conclui o seu pós-doutorado, em Bioeconomia.
Atualmente, dezenas de pesquisadores e especialistas em Informática e Ciência da Computação de várias universidades coordenam ações para reunir informações, até então, dispersas.
“Quando iniciamos a busca, descobrimos que a maioria dos dados não está na base de dados científicos e não foi indexada”, completa a professora Yara. Ao vencer a primeira etapa, que foi a busca e organização das informações, os integrantes do NAPI Águas já finalizaram um artigo científico sobre o processo de tratamento dos dados, que, no futuro, pode auxiliar novas pesquisas.
Pelo menos 60 projetos já fazem parte do cadastro junto à plataforma IAraucaria e servirão de fonte de dados para trazer índices para o próprio Napi Águas. Com a base completa, o foco será identificar quais são os indicadores de vulnerabilidade climática e estabelecer os índices de sustentabilidade para o Paraná.
Bacias hidrográficas
As mudanças climáticas favorecem o aumento de enchentes, secas e perdas na agricultura como estamos vendo. Os pesquisadores que integram o NAPI Águas pretendem definir indicadores de sustentabilidade que sirvam de parâmetro para a tomada de decisões sobre investimentos. A ideia é que construam uma ferramenta essencial para que legisladores e gestores de políticas públicas possam direcionar os recursos para medidas que resolvam ou amenizem, ao máximo, os impactos dos desastres ambientais.
O trabalho, nesta etapa, está direcionado a quatro setores estratégicos. A proposta é a definição dos indicadores sobre: Ecossistemas e serviços ecossistêmicos; Saúde Urbana ou coletiva; Transporte; e Litoral. Os dados são coletados e as áreas classificadas, indicando onde aplicar investimentos a partir de índices de sustentabilidade, que são desenvolvidos por bacias hidrográficas específicas, levando em consideração fatores econômicos e sociais.
O Paraná possui 16 bacias hidrográficas com uma extensão de 196 mil quilômetros quadrados. A maior é a do Rio Iguaçu, que passa por 113 municípios com uma extensão de quase 55 mil quilômetros quadrados. Começa no encontro dos rios Iraí e Atuba, na parte leste do município de Curitiba, bem na divisa com o município de Pinhais, e deságua nas Cataratas do Iguaçu.
O vice-coordenador no Napi Águas, pesquisador do Laboratório de Geoquímica do Petróleo e Ambiental e professor da UFPR, Sandro Frohner, ressalta que, até o momento, não havia registros de biodiversidade aquática em indicadores de sustentabilidade. “A preocupação é não deixar nada de fora e esta tem sido a grande dificuldade na mineração dos dados, pois há muita carência de informação. Tanto que é importante pensar em como o Estado pode investir em pesquisa para suprir essa carência e, assim, termos um banco de dados consistente”.
E faz sentido essa preocupação. Afinal, tudo o que os pesquisadores conseguirem reunir e organizar, em termos do Napi Águas, será fundamental para as projeções que irão orientar os investimentos por meio de indicadores sociais, econômicos e de infraestrutura para os quatro setores estratégicos. Assim, será possível mapear e sistematizar 36 anos de pesquisa sobre dados aquáticos.
Complexidade
Para se ter uma ideia da complexidade do empreendimento desenvolvido pelo Napi Águas, é preciso compreender qual a natureza do projeto. Uma equipe multidisciplinar se divide em quatro grupos. Cada um deles é responsável por investigar os locais onde há dados que possam interessar ao projeto. Eles fazem a coleta e avaliam as informações, fazendo comparação com dados mundiais e relacionando em nível estadual e mundial.
Por meio de modelos matemáticos estabelecidos por protocolos específicos e a modelagem de dados1, será possível fazer projeções com base nas informações, tanto do passado quanto do presente. Esses modelos conseguem dar uma previsão de qual caminho seguir ou orientar mudanças de análise e apontamentos.
“Com esses dados, e com essa forma, vamos ter instrumentos para prever, não a seca ou enchente, mas os possíveis problemas que esses impactos podem trazer para a população. Assim, podemos nos preparar, antever, para que a sociedade não sinta esses efeitos de forma tão drástica como vimos em Porto União e União da Vitória”, completa o vice-coordenador.
Ao citar União da Vitória e Porto União, Sandro Frohner evoca um exemplo de impacto das mudanças climáticas que ainda está fresco na memória. Em novembro de 2023, as cidades tiveram a terceira pior enchente dos últimos 40 anos, das quatro registradas desde 1983. Pelo menos um terço dos quase 60 mil habitantes de União da Vitória foi atingido pela cheia do Rio Iguaçu, segundo a Defesa Civil.
No lado da divisa de Santa Catarina, Porto União, cidade colada à União da Vitória, foram mais de 40 dias debaixo d’água, assim como Irineópolis, Três Barras e Canoinhas, que também sofreram com a recente cheia.
São gerações de famílias que deixaram a região Sul do Paraná, onde União da Vitória está localizada, por medo das cheias do Rio Iguaçu e em busca de um lugar seguro e digno para viver. São conhecidos como refugiados da enchente. Infelizmente, é uma realidade que vemos reiteradamente em várias partes do país.
Clima extremo
Desde o final do segundo semestre de 2023, o ano mais quente da história, o volume insano de chuvas no Sudeste e Sul e a seca história na região Norte tem provado, por A+B, o que cientistas alertam há décadas: se não desenvolvermos práticas sustentáveis de exploração dos recursos naturais e diminuirmos as emissões dos gases de efeito estufa, o planeta poderá se tornar hostil para todos os seres vivos, incluindo a humanidade.
E os pesquisadores dizem mais: somente com investimentos em soluções sustentáveis para prevermos catástrofes climáticas será possível termos alguma chance de nos adaptarmos e vivermos, e sobrevivermos, por essas terras.
Ao que parece, a palavra-chave para essa tomada de decisão é a sustentabilidade, onde áreas prioritárias devem orientar as políticas públicas.
Mas afinal, o que é sustentabilidade?
Segundo o pesquisador Sandro Frohner afirmou em palestra ao Paraná Faz Ciência em 2023, a definição mais aceita e citada por pesquisadores vem da Comissão Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada nos anos 80 pela Organização das Nações Unidas (ONU): “desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que atende às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender as suas próprias necessidades”.
E o que isso quer dizer, exatamente?
Subtende-se que não é mais possível conviver com deslizamentos, inundações e cheias que se repetem no tempo, sempre nas mesmas regiões e impactam gerações de famílias que vivem em áreas vulneráveis. Isto sem falar de locais que parecem seguros hoje, mas que podem representar grandes perigos no futuro.
Por fim, é bem provável que entre a produção desta matéria e a sua publicação, aqui no Conexão Ciência – C², coisa de quatro semanas, teremos experimentado no Brasil mais um ou vários fenômenos relacionados aos extremos do clima, com destruição e morte transmitidos em tempo real.
Se a vida fosse um filme, agora, seria o momento em que os cientistas e a ciência entram em cena para salvar a humanidade, mesmo sendo desacreditados no início do roteiro.
Oxalá possamos ainda termos tempo de prepararmos um futuro onde enchentes e deslizamentos não sejam mais considerados ‘desastres naturais’.
EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Bruna Mendonça
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:
Glossário
- Modelagem de Dados – é o processo de criar uma representação visual, ou esquema, que define os sistemas de coleta e gerenciamento de informações de qualquer organização. ↩︎