Comunidades do Território Caiçara agora estão no mapa

A imagem mostra uma equipe diversa realizando mapeamento participativo em uma comunidade ribeirinha. À esquerda, três pessoas usam um equipamento de geolocalização (GNSS) sobre um tripé. À direita, outras pessoas analisam mapas sobre uma mesa, enquanto ao fundo há um grande mapa ilustrado com casas e um rio. A cena retrata a integração entre tecnologia, ciência cidadã e planejamento territorial. Arte de Maria Eduarda Ehms para o Conexão Ciência.
No final do ano, pesquisadores da Geografia da UFPR finalizam projeto de geoprocessamento no Parque Nacional de Superagui, no litoral do Paraná

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Imagina estar num lugar onde você nasceu, seus antepassados viveram por quase três séculos, mas a sua comunidade não existe para as instituições e você não tem nenhum direito garantido, seja de propriedade, de identidade ou mesmo de, simplesmente, existir naquele local.

Pode até lembrar um enredo de filme de época com realidades tão distantes da nossa ou daquelas distopias que tanto nos intrigam. Infelizmente, há semelhança com qualquer um destes cenários, com certeza, mas esta é a realidade que mais de 600 famílias, em 18 comunidades, que moram no Parque Nacional de Superagui, no litoral do Paraná, enfrentam há 36 anos.

Criado em 1989, o Parque era constituído por uma área inicial de cerca de 21.400 hectares. Em 1999, ocorreu outra demarcação e a área aumentou para cerca de 34.000 hectares, o que incluía as ilhas de Superagui, das Peças, de Pinheiro e a do Pinheirinho. 

Acontece que, nesta área, além de fauna e flora exuberantes de Mata Atlântica que precisa ser preservada, viviam comunidades tradicionais de pescadores artesanais que, de uma hora para outra, passaram a fazer parte da área de preservação e sem nenhuma garantia de permanência em seu território.

Neste contexto de insegurança, nasce o projeto Território Caiçara (TECA), uma demanda do Instituto Chico Mendes de Conservação da Natureza (ICMBio), que solicitou um estudo sobre 18 comunidades tradicionais da região, durante o processo de licenciamento ambiental da Etapa 3 de exploração do Pré-Sal pela Petrobras. A imposição do levantamento dos dados foi atribuída à Petrobras, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), para o licenciamento. 

E é aqui que entra o Laboratório de Geoprocessamento e Estudos Ambientais (Lageamb), da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A equipe foi convidada para realizar esse estudo, que envolveu território caiçara da Baía dos Pinheiros, Ilhas das Peças e do Superagui. O objetivo era criar subsídios cartográficos e documentais para dar suporte legal à regularização fundiária e com a perspectiva de melhorar a gestão do Parque.

“Eles nos convidaram porque não se tinha clareza da metodologia, como estudar os caiçaras de uma maneira que respeitasse, sobretudo, os tempos da comunidade”, relembra o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Lageamb e do projeto TECA, Eduardo Vedor de Paula.

  • A imagem mostra em primeiro plano, o professor Eduardo Vedor, homem branco, de cabelos e barba castanho claro, de camiseta cinza, falando com um microfone na mão direita em reunião com moradores do território caiçara;
  • De ouro ângulo, a imagem mostra o professor Eduardo Vedor falando com um microfone na mão direita para várias pessoas numa casa, todas sentadas em cadeira formando um círculo;
  • A imagem apresenta diversas pessoas, pescadores e ribeirinhos em sua maioria, sentados numa espécie de área aberta, como mar azul ao fundo e um trapiche à direita, aparentemente numa reunião. No canto inferior esquerdo, um cachorro de médio porte marrom está deitado ao lado de um homem, de cabelos e camiseta brancos e boné que acompanha a reunião.

Mesmo com ampla experiência com pesquisas e trabalhos na região, até porque o Lageamb tem como principal linha de pesquisa o planejamento e gestão ambiental no litoral paranaense, Vedor relata as dificuldades no início do projeto, em 2020, agravadas pela pandemia. 

“O começo foi bastante difícil. Foram 24 reuniões no período da pandemia, a grande maioria on-line e as presenciais com máscaras e mantendo distância, até a gente passar pelo plano de consulta dentro do protocolo da comunidade e assim iniciar o trabalho de campo”, conta o professor.

Para quem não sabe, geralmente, comunidades tradicionais possuem um forte movimento social organizado, muito em função da insegurança de viver sob ameaça de serem obrigadas a sair do seu território. 

Desde 2008, o Movimento dos Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná (Mopear) tem a missão de mobilizar e articular os pescadores artesanais do litoral paranaense na defesa de seus direitos e no reconhecimento social do seu modo de vida tradicional. E mais: controlar o acesso ao território, seja de turistas, seja de pesquisadores.

Assim, a permissão para qualquer pesquisa no local é concedida somente após o Movimento conhecer a fundo projetos de pesquisas e participar da construção da metodologia de trabalho, que envolve a maioria dos moradores. “Foi bem desgastante, mas hoje eles são grandes parceiros, porque a gente aprendeu demais com os pescadores e com a maneira deles se organizarem, de entender o território. O atraso do início do projeto, a gente recuperou com o envolvimento com a comunidade”, ressalta Vedor.

‘Mapa falado’

No contrato, a meta era entrevistar metade das famílias de cada uma das 18 comunidades para ter uma visão geral, com cada entrevista durando em média uma hora. Dentro desse diagnóstico, foi possível fazer toda a cartografia técnica para subsidiar os instrumentos de regularização fundiária no futuro. 

A ilustração tem o título Projeto Caiçara em números e traz o seguinte conteúdo: 50 meses de duração do projeto; 11 graduações participantes; 31 Geografia UFPR; 18 comunidades entrevistadas; 645 famílias entrevistadas; 9 instituições envolvidas; 233 páginas do relatório final. No rodapé, conta a fonte dos números: Lageamb/UFPR.

Durante quatro anos, professores e estudantes de diversas graduações da UFPR estiveram envolvidos no projeto Território Caiçara, sob a coordenação do Lageamb, sem se restringir a geógrafos. “Nosso trabalho é interdisciplinar, e envolve engenheiros cartográficos, engenheiros civis, agrônomos, biólogos,  filósofos, sociólogos, antropólogos, entre outras áreas. O desafio maior é conectar diferentes conhecimentos e potencializar o resultado final”, justifica Vedor.

De acordo com o coordenador, “no projeto, nós utilizamos drones, GPS de precisão e outras tecnologias para o geoprocessamento. Mas a gente desenvolveu também uma cartografia participativa, que chamamos de ‘mapa falado’, onde a própria comunidade desenhava a sua forma de ocupar o território, não só as residências, mas também as áreas de uso dessas comunidades”.

Nas reuniões com os moradores, os pesquisadores ouviram relatos de muitas práticas que foram proibidas, por conta da criação da área de preservação, dentre elas a roça, já que o caiçara é um povo que está entre a terra e o mar. Para se adaptarem, eles verticalizaram todas as suas práticas para o mar, porque na terra há a proibição. 

O efeito colateral é que os mais jovens nem sabem manejar o trabalho de cultivo na terra. Muitas casas de farinhas, comuns nas comunidades tradicionais do litoral, ali na área do projeto estavam abandonadas, já sem uso. As casas que ainda subsistem e se mantêm ativas na produção foram documentadas pela pesquisa.

“Um dos objetivos do projeto foi resgatar e documentar os hábitos, novos e antigos, mas acho que uma grande e grata surpresa que a gente teve, muito positiva, foi a Genealogia”, reforma o coordenador. Após escutas ativas, os pesquisadores conseguiram comprovar com documentos apresentados pelos caiçaras parentesco de até sete gerações, cerca de 270 anos, dos antepassados das diversas etnias que hoje se fundiram e formaram o Território Caiçara, como podemos ver na ilustração abaixo.

A ilustração tem o título ‘Etnias que formam a comunidade caiçara’ e apresenta os nomes das etnias: Guaranis; Suíços e franceses; Africanos escravizados; Ibéricos; e Sambaquieiros. No rodapé, está a fonte da pesquisa: Lageamb/UFPR.

Com a interdisciplinaridade, enquanto topógrafos, agrimensores e geógrafos dedicavam-se à parte técnica, sociólogos e antropólogos faziam a parte social. No território, há a comunidades indígena e quilombola, que, ao longo dos séculos, foram se miscigenando com descendentes europeus.

“Ali encontramos suíços, espanhóis, portugueses, que chegaram na região há cerca de 300 anos e tiveram uma mescla cultural muito forte com escravos que se escondiam nessa região e também com indígenas. Podemos afirmar com certeza que a cultura caiçara representa o Brasil na sua plenitude”, destaca o professor. 

O relatório final do TECA já foi apresentado para a comunidade em novembro de 2024 e agora o grupo está revisando o documento final.

“É um produto lindo, que a gente pretende disponibilizar e deixar em exposição no futuro como acervo do MAE (Museu de Arqueologia e Etnografia da UFPR), em Paranaguá, para que todos possam conhecer a realidade das comunidades tradicionais, sua origem e cultura”, informa Vedor.

Ao longo do estudo, cerca de 40 pesquisadores passaram pelo projeto. O rol de oportunidade para formação profissional através do extensionismo passa pela iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doc, além dos docentes e técnicos administrativos. Muitos artigos e Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) já foram apresentados no respectivos cursos, tendo como tema a participação no TECA, enquanto outros em fase adiantada para conclusão. 

  • A imagem colorida apresenta uma foto aérea, tirada com um drone, que mostra na parte de cima uma floresta e vegetação com várias casas, com uma estrada separando o local , o que seria uma espécie de comunidade de pescadores, do mar azul. Vários barcos estão ancorados próximo à costa.
  • A imagem mostra várias pessoas de costas, a maioria homens, observando bem próximos dois painéis com fotos áereas que destacam uma região de floresta com casas cercadas de árvores. A impressão que passa é que eles estão tentando encontrar suas casas nas imagens.

Num projeto de fôlego dessa natureza e dimensão, na ordem de R$ 5,5 milhões, o projeto gerou muito aprendizado, especialmente para a Geografia, por seu ineditismo e relevância.  Isso também nos trouxe uma série de desafios burocráticos aqui dentro da instituição, mas por outro lado nos credenciou a assumir outros desafios.

“Eu vejo que o Território Caiçara foi uma experiência incrível para nós pesquisadores e para os pescadores, além de nos credenciar para assumir outros desafios”, avalia Vedor.

Nova Geografia?

Agora, vamos à pergunta que não quer calar: que Geografia é essa que é capaz não só de medir, mapear, interagir com as pessoas, envolver-se, resgatar, analisar e transformar (para o bem) a vida das pessoas num determinado local, como no caso do Território Caiçara? 

Normalmente, desde sempre temos em mente que a Geografia é tão somente o estudo das características naturais do planeta Terra, como relevo, clima, vegetação, hidrografia e fenômenos geológicos e recebe a denominação de Geografia Física. Quem nunca sofreu para decorar os tipos de vegetação como deserto, estepe, taiga, floresta temperada, floresta tropical, savana, tundra, vegetação de altitude e vegetação mediterrânea, que provavelmente nunca pode conferir in loco. 

Poucos sabem, mas há ainda a Geografia Humana, que cuida da interação entre os humanos e o espaço geográfico, analisando como as pessoas moldam, utilizam e são afetadas pelo ambiente físico. Os esquimós e seus igls, povos indígenas que habitam o extremo norte do planeta, principalmente nas regiões árticas do Canadá, Alasca, Sibéria e Groenlândia. 

Calma, não acabou. Nas chamadas Ciências da Terra, área na qual a Geografia está inserida, a tecnologia e inovação para a captação e análise de dados estão presentes no que definiram como Geoprocessamento. A etimologia da palavra significa o processamento de dados relacionados à terra ou ao espaço geográfico, utilizando métodos computacionais e tecnológicos. É o termo usado para descrever a disciplina que utiliza técnicas matemáticas e computacionais para coletar, tratar, analisar e apresentar dados geográficos.

“A Geografia que eu vejo hoje é essa Geografia de conexões, capaz de verticalizar um território para entender os atores e os processos que ali se desenvolvem, definida como Geografia Regional”, explica o professor da UFPR. Vedor representa o Brasil na Rede Iberoamericana de Observação Territorial (RIDOT), da qual participam pesquisadores de diferentes países da Península Ibérica e Latinoamericana, de forma voluntária diga-se de passagem.

A Geografia Regional estuda as regiões da Terra de forma descritiva, a fim de entender as características e particularidades de cada uma delas. Com forte influência da Espanha, principalmente, mas também de Portugal e na América Latina, este ramo de pesquisa está sendo resgatado no Brasil há alguns anos. 

O Conexão Ciência – C² explica no vídeo acima o que é a Geografia Regional, seus princípios e objetivos e como está transformando a própria compreensão desta ciência, que merece atenção para a complexidade e profundidade dos estudos que a tem como referencial teórico.

Portanto, o projeto Território Caiçara do Lageamb da UFPR tem o mérito de garantir direitos a quem estava desprotegido e cria um importante precedente para ressignificar a profissão de geógrafo, e da própria Geografia, como um campo aberto a inúmeras possibilidades e conexões.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Silvia Calciolari
Revisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Sabrina Heck
Arte: Maria Eduarda Ehms
Supervisão de arte: Lucas Higashi
Edição Digital: Guilherme Nascimento

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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