Contra a fábula, cigarrinha resolveu dançar no milharal

Pesquisadores do Paraná se organizam em um NAPI para combater o enfezamento do milho causado pela prima ancestral da cigarra que só sabia cantar

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Entre as inúmeras Fábulas de Esopo1, há uma sobre o embate entre a cigarra que passou dias e noites do verão cantando, enquanto a formiga reunia provisões para o inverno. Quando o frio chega, a cigarra pede comida e a formiga se recusa a ajudá-la e oferece apenas um conselho: “se cantou no verão, agora dance!”

Nunca é demais recorrer às fábulas para darmos a dimensão mais aproximada de uma situação. Desde a Grécia Antiga, as cigarras da espécie Quesada gigas continuam cantando a até 120 decibéis pelos bosques com seus quase 6,5 centímetros de comprimento, sem representar ameaça para os humanos e ao ambiente em que vive.

Mas não é o caso de uma parente beeeem distante, a espécie Dalbulus maidis que pertence à ordem Hemiptera e à família Cicadellidae. Trata-se de um inseto bem pequeno, em torno de 0,4 cm quando adulto, de coloração branca a palha e duas manchas pretas na cabeça. Constatada no Brasil há quase um século, a cigarrinha do milho passou a atormentar os produtores a partir de 2015. Vale lembrar que a cigarrinha, assim como o mosquito Aedes Aegypti da Dengue, não causa a doença, atuando apenas como transmissor de diversos patógenos.

Distante da fábula, ela deixou de cantar e decidiu ‘dançar’, tendo o milharal como palco e o milho como obsessão. Os insetos até tentam se alimentar e morar em outras plantas, só se reproduzem nele. Embora seja impossível estabelecer a relação entre as duas espécies, a cigarrinha representa um desafio atual e real para pesquisadores, gestores públicos e produtores de milho, pois são vetores de patógenos causadores de doenças importantes

E como quem vê cara não vê coração, as cigarrinhas não infectadas não causam grandes prejuízos às plantas de milho. Porém, é impossível saber se estão carregando vírus e bactérias causadores de doenças importantes que levam a perdas financeiras.

Nesta medida, como combater a praga que ameaça uma cadeia produtiva de larga escala para alimentação humana e animal?

Diante dessa demanda, pesquisadores se organizaram na Rede Agropesquisa Complexo de Enfezamento do Milho (CEM) no Paraná, que oficializou, desde 2023, o Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (NAPI) Enfezamento do Milho.  O objetivo é atender o setor agrícola do estado, que vem registrando prejuízos sucessivos causados pelos enfezamentos e viroses transmitidos pela cigarrinha do milho.

O que é o Complexo de Enfezamento do Milho?

O Complexo de Enfezamento do Milho é composto pelas doenças causadas por bactérias enfezamento vermelho (fitoplasma), enfezamento pálido (espiroplasma) e pela risca do milho causada pelo vírus Maize rayado fino. Todos são transferidos isoladamente ou simultaneamente para a planta pela cigarrinha D. maidis. Embora mais estudos sejam necessários, a virose mosaico estriado do milho e a cigarrinha Leptodelphax maculigera podem passar a fazer parte deste complexo.

A cigarrinha se contamina ao se alimentar em plantas de milho doentes. Não existe transmissão de contaminação das fêmeas para os ovos, mas as ninfas podem se contaminar assim que eclodem dos ovos e se tornarem adultos infectivos capazes de transmitir os patógenos pelo resto de sua vida, em torno de 90 dias.

As plantas são contaminadas em estágios bem precoces, logo após a emergência, porque os insetos preferem os tecidos mais jovens, tanto para se alimentar, quanto para a deposição dos ovos. Mas os sintomas das doenças só são observados na fase reprodutiva da planta.

Ao sugar a seiva da planta nos primeiros estágios, a cigarrinha contaminada compromete o desenvolvimento tornando o vegetal raquítico, atrofiado, sem condições de dar sequência ao crescimento até à formação da espiga. Em alguns casos, chega, inclusive, impedir que a planta permaneça em pé, quando ocorre o tombamento e quebramento.

Por estas características, a doença é chamada de enfezamento, que é ato de destruir, arruinar algo ou alguém. O enfezamento, apesar de ter dado o nome à doença, é um tipo de sintoma, também conhecido como nanismo. Está relacionado à redução do tamanho da planta toda, ou de seus órgãos. Os sintomas são causados geralmente por infecções por vírus ou bactérias sem parede celular.

Os integrantes do NAPI Enfezamento do Milho no Paraná encaram a cigarrinha como uma praga transmissora de doenças para as quais as estratégias de combate e controle devem ser aprimoradas definidas a partir de muita pesquisa de campo, estudos em laboratórios e integração entre as diversas técnicas existentes. 

Não existe cura para as doenças do CEM. A proteção dos cultivos deve ser realizada cumprindo as ações que compõem o Manejo integrado, que vão desde a semeadura até a colheita e transporte do grão

Neste contexto, a metodologia de trabalho está determinada a partir de três ações coordenadas: eixo 1: Monitoramento de cigarrinhas (Dalbulus maidis) e patógenos do Complexo de Enfezamento do Milho; eixo 2: Avaliações das reações de cultivares de milho (híbridos e variedades); e o eixo 3: Avaliações da eficácia da aplicação de inseticidas sintéticos e biológicos no controle de Dalbulus maidis. O NAPI  representa um esforço estadual na integração das informações e dados, de forma a permitir a sistematização dos resultados para fundamentar a indicação dos critérios técnicos de manejo do complexo de enfezamentos do milho no Paraná.

Michele Regina Lopes da Silva é pesquisadora e professora do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-PR), que incorporou os antigos Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR) e Instituto Paranaense de Assistência e Extensão Rural (Emater). Ela integra o grupo do eixo 1, responsável por mapear e monitorar os tipos de patógenos e incidência da doença. 

“Por volta de 2019, nós do IDR-Paraná começamos a receber relatos sobre a ocorrência de uma doença ainda pouco conhecida no milho aqui no sul do país. Os produtores rurais e as cooperativas começaram a enviar amostras de plantas sintomáticas para análise no laboratório e a solicitar palestras e treinamento técnico”, lembra a pesquisadora. Michele já trabalhava com doenças relacionadas ao café e citros e por isso foi designada para buscar informações sobre essa nova ocorrência.

A pesquisadora ainda integra os grupos dos eixos 2 e 3. É responsável por mapear e monitorar os tipos de patógenos e incidência da doença, avaliar a relação entre o complexo de enfezamento do milho e o complexo de podridão de colmos do milho. Outra atividade é apoiar os demais projetos que necessitem realizar a detecção dos patógenos em tecidos da planta de milho ou da cigarrinha. 

Formada em Ciência Biológicas, Michele Regina Lopes da Silva, começou sua carreira de pesquisadora no antigo IAPAR, na sede de Londrina (Foto/ Arquivo pessoal)

Pandemia impede o monitoramento

É importante destacar que a cigarrinha sempre esteve presente no Brasil. Porém, ela não transmitia patógenos e nem causava doenças. Antigamente, quando se observava a presença da cigarrinha não significava que ela iria transmitir alguma doença. Desta forma, os surtos eram esporádicos.

“Foi somente a partir de 2015 que se iniciou o registro dos problemas causados por doenças do Complexo de Enfezamento do Milho no Norte, Nordeste e Centro Oeste do país, principalmente nas áreas produtoras de sementes do cereal, onde o milho em diferentes fases de desenvolvimento também é irrigado. Desde então, a gente começou a observar que tinha ocorrência aqui no Paraná também, e depois nos três estados do Sul”, afirma.

Quando tudo caminhava para o começo dos estudos, veio a pandemia e interrompeu as pesquisas de laboratório e no campo, treinamento para reconhecimento do inseto e até mesmo a presença dos técnicos nas lavouras contaminadas. Mesmo assim, foi possível iniciar a coleta de plantas para análise ainda em 2020 e 21, mas somente no início de 2022 foi possível trabalhar presencialmente no campo e no laboratório.

“Nesse período, os produtores rurais que ficaram sem assistência especializada passaram a pulverizar suas plantações em até dez vezes, quando o normal seriam de duas, até três”, ressalta Michele. O que foi possível fazer remotamente, como a pesquisa bibliográfica e encontros online, e as articulações que posteriormente resultaram na formação do NAPI em 2023, foram feitos. 

Com o NAPI formalizado em meados de 2023, agora o grupo dispõe de recursos e condições para avançar no monitoramento, objetivo do eixo 1. “Vamos monitorar os patógenos associados ao Complexo de Enfezamento tanto na cigarrinha quanto nas plantas de milho. As informações obtidas sobre tamanho de população e infectividade dos insetos serão usadas para a geração de alertas aos produtores”, completa Michele.

Além de Michele Regina Lopes da Silva do IDR-Paraná, participam deste eixo 1 os professores e pesquisadores Maurício Ursi Ventura da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no desenvolvimento de tipos de armadilhas para captura do inseto, e Orcial Ceolin Bortolotto da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), responsável pelo monitoramento da cigarrinha no estado e coordenador do eixo.

Controle genético 

O pesquisador do IDR-PR e coordenador estadual da Rede Complexo de Enfezamento do Milho, Ivan Bordin, comanda o eixo 2 do NAPI, que é responsável pelo teste de cultivares. Esse segmento é caracterizado pela avaliação de híbridos de milho. Bordin explica que existem cinco recomendações básicas para controle do enfezamento: “o controle genético, o tratamento de sementes, a pulverização com inseticida, o controle do milho tiguera, conhecido como milho voluntário, ou seja, aquele que surge fora da estação nas lavouras a partir de grãos de milho presentes no solo e a cigarrinha só se multiplica nele. A última é evitar o plantio escalonado, ou seja, plantar o milho de uma vez só”.

Dessas recomendações, o eixo 2 se dedica ao controle genético, que, segundo o pesquisador, é o mais importante de todos. Nesse estudo, Bordin destaca a importância de se trabalhar em rede e destaca que o NAPI Enfezamento do Milho consegue conectar a pesquisa básica universitária com a pesquisa prática dos institutos de pesquisa e o mercado. 

Por isso, além das universidades e de outras instituições do Estado, o NAPI também atua ao lado das cooperativas. O trabalho é realizado em Londrina no IDR-Paraná, em Assaí, onde está a cooperativa integrada, Floresta, na sede da Cocamar, Campo Mourão, onde está a Coamo, e em Cafelândia, sede da Copacol. Também faz parte da rede a Embrapa Milho e Sorgo, localizada em Sete Lagoas – Minas Gerais. 

Ivan Bordin na II Semana Geral dos NAPIs, em Londrina (Foto/Equipe do C²)

Para uniformização das atividades na rede é determinado um protocolo base entre os parceiros, que é atualizado anualmente. Assim, é definido o número de cultivares (cedidos pelas cooperativas). “Por lógica, eles escolhem aqueles que são mais comercializados”, os tratos culturais e variáveis a serem avaliadas. Então, o nosso portfólio é esse, entre 20, 30 materiais, representando 70% da venda de sementes de milho”, explica o pesquisador.

O próximo passo é fazer a semeadura no campo e, depois, a Embrapa Milho e Sorgo vem para fazer a avaliação do enfezamento. “Em uma semana eles vão em todos os municípios citados anteriormente e fazem uma avaliação visual, para dar uma nota do enfezamento para cada material. Apenas o pesquisador Luciano Cota é o responsável pela avaliação visual. Ainda não existe nenhum método analítico de laboratório efetivo para determinar o enfezamento. Então, o visual é mais prático e tem uma margem de acerto bem alta”, conta Bordin. 

Os dados gerados pela avaliação são passados para o pesquisador, que é o gerente do projeto. Ele faz a organização dos dados e gera uma circular técnica com dados robustos, pois contempla os critérios estatísticos, que se trata de um pequeno livro, bem prático e direto, com linguagem acessível para o produtor rural, formado por vários gráficos e imagens. Desde 2022 é produzida uma circular técnica por ano.

É importante destacar que o NAPI atua com a cadeia completa do milho, algo muito relevante, visto que o milho é a terceira maior commodity2 do Paraná, movimentando aproximadamente R$ 15 bilhões por ano. A diminuição da oferta de milho no mercado por algum problema de pragas e doenças atinge diretamente o mercado de alimentos, visto que a ração de aves e suínos é composta 70% por milho. “Existe uma justificativa de segurança alimentar dentro do NAPI, além da questão ambiental, com os estudos de controle químico”, conclui o pesquisador. 

Manejo integrado

Passadas as fases de monitoramento e testes cultivares, as pesquisas no NAPI do Enfezamento do Milho dão prosseguimento com o eixo 3. A proposta é avaliar e indicar qual a melhor estratégia para o combate da cigarrinha-do-milho, tendo como referências o controle químico ou biológico, ou mesmo os dois associados. 

O pesquisador e professor Gilberto Santos Andrade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campus de Pato Branco, coordena os trabalhos de 12 pesquisadores do eixo 3 e explica que, apesar do Paraná usar em sua produção sementes de milho transgênico, nem todas as doenças podem ter o seu desenvolvimento combatido.

“O milho transgênico que temos é voltado para o conjunto de lagartas, que configura o principal grupo de insetos na agricultura. Mas para a cigarrinha, ainda não dispomos de um material que seja resistente”, informa Gilberto. 

Como se percebe, o material transgênico não tem capacidade de afetar as cigarrinhas, seu crescimento populacional e sobrevivência. E é exatamente nesse aspecto que este eixo do NAPI pretende atuar: “vamos selecionar produtos químicos e biológicos que tenham melhor desempenho no manejo da praga e avaliar sua compatibilidade em uso conjunto. Assim, saberemos que mecanismo de ação e mistura são mais eficientes contra a praga e integrando estas pesquisas com os demais eixos do NAPI”, adianta.

Gilberto Santos Andrade é formado em Agronomia e tem mestrado e doutorado em Entomologia, a ciência que estuda os insetos (Foto/Arquivo pessoal)

E por que é importante usar no plantio uma semente que seja resistente à cigarrinha?

“É preciso encontrar um material que favoreça um bom ponto de equilíbrio da espiga, que seja resistente ao tombamento da planta e que responda muito rapidamente àquele arranque inicial do desenvolvimento do milho”, completa.

Gilberto conta que a maior dificuldade para os produtores e pesquisadores é saber quando a cigarrinha infectada está presente na plantação. Por ser um inseto minúsculo, quando detectado não se percebe de imediato se haverá danos no sistema reprodutivo do milho. As cigarrinhas se instalam nas dobras das folhas recém-germinadas, o que impede inclusive a ação de inseticidas e fungicidas. Quanto mais nova a planta de milho, mais sensível são a esses insetos.

“A manifestação dos enfezamentos vai ocorrer muito lá na frente, porque essas bactérias vão começar a se multiplicar na planta gerando um efeito adverso sobre a condução de seiva na planta”, diz. E acrescenta: “quando a gente vê já há um secamento, murchamento e tombamento em casos mais severos do milho, que pode chegar a comprometer mais de 90% da produção”.

Outro dilema é definir quando começar o combate. Isto porque, pode-se ter poucas cigarrinhas infectadas e muita doença, ou muitas cigarrinhas e pouco enfezamento, pois é muito difícil saber se há contaminação. Para Gilberto, não existe um nível que o agricultor vai levar em consideração para começar o controle. “Na simples presença do inseto, tem que tomar algumas iniciativas para reduzir esses efeitos”, alerta. 

Por isso, é fundamental o uso de materiais híbridos que tenham uma certa tolerância a essas doenças, porque independente da simples presença do inseto, já pode se supor que haverá dano. Aí entram várias técnicas de manejo como químicos ou biológicos, podendo ainda indicar pulverização ou mesmo utilizar a estratégia de incêndios controlados para diminuir a população sem criar ameaças extras para o meio ambiente.

“A gente trabalha com as cooperativas que são parceiras nos estudos e assim podemos entregar os resultados do melhor manejo rapidamente, integrando diversas técnicas, formas de monitoramento, seleção de produtos a partir de pesquisa aplicada”, conclui Gilberto.

Ciência no ritmo

Como vemos, a cigarrinha seguiu o conselho da formiga e passou a ter o milho como fonte exclusiva de subsistência e transformou o milharal em seu palco. Longe de romantizar a mensagem da fábula, o que se pretende é mostrar o tamanho do desafio dos pesquisadores em encontrar soluções para demandas do mundo real.

O milho, por se tratar de uma importante cultura econômica e com uma janela considerada grande de plantio, deve receber atenção especial da ciência, dos pesquisadores e gestores, além de oferecer uma resposta o mais rápida possível para o combate eficaz dos enfezamentos.

São esses aspectos que norteiam o trabalho do NAPI Enfezamento do Milho.

Como sempre, a ciência não pode errar o passo!

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Texto:
Silvia Calciolari e Milena Massako Ito
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Lucas Higashi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

  1. Fábulas de Esopo – As fábulas são exemplos da tradição popular oral que persiste no tempo e espaço. Os enredos do escritor Esopo (620 a.C. – 564 a.C.), que viveu na Grécia Antiga, foram atualizados em versos pelo francês Jean de La Fontaine (1621 – 1695) e teve inúmeras adaptações, inclusive a do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882 – 1948). ↩︎
  2. Commodity – São produtos de origem agropecuária ou de extração mineral, em estado bruto ou pequeno grau de industrialização, produzidos em larga escala e destinados ao comércio externo. ↩︎

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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