Criança tem VOZ e tem LEI

No mês do Dia da Criança, é bom que a gente saiba que há estudos que apontam formas adequadas de se conversar e defender os direitos da garotada

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Tá bom, não vou reclamar da sua reflexão. Sim, o Dia da Criança tem um caráter bem comercial. Mas, talvez, você não saiba que a inspiração veio da publicação da Declaração dos Direitos da Criança, que ocorreu em Genebra, em 1924. Assim, por aqui pelo Brasil, o dia 12 de outubro foi instituído, naquele momento, como uma data especialmente dedicada à garotada. 

Saímos na frente do Fundo das Nações Unidas para a Infância. Só em 1959, o Unicef estabeleceu o dia 20 de novembro como Dia Internacional das Crianças. Por quê? Em referência à Declaração dos Direitos da Criança, que foi publicação nesta data, 35 anos antes, na Suíça, como dito acima.

O que se sabe, então, é que esse documento determina alguns direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Isso mostra que esses grupos têm lei, que é necessário respeitá-los sob diversos aspectos. Essa é uma publicação internacional, mas há também leis nacionais que determinam o comprometimento da sociedade com a garotada.

Em 2021, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) está completando 31 anos de existência.  Segundo a professora do Departamento de Direito Público, da Universidade Estadual de Maringá (DDP/UEM), no Paraná, Amália Regina Donegá, o ECA contribuiu muito com o avanço da defesa dos direitos da população infanto-juvenil em nosso país. 

A professora é coordenadora estadual do Programa Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (Neddij), e do Núcleo de Maringá, é uma das autoras do livro “Aspectos Penais da Lei Nº 8.069/1990-Estatuto da Criança e do Adolescente”, recém-lançado, pela Juruá Editora. O capítulo que ela escreveu fala exatamente do Estatuto.

“O ECA promoveu um verdadeiro reordenamento institucional ao atribuir responsabilidades não somente à família, mas também à sociedade e ao Estado. Com isso, construiu uma nova cultura de proteção aos direitos da criança e do adolescente, conferindo a eles o status de prioridade absoluta”, explica a advogada.

Amália lembra que a dignidade da garotada, por meio de uma perspectiva da proteção integral é encontrada, inicialmente, na Constituição Federal. No Artigo 227, fica garantida à população infanto-juvenil “a preservação de seu melhor interesse […] à condição de prioridade absoluta, por tratar-se de sujeitos de direito em desenvolvimento”. Este novo paradigma, segundo a professora, desqualifica o muito criticado Código de Menores, de 1979.

Diferente do Código, o ECA é muito similar a tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário: a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, que já foi citada; mas também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 1969; e as Regras Mínimas de Beijing, de 1985. 

“Este último documento, principalmente, ajuda a romper com modelos anteriores e contribuiu para o nascimento do nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecido internacionalmente como um dos mais avançados diplomas legais dedicados à garantia dos direitos da população infanto-juvenil”, diz Amália.

O Estatuto brasileiro

O ECA é inovador porque enumera os direitos e garantias, articulando políticas sociais públicas, como exemplo, a implantação dos Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares, que têm autonomia para formular políticas em favor de crianças e adolescentes. O Estatuto, também, não só reforça a Constituição Federal, mas promove esse público de forma especial lançando luz aos direitos da criança e do adolescente.

“Contudo, a proteção que é garantida não exime que adolescentes sejam responsabilizados pelos atos infracionais cometidos, com a aplicação das medidas de caráter socioeducativo a partir dos 12 anos de idade. No ECA e no Código Penal brasileiro, estão definidas as penas aos autores dos delitos praticados contra crianças e adolescentes, destacando que o julgamento se dê sob a ótica do princípio da prioridade absoluta. As normas incriminadoras devem ser interpretadas e aplicadas da forma que melhor lhes assegure a proteção integral, sem perder de vista a celeridade na conclusão do processo, explorando, preferencialmente, a ‘rede de proteção’ que todo município deve possuir”, explica a professora Amália.

🎧 Amália Donegá explica o que é a rede de proteção à infância e à juventude

Porém, a professora Amália diz que, mesmo representando um marco no desenvolvimento de nossa sociedade, o ECA não alcançou a maturidade necessária nesses 31 anos. Ainda se nota um descompasso profundo entre a lei e a realidade brasileira. A compreensão deste tema implica, necessariamente, na análise de questões como a violência doméstica, o tráfico e o consumo de drogas, reforçados pela triste realidade em que estão mergulhadas milhares de crianças, boa parte delas, vivendo em situação de rua.

“No âmbito jurídico, este descompasso entre o que preconiza a lei e o que demonstra a realidade se reflete no fato de que são corriqueiras as situações de banalização da lei. Nega-se a existência de inúmeros problemas quando se sobrepõe a eles o debate acerca da adoção de medidas para evitá-los. Por exemplo, discute-se a redução da maioridade penal e o endurecimento das sanções aplicadas aos adolescentes infratores da lei, em detrimento de se pensar a necessidade de investimento maciço na educação que, a propósito, não deve representar apenas uma alternativa ao problema, mas uma imperiosa necessidade”, alerta Donegá.

Por fim, a professora lembra que o reconhecimento de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos consiste na única via capaz de assegurar a eles um status social que torne possível o exercício efetivo e pleno destes direitos.

A coordenadora do Neddij, Amália Donegá (Divulgação)

Os Neddij

Por esse motivo, organizações como o Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude, o Neddij, são fundamentais. O Núcleo da UEM é vinculado à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PEC) e foi criado em 2006, a partir de um convênio firmado entre Instituições Estaduais de Ensino Superior do Paraná (IEES) e o governo do Paraná, por meio da Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti). Hoje, há núcleos nas universidades de Londrina, Maringá, Foz do Iguaçu, Guarapuava, Irati, Paranavaí, Francisco Beltrão, Jacarezinho, Marechal Cândido Rondon e Ponta Grossa.

“O objetivo do Neddij é oferecer atendimento para promover a defesa dos direitos da criança ou do adolescente que se encontre em situação de vulnerabilidade ou tenha seus direitos violados ou ameaçados, assim como àquele a quem se atribua a prática de atos infracionais”, explica a pró-reitora de Extensão e Cultura da UEM, Débora de Mello Gonçales Sant’Ana.

Atualmente, o Núcleo da UEM conta com uma equipe de quatro advogados, duas psicólogas e estagiários dos cursos de Direito e de Psicologia. A coordenadora é a professora Amália Donegá, que orienta a área do Direito; e a docente Edneia José Martins Zaniani é a responsável por orientar a área de Psicologia. 

O grupo vem atuando mesmo em tempos de pandemia. As equipes de Direito e Psicologia têm feito contato com os assistidos e com os órgãos da rede de atendimento por meio de ligações, e-mail ou mensagens de WhatsApp, para esclarecer situações particulares, oferecer informações, realizar encaminhamentos ou informar sobre o andamento dos processos. Além disso, a equipe do Neddij-UEM, tem buscado outras formas de contato e divulgação dos serviços prestados por meio do Facebook e do Instagram, com postagens frequentes, contextualizadas e direcionadas ao público que atende.

Com o apoio do ECA, o Núcleo vem alcançando muitas conquistas. Entretanto, seus integrantes dizem que é necessário que se estabeleça uma nova ética no tratamento de questões direcionadas ao reconhecimento da dignidade humana como elemento que oriente todo o ordenamento jurídico e a vida em sociedade.

Criança em situação de rua (Pixabay)

“É preciso que nós, sujeitos de direitos e deveres, nos preocupemos com nossas crianças e adolescentes, oferecendo a eles, em quantidade e qualidade, saúde, alimentação e educação, fazendo despertar neles a verdadeira consciência humana e cidadã. Como foi dito por Machado de Assis, ‘o menino é o pai do homem’ e, assim sendo, se cultivarmos o descaso, a violência, a intolerância, o preconceito e a injustiça, estaremos construindo uma juventude com alicerces que não suportarão, futuramente, o peso de toda a sociedade que exigirá deles lutarem contra o descaso, a violência, a intolerância, o preconceito e a injustiça. Devemos, portanto, fazer com que o Estatuto simbolize um importante instrumento de transformação da realidade ante o abandono em que vive boa parte da população infanto-juvenil, garantindo às crianças e aos adolescentes o status de sujeitos de direito”, reforça a professora.

Ouvir as crianças é essencial

Pessoas de todas as áreas envolvidas com esse público garantem: para atendê-lo é preciso que a sociedade se abra para ouvir as crianças e adolescentes. Mas o que é ouvir, neste caso? Esse é um dos temas de estudo do educador social e doutorando em Estudos da Criança, especialidade Infância, Cultura e Sociedade, da Universidade do Minho, em Portugal, João Alfredo Martins Marchi.

Ele conta, que certa vez, leu uma experiência muito curiosa. Durante um congresso científico, um lugar “bem adulto”, um pequeno grupo de crianças foi apresentar uma pesquisa que estava desenvolvendo. Na hora de iniciar a fala, uma delas propôs um experimento com o público. Pediu que todos e todas colocassem as mãos nos ouvidos e não falou mais nada. Todo mundo fez a ação e ficou assim por uns “longos” dois minutos. No começo, houve alguns risos, mas, depois, surgiu certo desconforto, porque ninguém estava entendendo o que aquela ação tinha a ver com a investigação dos pequenos. Passado um tempo, a mesma criança que iniciou o experimento fez um sinal para que as pessoas tirassem as mãos dos ouvidos e, em seguida, disse: “é assim que os adultos nos ouvem quando vamos falar de nossos interesses”.

João leu a história acima quando estava iniciando os estudos sobre crianças e infâncias, em 2015, e essa foi uma das primeiras coisas que chamaram a atenção dele: os adultos não ouvem ou, pelo menos, não ouvem verdadeiramente as crianças. Ele é mestre em Educação e graduado em Artes Cênicas, UEM, e em Pedagogia, pela Unicesumar, instituição particular localizada, também, em Maringá. Atua como professor temporário do curso de Licenciatura em Teatro da UEM, além de pesquisar modos de ensinar das crianças. 

O educador social ainda faz parte do “Projeto brincadeiras com meninos e meninas de e nas ruas”, de responsabilidade do Programa multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente (PCA), da UEM, desde 2015. Ele questiona quantas vezes já perguntamos para uma criança: “o que você quer ser quando crescer?”. Por outro lado, esquecemos de nos interessar pelo que ela é no tempo presente. João citou o poema chamado “Verbo ser”, de Carlos Drummond de Andrade, que fala justamente disso: o que é ser? É ter um nome, um jeito, um corpo? Temos os três e somos? Ao longo de cada verso, o poeta ensina o que as crianças tentam nos contar, que a criança não só aprende com o mundo adulto, mas se apropria dele e o transforma; as crianças têm cultura e criam cultura”, na visão de Drummond e de Marchi. 

O doutorando também resgata ideias de Corsaro, outro autor que se interessou pelo mundo das crianças e percebeu que, quando estão com seus pares, há toda uma forma de organização muito particular que vai além de “imitar” o mundo adulto. 

Primeiro dia como educador social de João Marchi no PCA (UEM, Arquivo 16/08/2015)

João destaca que “há crianças que querem liderar os grupos: ‘quando eu disser já, todo mundo corre’; há outras que buscam formas de entrar e ser aceita numa brincadeira: ‘a gente pode fazer assim ó’; há aquelas que definem quem pode ou não pode brincar, segundo o conceito de amizade: ‘você é meu amigo, pode brincar comigo’; há outras que já preferem grupos com as mesmas características que as suas: ‘vou ficar aqui com as meninas’. Mas essa é só a primeira camada da potência que existe nas expressões dos pequenos”, ilustra o professor.

Segundo Marchi, a sociologia da infância diz que é urgente ouvirmos o que as crianças têm para nos contar, porque, muitas vezes, suas soluções, aparentemente simples, nos mostram um olhar muito mais solidário e cuidadoso com o outro. Ele cita, ainda, Francesco Tonucci, que, ao realizar um trabalho para identificar como seria uma cidade pensada por crianças, mostrou que, quando os pequenos pensam, por exemplo, em uma praça, eles não querem bancos bonitos ou apenas um jardim, eles pensam em propostas para que “todos possam brincar juntos” ou, então, soluções para que “mais gente possa brincar”; assim, o autor conclui que uma “cidade das crianças” é uma cidade para todos e todas.

“Ensinagens”

Em 2021, já em fase de concluir a tese, João Marchi tem se debruçado sobre as questões acima, tema que ele chama de “ensinagens” das crianças e o que os adultos podem aprender com elas. Ele explica que realizou uma pesquisa participativa com os pequenos. Esse tipo de pesquisa é aquele em que o pesquisador constrói a investigação junto com os pequenos. Cada etapa é explicada e decidia coletivamente para dar poder de decisão de cada voz do grupo.  No caso de João, as crianças criaram perguntas para as entrevistas, realizaram a própria entrevista umas com as outras, fizeram registros de foto e vídeo e, as que quiseram, também ajudaram na análise dos dados.

A ideia era: saber o que eles entendem por ensinar? O que é preciso para ensinar? O que os leva a ensinar? Com quem ensinam e com quem aprendem? As respostas, mais do que o surpreenderem… fizeram reafirmar como é urgente termos uma escuta consequente dos interesses das crianças. 

Criança tem que ser ouvida em qualquer lugar (Divulgação)

“Durante uma das entrevistas com uma menina de quatro anos, que aqui vou chamar de Sofia, perguntei se ela achava que as crianças podiam ensinar. Mais que prontamente ela me respondeu: “não, porque é a professora que ensina”. Na sequência, ela me descreveu algumas coisas que, provavelmente, a professora ensinava na escola. Disse: ‘a professora ensina a matemática… a desenhar, a desenhar o desenho direito’. E, assim que terminou de responder, eu perguntei se ela achava que tinha alguma coisa que as crianças podiam ensinar. Mais uma vez, prontamente respondeu, mas, desta vez, de outra forma: ‘sim, brincar… brincar de desenhar… brincar de tudo’. Nesse dia, vi que todas as quase 280 páginas do trabalho que estava escrevendo se resumiam na fala de Sofia. Sim, as crianças ensinam; sim”.

Para o professor, o lúdico  (ver definição no final do texto) é a melhor forma de estarmos e de ouvirmos o que as crianças têm e querem nos dizer. Muitas coisas do que as crianças sabem elas aprenderam com outras crianças, mas não crianças quaisquer e, sim, aquelas que consideram serem seus amigos e amigas. Criança ensina em um momento que é presente. Ao mesmo tempo que ela brinca, se permite descobrir, experienciar, inventar e reinventar a brincadeira e assim ela vai construindo suas “ensinagens”.

“Assim, eu aprendi que a criança é um ser/sendo/fazendo que ‘faz assim ó’ para mostrar ou para contar como se deve brincar e que, quando é ouvida pelos adultos, se sente segura para sugerir, contar, brincar, reclamar, decidir, participar e mostrar soluções, muitas vezes óbvias, mas que nós, adultos, acabamos não enxergando por ‘complicarmos demais’ as coisas”, aponta Marchi. Aliás, ele é autor de um livro “Faz assim ó: modos de ensinar das crianças como subsídio para a educação” com versão física e para Kindle, além de formato em e-book, lançada pela editora Appris.

No final da conversa com o professor João, ele apresentou outra história, essa dele mesmo. Ouça na voz de nosso jornalista Gutembergue Lima, do C².

🎧 Uma história do professor João

Agora faça o exercício de trocar a expressão “pessoa adulta” por “criança”, que é dita no princípio da gravação, ouvindo tudo, novamente!

Moral da história: “as crianças não precisam que a gente – adulto – dê voz a elas. ELAS JÁ TÊM VOZ! O que é urgente é que nós, adultos, e, muitas vezes, responsáveis pelas escolhas que interferem diretamente nos interesses das crianças, saibamos ouvir, verdadeiramente, as expressões de suas culturas. Mas, para isso, precisamos tirar as mãos dos ouvidos”, conclui João Marchi.

Fica a dica! Bom mês da criança!

Glossário

LÚDICO

Adjetivo masculino com origem no latim “ludos”, que remete para jogos e divertimento. Uma atividade lúdica é uma atividade que dá prazer e diverte as pessoas envolvidas; está relacionada com o ludismo, ou seja, a ações relacionadas com jogos e com o ato de brincar.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Ana Paula Machado Velho
Degravação da entrevista: Thamiris Saito e Isadora Hamamoto
Edição de áudio: Isadora Hamamoto
Roteiro de vídeo: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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