O que é uma cidade? Fiquei me fazendo essa pergunta por alguns dias, quando me comprometi a escrever sobre planejamento urbano aqui para o C². Pensei em diferentes lugares e me deixei envolver pelo sentimento que cada um deles me trazia. Sou a maior viajante do mundo, não. Mas já tive oportunidade de conhecer vários países, de diferentes culturas e perceber que, cada um desses locais que visitei, tinha uma identidade, uma marca, construída a partir das experiências do povo que neles habita.
A configuração de cada recanto conta histórias de tristeza, alegria, interesses econômicos e políticos, e muito mais. Os pedacinhos das cidades são representantes materiais da história humana, isto é, as cidades contam histórias da humanidade. Conhecê-las é conhecer a gente mesmo. Cidades refletem o presente, o passado e o futuro do homem, afinal, elas foram arquitetadas e edificadas por cérebros e braços humanos.
Essas reflexões me fazem lembrar de um livro que li durante o mestrado, “Cidades Invisíveis”, de Ítalo Calvino. Nele, o aventureiro Marco Polo descreve com detalhes 55 cidades do domínio de Kublai Khan, imperador do império mongol, a quem o mercador servia, naquele momento. As cidades tinham nomes femininos e a narrativa nos levava a reflexões sobre as edificações, a preservação dos lugares. Lendo a obra, a gente vive os lugares por meio do que eles têm de frágil, de sólido e tomamos consciência de que as cidades se sustentam, ganham vigor e utilidade com a presença humana, pela interpretação dada a elas pelo homem, pela relação afetiva do ser humano com o espaço que o circunda. As cidades são obras arquitetadas pelo homem e para ele.
A questão é que as cidades de Calvino são invisíveis materialmente. Diferente das nossas, que aparecem nas fotos acima. Será que todas essas aí são boas para se viver? Pergunto isso porque minha missão é mostrar que tem muito de ciência e conhecimento envolvidos nos espaços urbanos, que não se copõem só de emoções e, hoje em dia, precisam ser pensados para abrigar pessoas de todos os tipos e com diferentes necessidades.
O crescimento destes espaços e da população nos faz perceber que é preciso dar qualidade de vida às pessoas que habitam o território urbano. Cada grupo precisa ser “abraçado” e ter suas necessidades atendidas. Coisas da contemporaneidade? Sim, por que não? Afinal, a ciência existe para ajudar a humanidade a enfrentar seus problemas, certo?
Na verdade, essas reflexões nascem na Academia (definição no fim do texto). “Eu acho, que, hoje em dia, a ciência tem que atravessar o muro, sair da sala de aula e ir para o seu objeto maior que, no caso da arquitetura, por exemplo, é a cidade como um todo”, diz a professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU), da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Beatriz Fleury e Silva. Ela coordena o Núcleo BrCidades Maringá, formado por equipes de diversas áreas, além da dela: Geografia, Ciências Sociais, História e Economia.
Por que tantas disciplinas? Porque o objetivo desta organização é dar qualidade à participação dos agentes sociais nas políticas públicas, estimular o debate entre a população e seus governantes. O Núcleo se organiza para “monitorar as políticas, programas e projetos municipais, de forma a mobilizar toda a sociedade com vista a ampliar o alcance do direito urbano e construir novas estratégias de ação para nossas cidades”.
Para a professora Beatriz, o papel da ciência é, de alguma maneira, transformar a realidade. Agir no processo de construção de um pensamento, de reflexão. Lembra, que, antigamente, falava que os professores tinham que falar com a população para explicar as coisas para as pessoas, mas, depois, foi percebendo que é preciso dialogar com elas, não é explicar, mas ouvir, ver como é que o pensamento delas é construído, e encontrar juntos uma saída para os problemas.
“O BrCidades segue este entendimento. Eu acho que está mais do que na hora de se ter uma ‘ciência em ação’, a gente está precisando que a Academia faça sentido para a sociedade. E é por isso que eu me interessei em participar do BrCidades, porque eu estava incomodadíssima de ficar somente dentro da sala de aula, só falando como deveria ser. Reparava que os alunos me olhavam e falavam ‘será que faz sentido tudo isso que ela está falando?’. Eu percebia isso e dizia que a gente precisava agir, unir conhecimento e participação na sociedade”, relembra a professora.
O Núcleo e sua história
O BrCidades surgiu em 2017 e começou rapidamente a crescer a partir daí. Hoje, conta com vários núcleos pelo Brasil. São 17 em vários estados. O start oficial foi no primeiro Fórum da entidade, que teve como objetivo construir a rede de mobilização social. Em seguida, houve um momento de expansão e de amadurecimento sobre o que deveria ser o BrCidades, isso aconteceu por quase 2 anos. Ouça mais detalhes sobre essa história e seus responsáveis no áudio da professora Beatriz, abaixo.
Em 2019, um segundo Fórum reuniu todas as pessoas da fase inicial e outros pensadores e isso amadureceu a rede de mobilização. Foi redigida uma agenda nacional e, a partir dela, uma lista de propostas a curto e médio prazos. Não podemos esquecer que a agenda urbana é um conjunto de ações relacionadas à política das cidades. Ou seja, são criadas metas para incidir nas diferentes políticas de direito das cidades. São destacados os diferentes segmentos da sociedade que estão negligenciados. Incide aí não só a questão
de renda, mas a negritude, a mulher, a população LGBTQIA+, os imigrantes. Entre as bandeiras da agenda do Br, estavam temas como moradia para todos, saneamento básico para todos, mobilidade urbana para todos. A partir dessas diretrizes nacionais, os Núcleos construíram suas agendas locais.
Como a UEM entrou nisso tudo?
Há uma disciplina na graduação de Arquitetura e Urbanismo da UEM em que os alunos estudam o Estatuto da Cidade. Para oportunizar aos estudantes desta matéria maior experimentação do conteúdo e, também, incidir na sociedade com ações voltadas à qualificar as cidades, a professora Beatriz, no final de 2018 e início de 2019, conversou com vários colegas e, em poucos meses, o grupo decidiu tentar trazer o Br.Cidades para Maringá. Ela foi para o II Fórum, representando Maringá, para ver o que podia ser feito.
Formou-se um grupo multidisciplinar, com professores, alunos e profissionais de diversas áreas. Inicialmente, havia movimentos sociais também, um da área de moradia e um da área de mobilidade urbana, mas devido a questões pessoais de trabalho, os representantes tiveram que deixar a equipe. Atualmente, o foco do BrCidades é a juventude.
“É importante dizer que o Br deslanchou quando nós o transformamos em projeto de extensão da Universidade. Isso atraiu mais pessoas e colaborou para entendermos mais o nosso papel. Assim, passamos, o tempo todo, a estimular a participação popular na política urbana. Como podemos fazer para a população entender que ela tem direitos, que ela tem que ocupar os espaços para fazer valer aquilo que é lei”, explica a docente do DAU.
Segundo Beatriz, o grupo começou a fazer ações, efetivamente, em 2019. Logo em seguida, a pandemia levou as atividades para o virtual. Além disso, o Br.Cidades venceu um edital do Fórum Nacional pela Reforma Urbana, que visava fomentar a discussão sobre a inclusão na cidade, a participação na cidade e, pela primeira vez, teve uma verba para executar suas ações. Desta forma, ficou definido que o foco seria a juventude. Assim, foi criado um conjunto de ações, incluindo a elaboração de uma cartilha que qualquer município pode aplicar, com um olhar mais sensível para a política de grupos mais vulneráveis. E mais: surgiu uma série de rodas de conversa, focando na juventude.
A professora Beatriz destaca que o BrCidades acredita que os jovens mais vulneráveis da cidade são interlocutores importantes. É preciso criar um espaço de escuta, ou seja, ouvi-los, entender o que têm a dizer, como veem a cidade, e ajudá-los a entender que têm direitos. O Br vem incentivando, por exemplo, que a juventude participe de audiências públicas que estão acontecendo para a revisão do Plano Diretor.
O Plano Diretor é uma ferramenta para garantir que cidade cresça de maneira equilibrada, oferecendo qualidade de vida para todos. Ele define as prioridades do município e como será usado o seu território.
A elaboração deste plano está prevista na Lei 10.257/01, conhecida como Estatuto da Cidade. Todos os municípios com mais de 20 mil habitantes devem elaborar um Plano Diretor, o que engloba boa parte das cidades brasileiras.
Os planos têm que prever o uso do solo para as mais diferentes funções como moradia e espaços de convivência pública, onde estão os equipamentos urbanos e comunitários; pensar em preservação e outros temas de interesse social, como mobilidade e saneamento básico.
Este é um momento em que os jovens podem ter voz e é importante para que sejam ouvidos pela gestão pública. Assim, presentes nessas audiências, esses cidadãos podem ver se a proposta que está sendo construída para cidade futura os contempla, caso contrário, podem intervir de diferentes formas. Afinal, é muito comum que o poder público faça uma leitura não muito aprofundada da cidade, principalmente, em meio à pandemia, quando a maior parte das reuniões do grupo de trabalho tem sido virtual.
Este processo de organização dos jovens vem sendo feito por meio de outra atividade que é parte do edital, as Rodas de Conversa com a juventude. O Br organizou no mês de agosto bate-papos com públicos diferentes: as mulheres, os negros, a população LGBTQIA+, os imigrantes, a juventude indígena. Nesses encontros, havia sempre representantes da Universidade, professores, técnicos, alunos e ex-alunos.
“Foi bom, porque aprendemos muito. É um mergulho na realidade dos públicos que conversamos, eles colocam como veem a cidade, que não é a mesma para todos. A cidade que eu vivo, que eu experimento, não é a mesma que o negro, o indígena ou o imigrante. Este último, por exemplo, quando chega aqui nem tem documento para poder buscar algum direito”, lembra a professora.
Diferentes visões
Uma maneira de ilustrar essa fala da coordenadora do BR é a experiência de um camarada que adora sair de bicicleta por Maringá, uma cidade de tamanho médio, do Paraná. Vamos combinar que a prefeitura deu condições para quem usa a bicicleta como meio transporte ou curte se exercitar ou passear usando uma “magrela”.
Segundo a Secretaria de Mobilidade Urbana (Semob), há 40 quilômetros de ciclovias por toda a cidade. Isso é resultado das ações do Plano de Mobilidade Urbana (PlanMob), criado em 2019. A coordenadora do Plano e gerente de projetos da Semob, Elise Savi, disse, em matéria publicada pela assessoria de comunicação da prefeitura, que a execução das obras de mobilidade na cidade são resultado de consultas à população. “A participação da sociedade é importante para a construção de um planejamento que responda aos anseios da comunidade”, reforça.
Daí, pedi para aquele meu amigo… o Roberto, mostrar se o Plano vem dando resultado junto aos ciclistas. E gente, Roberto tem o nome mais sugestivo para participar desta matéria… Cidade. Sim, é o Roberto Cidade! Ele e Claudio Marcelo Toncovitch, que aliás, foi nosso cinegrafista e narrador, percorreram um circuito de 12,5 km e mostraram a visão dos amantes do pedal sobre parte das ciclovias de Maringá. São críticas e elogios. Confira as impressões dos integrantes do grupo Bodes do Pedal!
As diferentes visões da cidade e seus habitantes, como essa dos ciclistas amadores Roberto e Claudio, são foco de muitas discussões do BrCidades e das aulas na UEM. Segundo Beatriz Fleury, cada uma destas opiniões vai ajudando a cavar o espaço para que se possa criar uma política específica, que olhe para todos os grupos que fazem parte das cidades. São importantes para um planejamento a médio e longo prazos, e que é preciso é falar disso.
“É assim que a gente vai chegando lá, ou seja, olhando para essas pessoas, institucionalizando e criando organizações. Quando a gente faz uma roda de conversa, os alunos da arquitetura acabam parando para refletir. Eles se sensibilizam ao ver que tem um grupo que não é assistido pela arquitetura. Foi feita uma pesquisa pelo Conselho Nacional de Arquitetura que mostra que 80% da população brasileira não acessa o profissional arquiteto urbanista. Então, fica a problemática: a gente se forma para 20%? É um momento de abrir os olhos e sensibilizar aquele aluno que irá se tornar, como nós do Br, uma das ‘formiguinhas’ que atuam e procuram transformar esse cenário tão desigual que vemos, hoje, no direito à cidade”, explica a professora.
De olho na qualidade de vida
Uma destas formiguinhas está atuando em outro mestrado da UEM. A arquiteta Ana Maria Giachini é aluna do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia – Mestrado Profissional. Nas pesquisas que desenvolve, vem revendo os conceitos de cidades e moradias. Segundo ela, a agroecologia é uma ciência que surge da observação da natureza, que vem da floresta e dos saberes populares e se aplica a pensar as cidades.
Ana Maria detalha que, nos espaços urbanos, essa ciência pode dar suporte a ações de urbanismo a partir do conceito de arborização agroecológica. Nesse caso, as são mudas produzidas localmente e plantadas de forma a criar verdadeiras agroflorestas urbanas, mas que estejam de acordo com as características de cada região.
A arquiteta também lembra que há estudos da área que ajudam a pensar o uso sustentável dos recursos da cidade, como energia e água, e a implantação de hortas urbanas. Com essa descentralizando da produção de alimentos há o encurtamento das distâncias de uma ponta a outra da cadeia agrícola, e demanda menos espaços de monocultura. Isso ainda economiza em transporte, o que por sua vez, diminui a necessidade de rodovias, que geram grande impacto à paisagem, à natureza, à biodiversidade e também. Olha como uma medida local tem impacto ampliado para um número maior de pessoas e de sistemas?
A bioconstrução, outro tema da agroecologia, aposta em matérias-primas orgânicas e renováveis como terra, madeira e pedra, reduzindo o impacto da produção em larga escala de cimento, brita e ferro e, também, o deslocamento destes materiais, que, muitas vezes, cruzam grandes distâncias para chegar até um local de obra. Em outras palavras, enquanto as construções convencionais deixam ruínas, a alternativa agroecológica é orgânica e se desfaz na natureza de onde veio.
E como pensar a cidade é, também, pensar a dinâmica das casas, a agroecologia pode ajudar a dar mais sustentabilidade aos nossos lares. Sugere o uso de composteiras nas varandas, reduzindo e reaproveitando o lixo urbano, que é um grande problema para as cidades. O produto das composteiras pode ser aplicado em jardins de casas e condomínios, na adubação verde e sem o uso de químicos das plantas domésticas. São muitas as maneiras!
“Com a pandemia, nossa relação com a casa e com a cidade mudou para sempre. Nos voltamos mais para o nosso lar e refletimos de que maneira nosso contato com a natureza é importante para nós. Nunca vimos antes tantas pessoas procurando por passeios ao ar livre. Por isso, precisamos pensar a cidade, porque é nela que estamos inseridos e precisamos viver. A agroecologia pode ser o caminho para criar residências e locais de convivência pública mais conectados com a nossa essência, mais vivos”, desafia a mestranda.
Nossas ações conjuntas e individuais são fundamentais para mudamos os rumos do espaço urbano. Seja pelas lutas do BrCidades, nas propostas de planejamento das prefeituras, no engajamento por uma nova relação com a natureza, é preciso falar e agir para criar um mundo em que a gente possa contar uma história de sucesso por meio de cada cantinho das nossas cidades, como fez Calvino.
Andei pensando: quem sabe em que lugares o escritor se inspirou para escrever o diálogo entre o imperador Kublai Khan e Marco Polo? Pode ser que tenha se lembrado de experiências concretas de lugares que ele tenha visitado. Quem pode garantir que as cidades do livro não eram tão invisíveis assim, pelo menos para Calvino, no momento em que escreveu aquela história? A nossa única certeza é que podemos e devemos escrever a nossa e deixar marcado em cada canto do lugar que a gente mora!
Glossário
ACADEMIA
Faculdade; universidade ou local em que há ensino universitário ou superior.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Ana Paula Machado Velho
Degravação: Isadora Hamamoto e Thamiris Saito
Edição de áudio: Isadora Hamamoto
Roteiro de vídeo: Ana Paula Machado Velho, Roberto Cidade e Claudio Marcelo Toncovitch
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: John Zegobia
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: