Delton Aparecido Felipe: a construção de um cientista negro

O professor dedica não só sua carreira, como também a sua vida, pela luta da população negra no Brasil

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“Você precisa lembrar que, em nenhum momento, estamos falando da sua capacidade intelectual, nós estamos falando de oportunidades. Você vê quantas pessoas como você por aqui?”. Foi com esse questionamento que a professora Teresa Teruya, do Departamento de Teoria e Prática da Educação, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), colocou um ponto de interrogação sobre as cotas raciais na cabeça de Delton Aparecido Felipe, que, naquele momento, era graduando do curso de História.

A conversa com a professora da disciplina de Didática deixou o estudante inquieto e nervoso, porque, até então, ele ainda era apegado ao estereótipo de “negro inteligente”, que carregou durante os ensinos fundamental e médio. Voltou para casa e, indignado, disse a sua mãe que as cotas eram um absurdo, porque ele era tão inteligente quanto qualquer outro. Ao que ela respondeu: “Mas, Delton, eles estão falando de inteligência?”. Ele, ainda indignado, respondeu que havia estudado muito e tinha conseguido chegar à universidade sozinho. Calmamente, ela lhe fez outra pergunta: “Mas você conseguiu sozinho?”, e ela mesmo respondeu: “Você teve bolsa, teve pessoas que arcaram com a sua educação, inclusive eu. Achar que isso é ‘conseguir sozinho’ não é um pouco demais?”.

Foi o suficiente para que Delton passasse não só a entender e a enxergar mais claramente a importância das cotas raciais, como também o levou a dedicar sua carreira e sua vida à luta da e pela população negra no Brasil. Esse processo levou o graduando a estudar a história e a cultura afro-brasileira, tentando entender o racismo e o racismo epistêmico (significado no fim do texto). O primeiro passo foi trabalhar, durante a iniciação científica, com a história da África do Sul, a partir do cinema, abordando o racismo e o apartheid. Naquele momento, ainda era difícil, para ele, falar sobre o Brasil, já que, consequentemente, abordaria o racismo que ele mesmo sofria. Mas, obviamente, ao fazer reflexões sobre o preconceito racial do país africano, muitos questionamentos sobre ele vieram à tona.

Delton Aparecido Felipe (ASC/UEM)

Terminado o curso, logo entrou no mestrado, em educação, na UEM, na área de ensino, aprendizado e formação de professores (Dissertação defendida no mestrado). E não poderia ter escolhido outra pessoa como orientadora que não fosse a professora Teresa Teruya. Ali, mais uma vez ela impactou a vida e o trabalho do agora mestrando, lhe dando uma dica que acabou se tornando uma premissa em sua carreira profissional: “Ela me dizia que eu não deveria reproduzir discursos, mas produzir saberes para fortalecer não só a mim, mas também o meu povo. Ela dizia muito que eu tinha uma responsabilidade com o ‘meu povo’”, relata Delton. E arremata, dizendo que o(a) intelectual ou cientista negro(a) entende que própria produção de conhecimento é uma produção que se faz no coletivo e tem uma responsabilidade social.

“Reproduzir discursos” seria perpetuar a produção científica ocidental, que foi desenvolvida a partir do olhar da Europa do século XIX, determinando qual é o corpo que pode ocupar espaço, construindo posicionamentos sociais e colocando o homem europeu como centro. Uma produção de conhecimento fruto de sociedades que privilegiam algumas raças em detrimento de outras. No caso do Brasil e de diversos outros países americanos e europeus, essa distinção favorece os brancos e desfavorece negros e indígenas. Racismo Estrutural é o termo usado para apontar a existência desse sistema racista. 

No vídeo abaixo, o Conexão Ciência explica o que é racismo estrutural:

Depois da defesa da tese de mestrado, o historiador, automaticamente, entrou no doutorado, em 2010, e mais uma vez, na UEM (Tese defendida no doutorado). Em 2013, participou do I Congresso de Pesquisadores/as Negros/as (Copene) da Região Sul, o que foi muito impactante para o doutorando, porque Delton, que sempre se sentia sozinho na UEM, pois, na época, tinha pouquíssimos professores negros, viu, pela primeira vez, um lugar com centenas de pesquisadores como ele. Em todas as apresentações e conversas, parecia que estavam discutindo sobre conhecimentos que falavam sobre ele ou sobre aqueles que conhecia, de uma produção que importa, uma produção do chamado conhecimento orgânico, que fala para esse grupo. “Uma ciência que produz, mas uma ciência que não se pretende neutra. Objetiva, sim, mas neutra, jamais”, explica o historiador, pesquisador e professor da UEM.

Por isso, a partir daquele I Copene da Região Sul, com centenas de cientistas negros produzindo conhecimento que fortalece a população afro-brasileira, Delton passou a ter mais referências negras, o que o levou a tornar-se membro da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), onde, atualmente, é um dos diretores.

Ainda no doutorado, ele teve a experiência de estudar em Portugal, com uma professora angolana. “Fazer isso foi discutir questões referentes à história da África e da raça em Portugal, o que colaborou muito com a minha formação. Ali, eu não só tive contato com africanos, como também tive contato com indianos e filipinos, corpos que também não estão nessa leitura de produção de conhecimento eurocêntrico”, relata Delton. Isso tudo fortaleceu ainda mais a ideia de que ele tinha uma responsabilidade no processo de “construção do cientista negro”, mostrando ser uma missão que demandava a responsabilidade de racializar a própria produção de conhecimento. Além de se estabelecer como corpo que pode ser referência para aqueles que querem produzir conhecimento a partir dessa questão da raça.

Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB)

O Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (Neiab) surgiu em 2007 com o objetivo de ampliar o debate sobre as questões raciais. Ele foi criado a partir da reunião de alguns professores do Departamento de Ciências Sociais (DCS-UEM): Marivânia Conceição de Araújo, Eronildo José da Silva, Walter Luis de A. Praxedes, Luciano Gonsalves Costa e Rosangela Rosa Praxedes. Atualmente, é composto por estudantes e professores da graduação e pós-graduação da universidade que, além dos debates, também realizam eventos, organizam publicações, eventos, entre tantas outras atividades. 

Voltando do velho mundo, Delton trabalhou na Universidade Estadual do Paraná (Unespar), de Campo Mourão, até defender o doutorado, em 2014, no mesmo ano em que começou a trabalhar na UEM. Foi o período em que ele se reaproximou do Neiab. Esse grupo tem uma história de luta pelas cotas sociais, que começou em 2008, ao lado do Movimento Consciência Negra de Maringá, ano em que as cotas raciais da UEM foram convertidas em cotas sociais. O argumento era que, se tivesse cota para alunos de escolas públicas, teríamos, automaticamente, a entrada de alunos negros. Isso não se confirmou. Delton enfatiza que as cotas sociais tem como objetivo combater as desigualdades, enquanto as cotas raciais tem como objetivo combater o racismo. Elas têm funções distintas, por isso precisam existir conjuntamente. Essa foi retomada em 2016, pelo Neiab, ao lado do Coletivo de Juventude Negra Yalodê-Badá. A implantação aconteceu no Dia da Consciência Negra (20/11) de 2019.

Dia em que as cotas raciais foram aprovadas na UEM (ASC/UEM)

Delton explica a importância das cotas para as universidades: “A gente entende que uma universidade diversa produz conhecimento diverso, que atende à sociedade, que passa a se sentir mais representada. Sendo assim, a gente acaba aproximando a sociedade da universidade, já que, muitas vezes, as pessoas não sabem o que essas instituições produzem, elas não veem seus ‘filhos’ aqui, porque, historicamente, as universidades são padronizadas para o homem branco de classe média, média-alta. Então, essa luta por cotas na universidade também foi uma preocupação não só para que o corpo negro existisse na universidade, mas para que a gente tivesse uma universidade que produzisse conhecimento na sua diversidade”.

Na UEM, o professor passou a administrar a disciplina de História Afro-Brasileira. No Departamento de Direito, ficou responsável pela aula de História do Direito e logo começou a problematizar as questões raciais. Sendo o único negro do departamento, no período (com a professora Crishna de licença), Delton era constantemente confundido com os funcionários responsáeis pela limpeza do prédio. “Isso diz muito, também, como eles veem os corpos negros”, declarou o historiador, que, rapidamente, passou, também, a problematizar a situação. A partir de 2021, com a entrada de 27 alunos negros, por cotas raciais, no curso de Direito, ele não se sente mais sozinho naquele departamento.

No Neiab, existe, também, a luta pelas políticas de permanência, como a ajuda para alimentação, bolsas de extensão, bolsas para pós-graduação e tantas outras, que, inclusive, foram políticas que deram ferramentas para que Delton estudasse, entrasse e continuasse na graduação e na carreira acadêmica, sempre com muita determinação, esforço e dedicação. Uma trajetória que fez com que ele, atualmente, se tornasse referência para outras dezenas, centenas ou milhares de alunos, professores e pesquisadores negros, não só dentro da UEM e em Maringá, mas também no Brasil e no mundo.

Além do reconhecimento dos cientistas, pesquisadores e outras pessoas ligadas ao mundo acadêmico, Delton recebeu duas condecorações em 2019 e 2020. A indicação para o Troféu Consciência Negra, em 2019, foi a primeira. Uma homenagem, oferecida pela Gerência de Promoção da Igualdade Racial da prefeitura de Maringá, aos cidadãos maringaenses que têm atuado na questão racial. A segunda foi a indicação a Paraninfo da Colação de Grau Conjunta de 26 cursos das Ciências Agrárias, Exatas, Saúde, Humanas, Letras e Artes de 2019.

Assim como a produção de conhecimento de intelectuais e cientistas negros se faz no coletivo, ele fez com que a indicação dele para Paraninfo se tornasse uma escolha coletiva. Delton levou a mãe, Teresa Fátima Felipe, para homenagem e sentou ao lado dela na mesa de honra do evento. “Isso era importante para mim, porque na época em que eu me formei e fiz a colação de grau, a gente não tinha dinheiro para pagar uma passagem para que a minha mãe viesse, então ela não viu a minha colação. Então, a primeira vez que ela viu uma colação de grau foi entrando comigo”, declara o mais velho dos três filhos de Dona Teresa. “Uma mulher preta, pobre e que durante anos trabalhou como boia-fria”, como ele mesmo a descreveu durante o discurso.

Delton e a mãe, Teresa Fátima Felipe, na Colação de Grau Conjunta de 26 cursos das Ciências Agrárias, Exatas, Saúde, Humanas, Letras e Artes de 2019, em que ele foi Paraninfo (ASC/UEM)

Assim que a placa de homenagem foi entregue a Delton, ele a entregou à sua mãe, em agradecimento e também como um prêmio a ela e todas as outras mulheres negras que mantêm grande parte das casas de pessoas negras no Brasil. Para ele, o gesto foi uma forma de estabelecer uma ideia de que pessoas como Dona Teresa e como ele precisam estar nesse espaço (da universidade e da sociedade). Os formandos também proporcionaram, naquela noite, o que o professor descreve como um momento auge da carreira, ao baterem palmas e também os pés na madeira do piso, reverberando o alvoroço e toda a admiração pelo professor pela arena coberta do Parque de Exposições Francisco Feio Ribeiro.

“Foi dentro desse caminhar, dessa trajetória, que eu me construí como cientista negro, que se preocupa com uma produção acadêmica, sim, mas que também tem um compromisso ético e estético com a sociedade e com a diversidade”, conclui Delton.

Racismo epistêmico: quando apenas, ou em grande medida, apenas autores brancos defensores do sistema (conhecimento eurocêntrico) ocupam os currículos das universidades, também impedindo que autores negros(as) e indígenas ocupem os currículos universitários e os currículos das escolas dos ensinos fundamental e médio.

Confira o podcast Igualdade e Ciência, em que Delton conta a sua história de vida:

Igualdade & Ciência – Episódio 1 – Delton Conexão Ciência C²

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Rafael Pinto Donadio
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Thamiris Rayane Saito
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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