Durante a pandemia e o isolamento, muitas pessoas precisaram readaptar suas casas, criando um novo espaço de trabalho. O home office deixou de ser uma alternativa e passou a ser algo natural e requisitado na vida de muita gente. Por isso, mesmo depois das flexibilidades em relação às medidas adotadas na tentativa de conter a disseminação da Covid-19, o trabalho remoto vem se tornando uma prática com crescimento progressivo de adeptos.
Existem, também, aquelas pessoas que perderam o emprego ou que foram liberadas temporariamente e ganharam uma espécie de férias remuneradas. Com mais tempo em casa, chegou o momento de fazer um curso de bateria, adiado durante anos, aprender a fazer pão com fermentação natural, “zerar” o Panelinha, da Rita Lobo, assistir todas as séries que estavam na “Minha lista” das plataformas de streaming ou fazer as reformas que sempre foram ignoradas.
Com essa combinação (escritório em casa e tempo de sobra para fazer as atividades, até então, deixadas de lado), as brigas de vizinhos nos grupos de WhatsApp do condomínio, do bairro ou da rua se tornaram rotina pandêmica. Aquele que quer tocar bateria discute com o vizinho que está em home office e não aguenta mais a barulheira. Ou aquela mãe que quer aproveitar os minutos de paz, quando o bebê pega no sono, para tirar uma soneca, mas é obrigada a ouvir as marteladas do vizinho de cima.
Definitivamente, a rotina do mundo todo mudou, inclusive, a convivência entre nós, seres humanos. As formas de se comunicar, estudar, trabalhar e se divertir tiveram que ser todas adaptadas. Esse é mais um desafio que estamos enfrentando durante a pandemia.
No mercado de trabalho, profissionais de todas as áreas também tiveram que fazer ajustes. Os músicos, por exemplo, podem até voltar aos palcos, mas o hábito de fazer e assistir lives faz parte do famoso “novo normal”. Assim como os atores voltarão a se encontrar na coxia, mas a coxia virtual, provavelmente, nunca deixará de existir.
O teatro, ao se adaptar, realizou diversas experiências, como a de Alessandra Negrini, que atuou na peça virtual “A Árvore”; da Cia Teatral Confraria Tambor, de Uberlândia/MG, que criou e encenou “UM GRITO AO VIVO” e dos professores e graduandos de Artes Cênicas – Licenciatura em Teatro, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, que produziram diversas atividades e espetáculos, como “Complexo de Ofélia”, “Fragmentos”, “Des (cordena) ações”, “Mulheres Encenadoras” e “Ancestralidades Teatrais”.
Depois de retornarem às aulas de forma remota, professores e alunos de Artes Cênicas da UEM também tiveram que “transportar” para o virtual, projetos que estavam em andamento e já programados como atividades presenciais. As pesquisas do teatro on-line, inclusive discussões sobre o teatro virtual ser ou não ser teatro, ainda são escassas. Agora, imagine, no começo da pandemia, mais de um ano e meio atrás. Praticamente não existiam. Dessa forma, alunos e professores do projeto de extensão Práticas de Encenação e Pedagogia do Teatro (PEPT), da UEM, coordenado pela professora Martha Dias, tiveram na experimentação a principal forma de aprendizado.
Assim foi o caso do aluno Vitor Hugo Moreira, que encenou o espetáculo Complexo de Ofélia, pela internet. A peça foi o produto da pesquisa que ele fazia há um ano, conhecida como O trabalho do diretor com o método da Análise Ativa em diálogo com o RPG: uma experimentação cênica através de personagens femininas shakespearianas.
“Essa pesquisa foi feita para eu colocar em modo prático uma cena em que o diretor utiliza o método da Análise Ativa (de Stanislavski). O Role Playing Game (RPG) entrou depois, porque o planejamento era fazer isso de modo presencial, dentro do teatro. Porém, como veio a pandemia, eu e minha orientadora tivemos que adaptar o projeto e pensar em outras maneiras de apresentar. Na época, eu estava jogando bastante RPG e vi como o jogo havia se adequado bem aos meios remotos”, explica o autor.
O resultado foi uma experimentação cênica, que misturou o teatro improvisado do Stanislavski com elementos do RPG, que é um jogo de improviso, de atuação e com personagens. Os principais elementos utilizados foram o mapa, que está sempre presente na peça, e a atuação de modo mais narrativo. Foram cerca de sete meses de experimentação, com quatro atrizes, que faziam papéis shakespearianos. Uma dessas atrizes também participou do curso ministrado por Vitor.
O trabalho do diretor com o método da Análise Ativa em diálogo com o RPG, curso de Vitor Hugo Moreira
O desafio enfrentado pelo diretor foi praticamente o mesmo de outros alunos que participavam do PEPT, coordenado pela professora Martha Dias.
O trabalho Ancestralidades Teatrais, da bolsista do Programa de Apoio à Inclusão Social (Pibis), Amanda Reis, e o trabalho Mulheres Encenadoras, da bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Extensão (Pibex), Thais Martini Almeida, foram dois desses que tiveram que se adaptar ao virtual, após a chegada da pandemia.
A primeira experiência de Thais com ações teatrais virtuais foi quando ministrou o curso sobre desafios cênicos, realizado pelo WhatsApp e ministrado, anteriormente, por Martha. A ideia da pesquisa “Mulheres Encenadoras” veio durante as aulas de graduação. Ao conhecer o trabalho dos encenadores, percebeu que praticamente não citavam nomes de mulheres como referência. Ela decidiu, então, divulgar e homenagear as encenadoras brasileiras para os alunos de artes cênicas e para a população em geral.
O objetivo inicial era realizar uma ação presencial com os alunos da Universidade Aberta da Terceira Idade (Unati), mas com a necessidade de isolamento social, como medida de prevenção ao coronavírus, Thais foi obrigada a adaptar a ação teatral de sua pesquisa para a internet.
Durante 12 semanas, no Instagram, ela contou a história de 12 diferentes encenadoras brasileiras, a partir de vídeos curtos e posts que traziam fatos sobre a personagem escolhida para aquela semana. O foco era nas informações do trabalho de cada uma delas. O uso das cores roxo e amarelo, como cores oficiais do projeto, foi uma tentativa de não estereotipar as mulheres, mas trazer, ao mesmo tempo, uma representação com cores fortes e chamativas.
“Eu escolhi fazer essa ação no Instagram para que fosse possível interagir com as pessoas. Por mais que não seja em um teatro, com o vídeo eu estava cumprindo o meu papel de transmitir algo às pessoas, e eu sabia que era algo importante. E também me aproximava da licenciatura, então fazia total sentido eu gravar um vídeo como se fosse uma aula”, relata Thais.
O trabalho realizado nas redes virtuais resultou em um curso, também online, que foi ministrado para 12 mulheres. Com o nome “Mulheres na Encenação”, o curso funcionou como uma iniciação para futuras encenadoras teatrais. As participantes tiveram que construir uma cena virtual, de no mínimo cinco e no máximo dez minutos, em que não atuassem, para que tivessem a sensação total de dirigir a sonoplastia, iluminação e atuação de outro artista.
“É um processo que fomos estudando aos poucos durante as aulas. Um dia sobre dramaturgia, outro sobre cenografia, outro sobre como trabalhar com ator e, com isso, foram construindo essas cenas”, explica.
Já o desafio de Amanda Reis trabalhar com a internet durante a pandemia veio na etapa final de “Ancestralidades Teatrais”. A alternativa de utilizar o Instagram surgiu, principalmente, por causa das redes sociais serem, neste momento, uma das principais formas de passar informações.
A necessidade do virtual surgiu no final da segunda pesquisa da estudante, que seria exatamente a apresentação de uma cena em três lugares públicos diferentes. Depois de uma pausa, em que pensava em como terminar essa etapa, Amanda criou um documentário: Os estereótipos da mulher negra na representação teatral.
Já na terceira pesquisa, o baque veio desde o início, quando foi preciso planejar tudo para a internet e para as redes sociais. “Como está todo mundo on-line, atualmente, quase o tempo todo, usamos essas ferramentas para levar conhecimento para as pessoas”, explica a pesquisadora.
Ao passar para o on-line, a intenção foi levar, da maneira mais dinâmica possível, o compilado de informações que adquiriu durante três anos de pesquisa. O alcance das redes sociais foi o motivo da escolha do aplicativo, mas ao mesmo tempo, era preciso pensar na saturação e na impaciência das pessoas de lerem e assistirem produtos mais longos. A solução, portanto, foi utilizar posts interativos e vídeos e textos curtos.
Foram duas temporadas de vídeos: a primeira com dez pequenas produções, indicando pessoas que são referências no teatro negro brasileiro, como Abdias do Nascimento, Ruth de Souza, Lea Garcia, e também alguns grupos contemporâneos. Na segunda, Amanda focou em posts mais informativos, indicação de artistas negras e vídeos que analisavam peças e estereótipos de personagens negros no teatro: cinco peças analisadas tinham personagens negros estereotipados e as outras cinco, personagens negros não estereotipados.
“Por eu ser mais clarinha, eu sempre ouvi falar que eu era parda. Eu sempre soube que não era uma mulher branca, até porque a sociedade nunca me tratou como mulher branca, então eu sempre soube que era diferente das pessoas com quem eu convivia. A partir daí [da pesquisa do teatro negro], eu fui entender, fui problematizar, eu fui realmente ter um embasamento sobre o que era ser uma mulher negra na sociedade, consequentemente, na arte”, expõe Amanda.
Do projeto, a bolsista elaborou um curso dividido em quatro encontros.
Ancestralidades Teatrais, curso de Amanda Reis
“Eu posso falar que essa pesquisa mudou completamente a minha vida, porque a visão sobre quem eu sou, hoje, é completamente diferente da visão de três anos atrás. As minhas relações mudaram, a forma de ver a sociedade mudou, a forma de me ver mudou, a minha autoestima, que eu não tinha e construí durante esse período, basicamente tudo”, relata a pesquisadora.
Teatro virtual?
Amanda confessa ainda não entender muito bem o que é o teatro on-line, mas enxerga algumas vantagens nesse período do projeto. Pela internet, ela teve a oportunidade de realizar o curso com pessoas de São Paulo e da Bahia, além da oportunidade de conhecer pessoas e artistas incríveis do Brasil inteiro. “Tentando ser otimista, foi muito legal”, declarou.
Vitor Hugo acredita que a “presença”, o fato de todos estarem ao mesmo tempo vendo ou realizando atividades poderia definir o teatro. O fato dos encontros serem realizados ao vivo, com todas as pessoas na mesma “sala de reunião” ou a peça ser apresentada por uma live poderia ser definida como teatro. Essas experimentações que ele, Amanda, Thais e outras pessoas pelo mundo todo realizaram durante a pandemia, teria sido uma tentativa de manter o teatro vivo. “Um modo de resistência, permanência e adaptação das artes cênicas para os novos contextos”, sintetiza.
Já para a orientadora e coordenadora do PEPT, Martha Dias, a pandemia gerou dificuldades, mas também proporcionou algo novo, como a possibilidade de expansão do público do projeto para além da cidade de Maringá. Esse novo, o teatro virtual, é algo ainda muito discutido, mas, ao realizar a pesquisa com Vitor Hugo, ela percebeu que o teatro virtual é, sim, teatro, mas não substitui o teatro presencial. O teatro contemporâneo é muito amplo, tem muitas possibilidades, muitas linguagens, e o teatro virtual pode ser mais uma dessas possibilidades.
Para ela, é incerto o que ficará deste momento após a pandemia. De qualquer forma, no período de pandemia, o PEPT procurou fomentar a discussão sobre teatro e a sua produção no formato digital.
“Com a possibilidade do virtual, tivemos algumas ações que foram para o país inteiro. Nós tivemos a mostra de cenas a distância, pelo Instagram, em que tivemos participação de várias regiões do país, envolvendo três cursos da UEM: Comunicação e Multimeios, Música e Artes Cênicas. Fizemos uma parceria com a Diretoria de Cultura e recebemos vídeos do país inteiro e fomos assistidos pelo país inteiro”, exemplifica Martha.
Resumindo, o teatro virtual ainda não tem consentimento sobre a sua existência como teatro ou não, mas é fato que as experimentações e discussões sobre o assunto têm gerado benefícios tanto para o momento pandêmica, quanto para o pós-pandêmico, que, provavelmente vai estar mais apto a usar recursos tecnológicos durante um espetáculo presencial. Além de cursos, peças e mostras que poderão atingir não apenas o público dentro de um teatro, mas o mundo todo, mesmo que não considerem a maneira ideal de se criar ações teatrais.
Práticas de Encenação e Pedagogia do Teatro (PEPT)
Ancestralidades Teatrais, Complexo de Ofélia e Mulheres Encenadoras são apenas vertentes do PEPT, um projeto maior da UEM. Criado em 2011, pelo professor Mateus Moscheta, o projeto de extensão iniciou com o nome Exercícios de Interpretação Através da Montagem e Encenação e surgiu como uma ação específica: montar um espetáculo com os alunos, para que pudessem fazer diversas apresentações à comunidade.
Das apresentações, vieram oficinas e uma parceria com a disciplina Práticas de Direção, na qual os alunos dirigem exercícios de criação, e a organização de uma amostra de cenas de direção. Ao longo dos anos, o PEPT ganhou uma abrangência maior de atividades, transformando-se em um projeto de extensão, que promove essa integração entre o que acontece na esfera do ensino e da pesquisa, promovendo integração com a comunidade.
Como definiu a coordenadora, o projeto, hoje, acolhe ações fundamentais para o curso. Este ano, por exemplo, teve amostras do curso de licenciatura, uma série de eventos, que inclui desde apresentação de espetáculos até apresentação dos trabalhos de disciplinas ligadas à pesquisa, à elaboração de projetos e às disciplinas de estágio.
“Agora, a partir de 2022, com a curricularização da extensão, em que 10% da carga horária dos cursos de graduação vão, necessariamente, se converter em ações de extensão, o PEPT vai ganhar ainda mais força. Vai ter uma série de ações ligadas à extensão e às pesquisas, e a ideia é, justamente, fortalecer o projeto para que ele seja o lugar para acolher os fluxos dessas produções e ações”, antecipou Martha.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio
Degravação da entrevista: Valéria Quaglio da Silva
Edição de áudio: Rafael Donadio
Roteiro de vídeo: Karoline Yasmin
Edição de vídeo: Karoline Yasmin
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Imagens: Arquivo Pessoal
Arte: Murilo Mokwa
Receba nossa newsletter
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: