Desamparo e reparação: um Brasil de órfãos da Covid-19

O cenário brasileiro das perdas parentais pós-pandemia é uma realidade dura e o país precisa encontrar medidas efetivas de enfrentamento

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O ano era 2022. Eu estava no último semestre da minha graduação em Comunicação e Multimeios, na Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, e precisava pensar em uma temática para o meu Trabalho de Conclusão do Curso (TCC). É sempre uma tarefa difícil, no meio da imensidão de assuntos que demandam pesquisas e estudos, selecionar apenas um sobre o qual se debruçar. Ainda em meio a efervescência da pandemia da Covid-19 – havia apenas seis meses que tínhamos retornado às aulas presenciais – decidi: queria falar sobre a pandemia, mas na perspectiva do luto. 

Eu pensava que, se o número de mortes para Covid-19, por si só, já era assustador, o número de pessoas enlutadas que perderam alguém durante a pandemia era ainda maior. Cada pessoa que morreu por complicações da doença impactou direta ou indiretamente um número significativo de indivíduos do seu círculo familiar, do trabalho ou social. Segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 708 mil pessoas já morreram em decorrência da Covid-19 somente no Brasil. Esse total se multiplica quando pensamos em pessoas em processo de luto por essas perdas. 

Assim, nasceu o meu projeto, denominado ‘Relicário: Aquela que estava aqui’. Ele se concretizou como uma proposta artística visual, que narra a história de uma filha que perdeu a mãe para Covid-19. O intuito era homenagear as pessoas que perdemos durante a pandemia e, sobretudo, visibilizar a temática da perda e compreender de que maneira estamos lidando com as consequências político-sociais deixadas pela doença. 

É inegável que os processos da perda e do luto são dolorosos para qualquer indivíduo, ainda mais em um contexto de crise sanitária: ausência de rituais de sepultamento, suspensão de cerimônias religiosas, distanciamento social e separação dos vínculos de afeto. Contudo, a situação é ainda mais preocupante quando direcionamos o olhar para as crianças e adolescentes que perderam seus principais cuidadores durante a pandemia da Covid-19, ou seja, indivíduos que perderam a mãe, o pai, ambos os pais ou outro ente familiar responsável pelo cuidado diário e que era provedor do núcleo familiar, como avós e tios. 

Foi a preocupação com essas questões que motivou as pesquisas da assistente social graduada pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Evelin Emanuele Cordeiro. Atualmente mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG, Evelin estudou a orfandade e as perdas parentais decorrentes da Covid-19 na sua pesquisa de iniciação científica (ICC) e em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), ambos realizados concomitantes ao cenário de pandemia, em 2021 e 2022.

“Na iniciação científica, eu acabei só conseguindo mapear mais a questão de dados, traçar perfil dessas crianças, das perdas parentais e se morreram mais pais ou mais mães. No TCC, eu aprofundei e trouxe as implicações das perdas parentais para o direito à convivência familiar e comunitária dessas crianças. A intenção agora é ampliar para as políticas públicas no Estado do Paraná.” explica a pesquisadora que agora vai expandir a área de estudo das pesquisas, antes com enfoque municipal, em Ponta Grossa.

Evelin Emanuele Cordeiro apresentando o trabalho de conclusão de curso na Universidade Estadual de Ponta Grossa intitulado ‘COVID-19 e suas implicações para o direito à convivência familiar de crianças e adolescentes que tiveram perdas parentais no município de Ponta Grossa’ (Foto/Arquivo Pessoal)

Orfandade e perdas parentais: os problemas além do luto

Segundo dados sistematizados por Evelin, no ano de 2021, mais de 113 mil crianças e adolescentes tiveram perdas parentais no Brasil, ficando órfãos de mãe, de pai ou de ambos os pais. Esse número aumenta para mais de 130 mil crianças e adolescentes, quando incluímos avós e cuidadores principais. 

Crianças e adolescentes com perdas parentais durante a Sindemia do COVID-19 no Brasil. Fonte: HILLIS et al (2021). Organização: Evelin Emanuele Cordeiro

De acordo com uma pesquisa mais recente divulgada pela Fiocruz, 40.830 crianças e adolescentes ficaram órfãs de mãe durante os dois primeiros anos de pandemia da Covid-19. Esse dado é ainda mais alarmante quando pensamos que muitas famílias no Brasil são monoparentais e chefiadas por mulheres. Segundo uma pesquisa realizada em 2023 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), mais de 11,3 milhões de mães criam os filhos sozinhas no Brasil, número que cresceu 1,7 milhão nos últimos 10 anos.

Já quando pensamos na morte dos pais que, segundo a pesquisadora, foram a maioria em número de óbitos, isso traz questões econômicas relevantes. “Algumas explicações de pesquisas internacionais apontam para o comportamento de gênero, já que os homens tendem a não buscar muito os serviços de saúde. Então, essa pode ser uma das causas que levou à morte de mais homens. E isso traz implicação direta também para a renda das famílias, porque, embora as mulheres estejam inserindo mais no mercado de trabalho, muitas famílias ainda têm os homens como os provedores da casa”, explica Evelin.

Não é pequeno, ainda, o número de crianças e adolescentes criadas pelos avós ou outros cuidadores. Isso aumenta substancialmente a quantidade de indivíduos que tiveram perdas parentais no Brasil, uma vez que os idosos eram um dos grupos de risco da doença.

A crise sanitária, portanto, afetou diferentes aspectos da vida de crianças e adolescentes diretamente – quando esses indivíduos adoeciam em decorrência da doença – e, também, indiretamente – quando os pais ou cuidadores principais eram afetados. A perda de membros familiares, sejam eles a mãe, o pai, ambos ou os avós, muitas vezes, representava a necessidade de uma reconfiguração familiar, ausência de renda, aumento da insegurança alimentar e crescimento nos quadros de violência no contexto da família. 

A pesquisadora e professora doutora de Serviço Social, da UEPG, Cleide Lavoratti, orientadora da mestranda Evelin, acrescenta que a pandemia da Covid-19 não só trouxe novas questões como acirrou problemas sociais já bastante críticos no Brasil. 

“A pandemia veio acirrar alguns processos que a gente já tinha antes dela, como o trabalho infantil, o casamento infantil, a exploração sexual de crianças e adolescentes, a violência doméstica intrafamiliar e a evasão escolar. Nós já tínhamos evasão e abandono escolar e, principalmente, muito relacionado com essa questão dos adolescentes no mercado informal de trabalho, para poder contribuir com a subsistência da família. Então, a pandemia veio evidenciar esses aspectos que a gente já vivenciava e que já deveriam ter sido enfrentados pelas políticas públicas no Brasil, com ações de proteção, prevenção e de enfrentamento a essas violações de direito”, alerta a professora.

Pesquisadora e professora Dra. Cleide Lavoratti (Foto/Arquivo Pessoal)

A importância da escola na notificação de violências

Em vista disso, um impacto significativo na vida de crianças e adolescentes, sobretudo aqueles em situação de vulnerabilidade social, foi a suspensão das aulas presenciais durante a pandemia da Covid-19. Os decretos, em nível nacional, estabeleceram que essas crianças passassem a ter aulas no formato remoto, ou seja, em casa com o auxílio de aparelhos celulares, computadores ou tablets para evitar o aumento da contaminação pelo vírus por aglomeração nas salas de aula.

Dessa maneira, a interrupção da frequência no ambiente escolar acarretou diversos problemas cujos efeitos são inúmeros, a curto e longo prazo. Dentre os efeitos já notados no decorrer do isolamento social estão a insegurança alimentar, uma vez que muitas crianças e adolescentes faziam as refeições na escola; a evasão escolar por ausência de equipamentos ou supervisão para assistir às aulas remotamente; e o aumento do registro de trabalho infantil para complemento da renda familiar. Além disso, houve um maior número de casos de violência infantil sexual e física, no ambiente doméstico, já que as crianças não tinham a escola, presencialmente, como apoio para a notificação dessas violências.

“Uma das questões que a gente viu que teve um crescimento muito grande foi a questão da violência intrafamiliar. Pelo período de isolamento das crianças em casa e pensando que a escola é o principal agente notificador de violência sexual e de violência física e é onde a criança permanece a maior parte do seu tempo”, complementa a professora Cleide. Ela reforça o peso da escola como um ambiente protetivo para crianças e adolescentes que, durante a pandemia, ficaram um período de quase dois anos sem o suporte desse espaço.

Incentivar a escola como ambiente protetivo, inclusive, é um dos trabalhos realizados pelo Núcleo de Estudo, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre a Infância e a Adolescência (Nepia) do curso de Serviço Social da UEPG, programa coordenado por Cleide e do qual a pesquisa de Evelin faz parte. O Nepia visa não só a pesquisa sistemática de temas com relevância social como o enfrentamento, na prática de questões sociais que afetam crianças, adolescentes e suas famílias. 

“Esse trabalho que estamos fazendo agora com as escolas, de formação, é para que eles [profissionais da educação] consigam identificar os sinais de violência – ou quando a criança revela – acolher esse relato de uma forma humanizada, de uma forma  a não julgar a criança, de não expor sua intimidade, não revitimizar essa criança que sofreu violência. E que se registrem os relatos espontâneos  e encaminhem para os órgãos de proteção, para continuidade desse cuidado, paralelo ao processo de investigação e responsabilização dos autores de violência”, completa Cleide.

Sindemia: um conceito mais abrangente 

Tendo em vista esse cenário, a mestranda Evelin aponta que, dentro de suas pesquisas, optou por utilizar o termo sindemia ao invés de pandemia. “Quando a gente vai procurar o conceito da pandemia, a gente percebe que acaba sendo um termo que restringe a Covid-19 aos aspectos biológicos da doença. Só que a gente sabe que a pandemia ultrapassou as questões biológicas, trouxe questões novas – agravou as desigualdades estruturantes da sociedade brasileira – mas, também, trouxe questões novas, como essa geração de crianças que perderam seus responsáveis e que estão desassistidas pelo Estado”, esclarece a pós-graduanda.

Por definição, sindemia é um neologismo que une as palavras pandemia e sinergia. O termo foi cunhado pelo antropólogo médico estadunidense Merrill Singer, na década de 90, para explicar quando duas ou mais doenças interagem e causam danos maiores do que apenas a soma delas. O médico explica, em entrevista à BBC News Mundo, que “o impacto dessa interação também é facilitado pelas condições sociais e ambientais que, de alguma forma, aproximam essas duas doenças ou tornam a população mais vulnerável ao seu impacto.”

No caso da Covid-19, ela interage com doenças pré-existentes nos indivíduos (diabetes, câncer, problemas cardíacos, problemas respiratórios) que, a saber, estão presentes em uma taxa desproporcionalmente maior em pessoas em situação de vulnerabilidade social, que têm pouco ou nenhum acesso ao sistema de saúde continuado, higiene básica ou alimentação de qualidade, por exemplo.

Compreender a Covid-19 enquanto sindemia oferece um novo panorama e, consequentemente, novas necessidades e possibilidades de ação. Levar em conta aspectos sociais, econômicos e de classe complexifica a questão da maneira como ela  deve ser tratada. No caso das perdas parentais, olhar por esse ângulo ajuda a compreender de que maneira as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade foram ainda mais impactados e carecem de maiores esforços reparadores por parte do poder público.

A pandemia da Covid-19 e o sistema de dados no Brasil 

Dentre as dificuldades tanto para a pesquisa quanto para a tomada de medidas dos órgãos responsáveis está, sobretudo, a estrutura dos sistemas de informação no Brasil. No que diz respeito à temática da orfandade decorrente da Covid-19, os dados disponíveis e devidamente sistematizados são escassos e não apresentam o panorama completo da situação. 

“O despreparo que a gente estava para enfrentar uma pandemia, né? Em termos de precariedade de sistemas de informação, sistemas articulados nacionalmente, pelas unidades federativas e, também, desmembrado por nível territorial dos municípios. Essa é uma questão bastante séria. Porque, apesar de, hoje, a gente estar pesquisando a questão das perdas parentais, isso reflete também outros sistemas de informação que a gente tem no Brasil e que também têm uma fragilidade”, explica Cleide Lavoratti. 

Segundo a professora, a disponibilidade de dados que sejam adequadamente sistematizados e unificados nacionalmente na área da infância e da adolescência é um problema que está ligado à ausência ou, muitas vezes, à ineficiência de políticas públicas intersetoriais que atendam esses indivíduos. 

A docente ainda reforça que o “não dado também é um dado”, ou seja, a ausência de informações representa, muitas vezes, a manutenção da violação de direitos de crianças e adolescentes no país. Isso está diretamente ligado à pesquisa realizada pela mestranda da UEPG que busca sistematizar dados, analisá-los e realizar comparações com as políticas públicas realizadas em âmbito estadual. 

Enfrentamento do problema

Se, em 2022, poucos meses após o retorno das aulas presenciais e ainda rodeada pelo medo pós-pandemia, já me parecia urgente falar sobre as perdas, agora, me parece um tema ainda mais inadiável. Dois anos se passaram desde que começamos a retomar certa ‘normalidade’ em nossas rotinas, sem distanciamento social ou gravidade no número de contaminações pela Covid-19. Ainda assim, os impactos deixados pela pandemia se acumulam e muito pouco foi feito para enfrentar ou reparar o agravamento desses problemas sociais. A questão da orfandade  e das perdas parentais é uma delas. 

Trabalhos como o da mestranda Evelin vem no caminho contrário, de ação. Na busca por sistematizar informações e visibilizar a temática, o trabalho poderá sensibilizar a sociedade civil organizada, os gestores e o poder público para mobilizar esforços que garantam os direitos dessa população.

(Foto/Pexels)

É necessário destacar a importância do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA). No ano de 2021 a única ação promovida na esfera municipal se deu por intermédio do CEDCA-PR. A Deliberação n°24/2021 liberou um edital no qual os municípios paranaenses inscritos receberam um valor destinado para ações voltadas para crianças e adolescentes que tiveram perdas parentais em decorrência da Covid-19.

Alguns movimentos do poder público têm sido feitos em nível nacional: a tramitação de projetos como a PL 126/23, que cria auxílio especial destinado à crianças e adolescentes órfãos em decorrência da pandemia da Covid-19 e a reunião de autoridades na 42ª Reunião de Altas Autoridades de Direitos Humanos do Mercosul (RAADH), em Brasília, para discutir a temática da orfandade das violações de direitos de crianças e adolescentes são algumas delas.

Em 2024, em abril, acontece a 12ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que terá como tema central: “A situação dos direitos humanos de crianças e adolescentes em tempos de pandemia de Covid-19: violações e vulnerabilidades, ações necessárias para reparação e garantia de políticas de proteção integral, com respeito à diversidade”. O objetivo é “promover ampla mobilização social nas esferas municipal, estadual/Distrito Federal e nacional para refletir e avaliar os reflexos da pandemia da Covid-19 na vida das crianças, adolescentes e suas famílias e para a construção de propostas de ações e políticas públicas que garantam os seus direitos no contexto pandêmico e pós-pandemia.”

Embora seja possível notar movimentos em direção a tomada de decisões e implementação de medidas, pouco tem sido feito em caráter de urgência para dar suporte psicológico, financeiro, jurídico e social para esses indivíduos e suas famílias. Há mais de dois anos, muitas crianças e adolescentes continuam desassistidas pelo poder público, em diferentes esferas. Ou, como completaria a professora Cleide “temos muitas perguntas e ainda poucas respostas.”

É necessário e fundamental para o futuro – do nosso país, inclusive – garantir uma vida digna, saudável e de segurança para todas as crianças e adolescentes e, sobretudo, para aquelas que hoje vivem em situação de insegurança e vulnerabilidade. Se costumamos dizer que  as crianças e jovens são o futuro de um país, a pergunta é: qual futuro nós queremos garantir para o Brasil? 

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Texto:
Camila Lozeckyi
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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