Desvendando o segundo cérebro

“Recheado” de neurônios, nosso Sistema Nervoso Entérico é conhecido como “segundo cérebro”

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Você já parou para pensar em como o funcionamento do intestino influencia a nossa vida? Dores de barriga, gases, mudanças nos hábitos intestinais, como a constipação, que acontece quando o intestino está trabalhando de forma lenta demais, ou a diarreia, quando ele está muito acelerado. Esses são alguns dos problemas que podemos enfrentar ao longo da vida. Mas, claro, não podemos esquecer que essa relação começa desde o nascimento quando, ainda recém nascidos, muitos sofrem com cólicas, deixando os pais ou responsáveis angustiados diante do sofrimento dos pequenos. 

No vídeo abaixo, o C² mostra um pouco mais sobre essa relação.

Enfim, uma coisa é certa: nem sempre prestamos atenção no funcionamento do nosso intestino, não é mesmo? Na verdade, só paramos para pensar nele quando não está funcionando como deveria, o que, normalmente, não é algo muito frequente. Pode não parecer, mas a regulação do equilíbrio do intestino é tão complexa que necessita de uma organização de muitos neurônios em seu interior para funcionar bem. O volume de neurônios neste nosso órgão é tão grande que, comumente, ele é considerado o “segundo cérebro”. Sim, o primeiro fica lá na cabeça, coordenando o corpo humano todo e, como em uma terceirização de funções, está o segundo, conhecido cientificamente como Sistema Nervoso Entérico (SNE), situado no revestimento dos órgãos do trato gastrointestinal, como, esôfago, estômago e intestinos.

Ilustração do trato gastrointestinal (Foto/Fazbem)

Mas, esta espécie de “filial” do cérebro, localizada no intestino, tem ligação direta com a matriz, o que chamamos de eixo cérebro intestino. Quer ver? Quem nunca teve uma semana de grande estresse emocional como época de provas, véspera de viagem, casamento etc. e, junto com a ansiedade, veio um “intestino preso”? Ou ao contrário, recebeu uma notícia gravíssima que foi acompanhada de diarreia quase imediata? Pois é, existem mecanismos neurais, hormonais e inflamatórios que conectam o cérebro ao intestino e o intestino ao cérebro, de modo competente e veloz. 

Esta conexão acontece no dia a dia de forma imperceptível, mas pode ser alterada em diferentes doenças. Em casos de condições que afetam o cérebro, como depressão e ansiedade, os sintomas comumente envolvem o trato gastrointestinal. Atualmente, sabe-se que doenças neurodegenerativas cerebrais como Doença de Parkinson e Doença de Alzheimer também impactam os neurônios intestinais e a função deste órgão. Mas, ainda é preciso estudar muito para compreender bem esta relação, qual o cérebro que é comprometido primeiro e como protegê-los.

O segundo cérebro, como uma boa “filial”, traz vantagens ao organismo e conta com certa autonomia. Isso significa que nem todas as funções intestinais dependem de ordens cerebrais. Ou seja: se resolve na “filial”. Imagine que são mais de 100 milhões de neurônios distribuídos pelos muitos metros de intestino (em média, o ser humano tem cerca de 4 a 6 metros). Um dos benefícios do segundo cérebro é a rapidez na resposta. Algo que entra pelo tubo digestório (que começa na boca e termina no ânus) é facilmente detectado e tem uma resposta muito rápida de digestão, absorção, vômito ou trânsito intestinal. As maravilhas do SNE ainda não param por aqui: existe, ainda, um mecanismo chamado arco reflexo local, que possibilita a detecção de estímulos de dentro do intestino, o processamento e a resposta, que normalmente envolve movimentos de mistura e de peristaltismo.

A professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Débora de Mello Gonçales Sant’Ana, explica que essa capacidade de rápida resposta é essencial para evitar lesões em nosso epitélio de revestimento intestinal. As células do epitélio funcionam como os azulejos de uma parede, porém, ao contrário da parede azulejada, precisa deixar passar nutrientes e impedir a entrada de toxinas e bactérias. Esse cuidado tão atencioso do “azulejo” intestinal é feito por um tipo de neurônio específico, chamado de aferente ou sensitivo, que se espalha por todo esse revestimento, contendo terminações nervosas abaixo dessa camada protetiva do intestino. Essas terminações são responsáveis por detectar qualquer variação, como o pH, volume ou contração. 

Por mais que muita coisa seja resolvida na “filial”, nós não sentimos todas as contrações que ali ocorrem, já que grande parte delas são inconscientes. Mas, às vezes, ouvimos aquele glub, glub, depois de comer algo que não nos caiu bem, não é mesmo? E, logo depois disso, sentimos umas torções na barriga. Essas sensações se tornam conscientes ao nosso cérebro graças aos neurônios entéricos receptores, que são aqueles capazes de detectar a dor e a pressão. As variações que ocorrem no intestino são transmitidas pelos neurônios ali presentes até chegar no cérebro, se tornando perceptíveis a nós.

A doutoranda em biomedicina Fabiana Galvão, pesquisadora no laboratório de Plasticidade Neural Entérica, localizado na UEM, nos explica que, além do SNE controlar todo o trato intestinal, ele responde a tudo o que está acontecendo em nosso corpo. Quem nunca ficou com aquela dor de garganta e, ao tomar antibióticos, passou mal do estômago? Isso porque o antibiótico mata as bactérias presentes no intestino que, consequentemente, responde a essa agressão. E o coitado ainda tem que entrar em contato com tudo que colocamos para dentro do nosso corpo, já que tudo o que comemos vai ser processado por ele. Por isso é tão importante nos mantermos em “homeostase”, ou seja, em equilíbrio. “Para tudo isso funcionar ao mesmo tempo, o corpo tem que funcionar perfeitinho. Se alguma coisinha sair do lugar, o SNE já tem uma resposta para essa mudança”, acrescenta a pesquisadora. 

O laboratório em que Fabiana trabalha é coordenado pela professora Jacqueline Nelisis Zanoni e tem obtido resultados interessantes. Há muitos anos, comprovaram em experimentos com animais com diabetes que os neurônios entéricos sofrem com alterações de seu funcionamento, o que ajuda a explicar as complicações intestinais dos pacientes humanos com esta doença. Nos últimos anos, estão dedicados a buscar tratamentos e demonstraram recentemente que os neurônios podem ser protegidos por microcápsulas de quercetina, o que pode se tornar um tratamento no futuro.

Fabiana Galvão (Foto/Arquivo pessoal)
Jacqueline Zanoni (Foto/Arquivo pessoal)

Além do laboratório, existe a integração com o Espaço Segundo Cérebro, dentro do Museu Dinâmico Interdisciplinar da UEM (Mudi), também coordenado por Jacqueline Zanoni. O local é dedicado a explicar, de forma interativa, sob mediação de pesquisadores, o funcionamento do primeiro e segundo cérebros e dos órgãos do trato gastrointestinal. Aberto desde 2009, como projeto de extensão universitária, o espaço atende mais de 20 mil visitantes por ano. “Poucos conheciam o Sistema Nervoso Entérico, principalmente, os estudantes do ensino fundamental e médio. Assim, o Espaço Segundo Cérebro, atua na transmissão do conhecimento sobre o SNE para a comunidade e, também, divulgando a pesquisa do grupo, levando o conhecimento a todos e popularizando a ciência”, explica Zanoni.  

E adivinha quem também atua como monitora no espaço? Isso mesmo, Fabiana! Com uma vida dupla, se dividindo entre a pesquisa que busca compreender a relação do câncer localizado em outras partes do corpo, mas que apresentam consequências no SNE, ela também é monitora no Espaço Segundo Cérebro, há mais de sete anos. A biomédica nos relata que sua missão é mostrar a todos que passam por ali, desde crianças do ensino fundamental até graduandos, que o segundo cérebro merece mais reconhecimento por ser um dos sistemas mais importantes do nosso corpo. Ela explica que, para que todos os órgãos funcionem, eles precisam de energia que vem da quebra da glicose, advinda dos processos realizados no trato gastrointestinal. “Não tem um órgão do corpo humano que funcione sem nosso aparelho digestivo, por isso, ele tem esse sistema nervoso próprio e independente”, completa a biomédica. 

O laboratório da UEM é apenas um dos que compõem um dos principais arranjos de pesquisa do SNE do mundo, localizado, aqui, no estado do Paraná. Além da Universidade de Maringá, esse grupo é formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Nos últimos 30 anos, cientistas destas instituições vêm se dedicando ao estudo do segundo cérebro em diferentes condições de pesquisa. O objetivo é compreender o que acontece com os neurônios do intestino e, consequentemente com a função do órgão como um todo, em situações de doença como diabetes, obesidade, desnutrição, colite, leishmaniose, toxoplasmose, doença de chagas, câncer de colo, artrite, exposição a compostos químicos, entre outras doenças inflamatórias intestinais. Além disso, os pesquisadores se dedicam a compreender como os efeitos de tratamentos, no caso dessas doenças, podem afetar o SNE.

Ainda na UEM, o laboratório de Neurogastroenterologia Experimental, sob a coordenação das professoras Débora Sant’Ana e Gessilda de Alcântara Nogueira de Mello, estuda diferentes modelos experimentais de infecção. Débora explica que os neurônios e as células da glia, que constituem o nosso trato digestivo, são semelhantes aos do cérebro. Mas, como já sabemos, nem tudo na vida são flores. Os benefícios que o SNE herda do primeiro cérebro, como muitas capacidades e propriedades das células nervosas, vêm acompanhados de espinhos. Isso significa que: devido a essa semelhança, o segundo cérebro corre os mesmos riscos que o primeiro. Neurônios, sinapses e, até mesmo, neurotransmissores podem sofrer alterações em órgãos que compõem o trato gastrointestinal, como estômago e intestino delgado.

Algumas doenças já têm efeitos bem conhecidos no sistema nervoso central, como o alcoolismo, que está relacionado diretamente ao consumo excessivo de álcool. Algumas consequências são a lesão, disfunção e morte de neurônios, que podem causar o comprometimento da memória, da compreensão e do movimento. Mas, espera lá! O mal funcionamento intestinal também é uma complicação seríssima do alcoolismo, sabia? Pode até não parecer uma consequência da doença, mas é. Afinal, as células nervosas do SNE também são afetadas. Seria muito esperar que elas trabalhem bem sofrendo desse jeito, não é mesmo?

Quem convive com alguém diabético sabe que, quando não controlada, a doença pode causar dificuldade de cicatrização e perda de sensações, principalmente nos pés. Isso acontece porque a quantidade descontrolada de glicose no sangue altera o funcionamento dos neurônios e o processo metabólico passa a produzir compostos tóxicos. No intestino, eles também são danificados. A morte parcial e alteração da função dos neurônios do segundo cérebro causa alterações gastrointestinais. Além disso, episódios de diarreia se tornam frequentes quando o SNE sofre com as consequências do diabetes.

Além de serem um tipo de célula fundamental ao bom funcionamento corporal, os neurônios entéricos sofrem, também, com a infecção pelos parasitos do gênero Leishmania, causadores da leishmaniose tegumentar, uma doença que atinge principalmente a pele. Isso foi demonstrado no Laboratório de Neurogastroenterologia Experimental da UEM. “Até poucos anos atrás, acreditava-se que o parasito não atingia o intestino. Conseguimos, no entanto, demonstrar que eles alteram a estrutura do intestino e dos neurônios do segundo cérebro”, afirma a professora Gessilda. 

Então, na próxima vez que você perceber que o seu sistema gastrointestinal está desequilibrado, tente pensar se você passou por alguma situação recente que afetou seu emocional. Você vai se surpreender, ao ver na prática, o quão complexo é o nosso sistema nervoso entérico. Para saber mais sobre o assunto, não deixe de acompanhar as pesquisas no Instagram, por meio dos perfis @lab.enp e @neurogastro.uem. Além disso, quando estiver em Maringá, não esqueça de visitar o Espaço Segundo Cérebro, localizado no Mudi.

Espaço Segundo Cérebro, localizado no Museu Dinâmico Interdisciplinar da UEM (Foto/Milena Massako Ito)

Apesar da importância do segundo cérebro, ele não é valorizado como deveria. Um exemplo disso é que, cientificamente, ainda não chegou à maioria dos livros didáticos de biologia. Mesmo nas universidades, raramente é mencionado e, quase nunca, é estudado na graduação. 

Porém, depois dessa leitura, deu para perceber a relevância do tema, não é mesmo? Por isso, o segundo cérebro ganhou um “presente” de pesquisadores ligados à Fundação Araucária, que fomenta a ciência, a tecnologia e a inovação no Paraná. Ele é tema do NAPI Neurociências, um dos Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação da Fundação. A ideia é investir recursos financeiros e criar redes de cientistas para aprofundar estudos nesta área. Uma aposta na nossa saúde!

ATENÇÃO: Quer saber mais sobre o SNE? Acesse nosso podcast “Conexão Segundo Cérebro”. Lá você vai aprender sobre sensações e hábitos intestinais, além do conceito de disbiose, probióticos e prebióticos.

Glossário: 

Peristaltismo: movimentação involuntária que fazem os músculos de alguns órgãos do trato gastrointestinal.

Microcápsulas de quercetina: é uma substância antioxidante encontrada em diversas frutas e vegetais

Células da glia: vários tipos celulares presentes no sistema nervoso central que, dentre as diversas funções exercidas, ajudam a isolar, apoiar e nutrir os neurônios.

Sinapses: regiões de proximidade entre um neurônio e outra célula por onde é transmitido o impulso nervoso

Neurotransmissores: mensageiros químicos do cérebro. São eles os responsáveis por passar informações entre um neurônio e outro.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Gabrielli Ferreira, Luiza da Costa e Milena Massako Ito
Colaboração: Débora de Mello Gonçales Sant’Ana
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Luiza da Costa
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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