Playlist mudou de status no mundo do algoritmo

Na tentativa de replicar a escolha musical de uma pessoa dentro das plataformas de streaming, os algoritmos apenas selecionam perfis vendáveis

O pernambucano Fábio Alves da Silva, conhecido no meio musical nacional como Juvenil Silva,  recorreu às lives, durante a pandemia, para garantir, pelo menos, a alimentação e as contas básicas, como água, energia e gás. Assim como fizeram tantos outros músicos brasileiros independentes, que, até março de 2020, dependiam quase exclusivamente dos cachês de shows para viver da música.

Essa foi a primeira alternativa. A segunda, foram os discos que ele chama de “discos offline”, ou seja, lançados fora das plataformas de streaming, como Spotify, Deezer, Amazon Music, YouTube, Apple Music e tantos outros. Foram sete no total, disponibilizados diretamente no comprador, por meio de um link de download, após comprovação de depósito.

“Fazendo uma movimentação dessa, mostrar que estou com o disco gravado, com todo trabalho de compor, criar, captar, mixar, gravar, produzir e tal, o pessoal reconhece e dá mais valor. Tem também a conscientização sobre o momento dos músicos, sem poder tocar, sem ganhar dinheiro. Aí o pessoal chega junto e compra bastante, e é o que vai segurar a minha onda de contas, alimentação, manutenção vital mesmo. A vida offline segura melhor isso aí. On-line é mais a aparência”, explica Juvenil.

Seria impossível viver da renda de três discos que o artista tinha, até então, nas plataformas de streaming. São valores tão insignificantes, que Juvenil retira o dinheiro arrecadado apenas uma vez ao ano. O último lançamento de Juvenil, “Suspenso” (2018), rendeu cerca de R$200, em 12 meses.

Valor pago por transmissão em cada plataforma
Valor pago por transmissão em cada plataforma (AAA Inovação)

De acordo com o blog The Tricordist, dedicado à proteção dos direitos e interesses dos artistas, a plataforma que paga melhor é a Amazon Music: U$ 0,05, o equivalente a R$ 0,26, por transmissão. No Spotify, o valor é de U$ 0,003 ou R$ 0,016.

O primeiro disco offline lançado por Juvenil rendeu mais de dez vezes o arrecadado com “Suspenso” nas plataformas: cerca de R$ 2.500, em pouco mais de um mês. Em analogia aos CDs piratas vendidos nas calçadas, o artista denominou o seu processo de venda como “pirataria de si mesmo”, como explica no áudio abaixo.

🎧 A divulgação de artistas independentes nas plataformas de streaming

Com essa comparação de arrecadamento, já é possível entender porque ele diz: “On-line é mais a aparência”.

Com a banda maringaense Stolen Byrds, os caminhos para se manter durante o isolamento foram outros: alguns editais e a utilização do estúdio, instalado na casa onde todos os integrantes moram juntos, para gravar e produzir outros artistas, com todas as medidas de segurança e sempre respeitando os decretos.

Para eles, assim como para o pernambucano, as plataformas funcionam apenas como divulgação de trabalho. Tanto que Edwardes Neto, compositor e vocalista da banda, afirma que eles também não se preocupam com o ganho das plataformas e chegam a ser mais radicais que Juvenil. A Stolen nem retira a quantidade arrecadada. Os integrantes brincam, entre eles, que só vão ver o que têm ali daqui uns cinco anos.

Já é possível perceber que o trabalho do artista não é valorizado pelas plataformas de streaming. Basta ver os números para confirmar. Mas será que as plataformas funcionam de maneira adequada como ferramenta de divulgação? Será que a divulgação dos artistas independentes e dos artistas de grandes gravadoras é justa e igualitária?

Pesquisador e professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá, Gustavo Luiz Ferreira Santos

O pesquisador e professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá, Gustavo Luiz Ferreira Santos, tem algumas respostas sobre isso em seu doutorado intitulado “O formato playlist: a prescrição musical entre filosofias de programação radiofônica e engenharias da experiência musical automática”.

Gustavo também é músico, apesar de não gostar dessa denominação, por não ser profissional e, segundo ele mesmo, não ter as técnicas “de um músico de verdade”. É vocalista, violonista e guitarrista da banda “errorama”, que, no momento, ele diz estar como os Los Hermanos: “ela não acabou, mas ela não existe mais”.

Foi por esse gosto e interesse pela música que ele dedicou toda a vida acadêmica às pesquisas na área musical. Os motivos principais que o levaram a se debruçar sobre o assunto foram a curiosidade em saber o porquê de nós ouvirmos músicas, como elas circulam entre as pessoas e como elas chegam para cada um. E constantemente incomodado com o modo supérfluo que a indústria promove a relação dos ouvintes com a música, de forma que a maneira como os artistas sobrevivem dela seja praticamente desconsiderada por grande parte das instituições sociais.

Foram essas motivações que o levaram a estudar a construção de playlists durante o doutorado, desenvolvido pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Conceitos e Playlists

Para entendermos um pouco dessa tese é preciso seguir os conselhos de um senhor londrino do final do século 19, chamado Jack, que provavelmente também se interessava por música: “vamos por partes”.

Ao usar o conceito de “prescrição musical”, Gustavo entende que a circulação de músicas depende de alguém que oferece a música, tendo, portanto, uma relação direta com a prescrição médica. Tem alguém “falando” o que você deve ouvir, para você conseguir aquilo que você quer. Mas não significa que você vai obedecer. As plataformas de streaming – “as pessoas que falam o que você deve ouvir”, prescrevem uma “receita” musical, mas não é obrigatório que as pessoas ouçam.

Ao utilizar o conceito de filosofia de programação, ele tenta entender esse tipo de filosofia do algoritmo das plataformas, ou seja, o que o algoritmo acha que está fazendo, se está representando uma indústria, se é um educador. O que é?

“Engenharia de experiência musical automática” refere-se ao modo como as plataformas se apresentam como construtoras de playlists. “Não estão construindo uma playlist, estão construindo a capacidade de você acessar a música que você quiser, é a plataforma como lugar de acesso. É assim que eles se enxergam, é uma filosofia de construção de pontes, de possibilidades de acesso de recomendação musical”, explica o pesquisador.

A necessidade de criação das playlists, segundo as próprias plataformas, aparece como resolução de um problema que os ouvintes teriam em relação à dificuldade de escolher uma música, entre as milhões que cada plataforma possui.

Dizendo que querem tornar a experiência musical mais cômoda, eles afirmam entregar aquilo que interessa a cada ouvinte, de forma personalizada. Para isso, eles usam os algoritmos, que são sequências de instruções dadas ao computador.

“É uma receita de bolo, que diz: pegue esses dados, compare com esses outros dados, faça um ranking, coloque esse ranking em comparação com outros rankings e apresente o resultado para os usuários. É mais ou menos isso, de forma muito mais complexa”, afirma Gustavo.

Outra definição importante da tese é a de playlist, claro, que o pesquisador define como uma coleção de músicas feita com um objetivo específico, com o auxílio de algum tipo de tecnologia e que pressupõe uma ordem específica. Ele faz questão de diferenciar a playlist de mixtape e setlist de DJs e bandas. Conceitos que no cotidiano acabam se misturando.

As diferentes listas musicais

Temos, na história, a playlist profissional, que começa a ser feita pelas rádios na década de 1950, e aparece como repertório de músicas da rádio; temos as playlists pessoais, que surgem na década de 1990, com a criação dos softwares de reprodução musical, de mp3; e temos a playlist do streaming, de recomendação automática, que se populariza dentro do iTunes, software de reprodução musical da Apple.

Divulgação e jabá

De acordo com o professor, não importa qual música eles estão recomendando, o que importa é que haja uma estrutura em que essas músicas cumpram certos critérios. Ou seja, é uma estrutura, não é uma playlist. Esses critérios estão ligados a um ouvinte imaginário, criado pelas próprias plataformas, que é uma “pessoa” para quem eles querem que o algoritmo ofereça as músicas. É a partir dele que o algoritmo determina seus critérios.

Esse ouvinte imaginário é uma pessoa que quer ouvir músicas familiares, mas variar em certos momentos, quer ter a facilidade de ajustar o sistema e entender como o sistema funciona, e o principal, não quer ouvir o que os outros estão ouvindo, quer ter uma experiência personalizada.

Mas durante o estudo, Gustavo percebeu que isso contrasta com as avaliações que as próprias plataformas fazem dos ouvintes, que mostram usuários que não querem descobrir músicas novas, querem ouvir sempre o familiar. Essa é mais uma situação que evidencia o descaso que os streamings têm com a música.

“Eles estão pouco se lixando para a música, o que eles querem é manter o cara no sistema, porque é o que dá lucro, e justifica a existência deles. A pessoa gostar da música é um efeito colateral, o que importa é que eles consigam monetizar os dados das pessoas e construir perfis de públicos para vende-los”, enfatiza Gustavo Luiz Ferreira Santos.

A venda de perfis pode ser usada para diferentes finalidades, entre elas, perfis de publicidade, de seguradoras, perfis criminais, recrutamento de empregos etc. A partir de alguns dados levantados na pesquisa, também é possível levantar suspeitas de que o famoso jabá esteja sendo praticado nas plataformas digitais.  O termo denomina uma espécie de suborno pago pelas gravadoras para que seus artistas sejam favorecidos durante a programação. Nas playlists analisadas durante a pesquisa, apenas 5 das 50 músicas eram independentes, o resto era das grandes gravadoras, como Sony, Universal e Warner.

Dez faixas mais tocadas no Spotify, entre 23/03/2014 e 28/03/2020 (KWORB, 2020 – Retirada da tese de Gustavo Luiz Ferreira Santos)

Nesse emaranhado de algoritmos, jabás e falta de valorização da música brasileira, nós, público, temos cada vez mais dificuldade de abrir portas novas e conhecer novos gêneros, novos artistas, novas ideias, novos pensamentos e adquirirmos novos gostos. Afinal, aquilo que você gosta é influenciado por aquilo que você tem acesso.

Alguém pode se perguntar se esse ciclo não é quebrado quando existe a curadoria de um ser humano, escolhendo uma por uma as músicas, em ordens pré-definidas de audição. É possível, sim, que se crie algumas expansões dentro dessa bolha, mas ainda sem diversidade. Afinal, os seres humanos utilizam o próprio sistema e entram no mesmo algoritmo, quando vão pesquisar as faixas da playlist.

“Claro que eles usam outras fontes, blogs, outros lugares que divulgam lançamentos de discos e tal, mas quando veem esses lançamentos em diferentes locais, eles vão para a plataforma para ouvir. Quando vão para a plataforma, eles criam um registro de reprodução e, assim, também alimentam a plataforma. Ou seja, o software não faz playlist sozinho e a pessoa também não faz sozinha”, expõe Gustavo.

As plataformas querem obter o mesmo resultado que teriam caso o ouvinte escolhesse as músicas, mas querem fazer isso sem passar por uma etapa muito importante, que é o ouvinte. No final do processo, as peças não se encaixam, porque a tentativa dessas empresas é a de replicar o resultado e não o comportamento de cada ouvinte. Como replicar a escolha de um ser humano sem levar em conta o comportamento desse ser humano? Não dá.

Mas isso não é problema para essas empresas, pois, como já dito, a construção de playlists serve justamente para determinar certos lugares de consumo. Enquanto a prescrição das plataformas não for analisada pela perspectiva da arte e da comunicação, mas apenas como ferramenta para construção de perfis para vender para outras empresas, as plataformas nunca entregarão uma real diversidade.

Apesar de serem utilizadas como meio de divulgação, essas empresas, com a filosofia de programação atual, nunca proporcionarão aos artistas independentes, como Juvenil Silva e a banda Stolen Byrds, a divulgação como realmente deveriam receber. Afinal, não são eles que levam a grande maioria de perfis vendáveis para as plataformas.

Eles também não fazem parte de uma grande gravadora e não atingem muito mais do que mil transmissões por mês, sendo, portanto, apenas números pouco rastreáveis pelos radares da “inteligência” dessas empresas de tecnologia. Assim como artistas LGBTQIA+, artistas de outras regiões do país, que não Sul e Sudeste, mulheres, negros, e outras minorias não são.

Mas, apesar das dificuldades, as plataformas de streaming continuam sendo ferramentas para esses artistas atingirem novos públicos e mostrarem que estão vivos, como diz Juvenil Silva, sobre o único trabalho online durante a pandemia, o EP “Lonjura”: “estou vivo aqui no mundo das publicações, da internet, dos produtores, dos outros amigos músicos, do pessoal que vai chegar e fazer um oba oba”.

Enquanto essas estruturas funcionarem com o objetivo de “prender” e atrair ouvintes com a meta principal de monetização, o exercício da diversidade será prejudicado. A uniformidade dentro das plataformas, possivelmente se estenderá para o circuito musical do lado de fora, em contratos com gravadoras, shows e festivais, como demonstra esses posts do Instagram Açúcar de Melancia (@acucardemelanciaa).

Arte da capa

A arte da capa foi produzida por John Zegobia, que retratou Ada Lovelace (1815-1852) como DJ (uma selecionadora de músicas). Ada era Condessa de Lovelace e foi pioneira e criadora da linguagem de programação (algoritmos). Com a palavra, o próprio autor, John Zegobia, que explica o processo de criação: “Quando me propus a esboçar a arte da capa, pensei que, por se tratar de algoritmos de recomendação, a matéria traria uma abordagem mais computacional e matemática do tema. Tinha em mente, produzir algo que mesclasse um rosto de uma pessoa com elementos digitais, tipo Matrix. Ao assistir a entrevista e ouvir sobre a pesquisa musical do professor Gustavo Ferreira, vi que a temática seria voltada para um universo artístico ligado a produção musical. Quando Gustavo citou a música “Telephone”, da Lady Gaga, tive o insight da capa, e pensei: “A primeira pessoa a programar, a criar o algoritmo, foi uma mulher, uma lady do século XIX”, e aí pensei em fazer a Ada Lovelace, uma figura histórica que admiro muito, produzindo música em um meio digital, que representei pelos códigos binários ao fundo, que escrevem seu nome diversas vezes”.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Rafael Donadio
Degravação da entrevista: Rafael Donadio e Valéria Quaglio da Silva
Edição de áudio: Valéria Quaglio da Silva
Roteiro e edição de vídeo: Karoline Yasmin
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: John Zegobia
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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