Uma conversa na copa do prédio que eu trabalho acabou dando origem a essa reportagem. Um grupo de meninas almoça todo dia junto. E os papos que rolam são os mais diferentes possíveis. Em pleno processo de reeducação alimentar, falei de um texto que li no blog do doutor Dráuzio Varela sobre leite. Isso porque tinha dúvidas sobre se esse produto deve ser ou não consumido por adultos. Lá no blog, o doutor Dráuzio diz que somos os únicos animais que consomem leite na fase adulta, mas existem motivos para isso. Uma delas é que desenvolvemos técnicas para domesticação do gado. E ele completa, “por mais que exista uma vertente contrária ao consumo, o leite traz benefícios à saúde, sim. Ele ajuda na prevenção da síndrome metabólica, na redução da pressão arterial, na prevenção do diabetes tipo 2 e, claro, da osteoporose”.
Mas, será que dá para confiar na qualidade do leite? Em 2014, por exemplo, testemunhamos um caso grave descoberto pela Operação Leite Compen$ado: cerca de 1 milhão de litros de leite adulterado foram comercializados. Nas dependências da empresa foram encontrados soda cáustica, formol e água oxigenada. Em São Paulo e no Paraná, 300 mil litros da bebida também estavam “batizados” e chegaram às casas dos consumidores.
Sinal de alerta
O professor Geraldo Tadeu dos Santos, da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, trabalha com a qualidade do leite desde 1975. Aliás, ele já se aposentou, mas continua como voluntário no Programa de Pós-Graduação em Zootecnia (PPZ/UEM) -. São 44 anos na instituição.
Antes de analisar os fatos acima sobre a qualidade do leite, Santos disse que é bom fazer um histórico da situação. Ele conta que o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), baixou, em 2002, uma norma chamada Instrução Normativa 51, que foi o primeiro passo para a melhoria da qualidade do produto. O que foi focado na instrução normativa? O transporte do leite de forma a granel e a obrigatoriedade do resfriamento do leite na propriedade.
“Antes desse documento, o leite era transportado em galões de 50 litros, em cima de um caminhão, e ficava na beira da estrada, às vezes, sob sol, o que o levava a chegar à plataforma dos laticínios de forma já adulterada”, lembra Santos.
O professor relata que, quando o leite sai da glândula mamária, tem qualidade quase que impecável. Toda contaminação ocorre mais tarde, quando começa a manipulação por parte do ordenhador. Vai depender da higiene dos instrumentos que ele utiliza, como a ordenhadeira mecânica, ou da mão do trabalhador, quando se faz ordenha manual. Enfim, tudo isso pode contribuir para a contaminação do leite.
Por causa disso, foram desenvolvidas estratégias para avaliar essa contaminação, ou melhor, a qualidade do leite que chega aos laticínios. Uma delas é a Contagem Padrão em Placas (CPP), que antigamente era chamada de Contagem Bacteriana Total (CBT).
“Essa contagem demonstra o que ocorre no momento da ordenha, e a posteriori, em termos de conservação do produto. A publicação da Instrução Normativa 51 foi muito importante porque fez com o leite produzido no Brasil deixasse de ter 1 milhão e passasse a ter, no máximo, 100 mil bactérias por mililitro. Essa diminuição não garantia, ainda, o leite ideal e, por isso, o Ministério da Agricultura e Pecuária fez outras normativas, em 2011. Nessa época foi publicada a Instrução Normativa 62, pouco mais rigorosa quanto ao controle de células somáticas. Com ela, os laticínios só poderiam aceitar o leite de forma ainda mais restrita, obrigando os produtores a se adequar”, explica Geraldo Tadeu.
Em outras palavras, a Instrução Normativa 62 obrigou o produtor a ter na propriedade um resfriador chamado tanque de expansão. Este é um equipamento que possui uma pá giratória dentro de um grande tanque, onde é promovido o resfriamento do leite. Este se dá a partir da parede do tanque. O leite entra na temperatura de 36°C e, dentro de um curto período, chega a 5°C. Só depois disso, pode ser transportado para o laticínio em tanque de expansão, que é um tanque chamado isotérmico; isto é, que não refrigera, mas conserva a temperatura por um bom tempo, fazendo com que o leite que sai com 5°C chegue a no máximo 8°C lá na plataforma de recepção.
“Mas é importante dizer que esse resfriamento não mata as bactérias, porém, restringe o crescimento bacteriano. O que vai trazer o efeito positivo é o momento de pasteurização ou o processo que chamamos de uperização, que é aquele que manufatura o leite para ser armazenado em caixinha”, explica o professor Geraldo.
O pesquisador da UEM lembra que sempre existiram diferentes tipos de leite no Brasil. Antigamente, tínhamos o A, o B, e o C. Hoje, temos um leite único. A diferença é o beneficiamento para a distribuição.
O primeiro leite comum nas nossas vidas é o de saquinho. Santos explica que este é um produto pasteurizado. Nesse processo, os produtores elevam a temperatura a uns 65°C, depois resfriam a 5°C e empacotam.
“A pasteurização é necessária para matar as bactérias nocivas, mas são preservadas as bactérias não nocivas. É um método muito antigo, foi desenvolvido pelo francês Louis Pasteur, por isso se chama pasteurização. Atualmente, existem procedimentos mais adequados, mas que não são adotados no Brasil. Falo do processo de ultrafiltração, que elimina as bactérias. É muito utilizado na Europa”, conta o docente da UEM.
O outro processo se chama UHT (do inglês, Ultra High Temperature, Temperatura Ultra Alta, em protuguês ultra alta temperatura). Como o nome já diz, coloca-se o leite em altas temperaturas por um momento muito curto. Em segundos, a temperatura do líquido vai da temperatura ambiente para 142/143°C, o que permite esterilizar parcialmente o produto, de tal forma que ele se conserva entre três e seis meses”.
Porém, o professor Geraldo observa que, muitos leites UHT, injetam conservantes no produto além de realizar esse tratamento. Isso pode ser visto nas embalagens você percebe. As informações do rótulo apontam a adição de, conservante, estabilizante etc.
“Tem um leite que vem lá dos holandeses que eles não colocam nenhum conservante, por isso a duração deles é de apenas 3 meses e não 6 meses. É como se fosse um leite pasteurizado, só que sofreu um processo de UHT, mas sem conservantes, sem aditivos, sem nada. Isso prova que é possível colocar no mercado um leite sem aditivos, apesar de ter menos tempo de validade”, aponta Santos.
O pesquisador lembra, ainda, que o leite pasteurizado, aquele que a gente compra no saquinho, pode ser conservado na temperatura de geladeira, que é de de 5° a 8°C, por cinco a oito dias sem estragar. “E não é necessário ferver antes de consumir, tanto o leite pasteurizado como o UHT. A fervura, de uma certa forma, até prejudica alguns nutrientes do leite. Ferver o leite é um procedimento que só se recomenda quando se trata de leite in natura, vindo diretor da teta da vaca”, esclarece o professor.
“O Paraná dá um exemplo marcante para toda a sociedade brasileira. É pioneiro na produção de leite e é o que tem uma maior concentração da raça holandesa preta e branca, tanto é que associação brasileira dos criadores de bovinos da raça holandesa, tem a sede em Curitiba, dado que o Paraná tem quase 50% dos animais registrados do Brasil desta raça, então é uma concentração muito grande. Isso é muito importante porque, quem produz leite nesse nível, produz um leite de qualidade, nós temos uma propriedade ali em Carambeí, a fazenda Melkstad, que produz aproximadamente 70 mil litros de leite por dia, e nós temos uma parceria lá com eles para que nossos alunos da Zootecnia da UEM façam estágio lá. Essa propriedade é aberta e tem estrutura para receber os estagiários”, lembra Santos.
Muitos destes alunos fazem pesquisas de pós-graduação no Centro Mesorregional de Excelência em Tecnologia do Leite, que fica na Fazenda Experimental da UEM, a FEI. Inaugurado em 2012, o espaço foi construído com recursos do Finep e Fundo Paraná, com contrapartida da UEM.
O professor Geraldo Tadeu dos Santos explicou que o objetivo do Centro é articular esforços de equipes de pesquisadores, extensionistas e acadêmicos de pós-graduação e de graduação, para produzirem mais e melhores resultados em atividades organizadas de pesquisa, desenvolvimento e inovação, além de prestar assistência direta e indireta aos produtores de leite.
A professora responsável pelos trabalhos de qualidade do leite, atualmente, é Magali Soares dos Santos Pozza. Ela anunciou que o Centro não vem realizando análises de qualidade, em vista da pandemia da Covid-19. No entanto, um trabalho sobre contaminação do leite cru, tanto por microrganismos que causam doenças quanto substâncias deteriorantes, que reduzem a qualidade e vida de prateleira do produto, feito por alunos de pós e de graduação, no período de dezembro de 2015 a abril de 2016, mostrou resultados positivos.
O trabalho Detecção de Fraude e Presença de Bacillus sporothermodurans em Leite UHT Comercializado no Norte do Paraná teve como objetivo detectar fraude e contaminação em produtos armazenados em caixinha, durante 120 dias de armazenamento.
Foram investigadas quatro marcas comercializadas no mercado varejista da região de Maringá. Para cada marca, foram obtidas 20 amostras provenientes do mesmo lote. Em cada tempo de avaliação (30, 60, 90 e 120 dias após a data de fabricação). Deste total, foram analisadas cinco amostras de cada marca, totalizando 80.
Foi determinado o índice crioscópico, o qual avalia o ponto de congelamento do leite e feita a análise microbiológica. O resultado publicado aponta que: “não foi identificado fraude nos leites UHT comercializados no norte do Paraná. Além disso, as amostras atenderam à legislação vigente quanto à qualidade microbiológica durante 120 dias de armazenamento, conservando as características desejadas de cor branca, aspecto líquido e ausência de odores estranhos”.
Com tanta tecnologia envolvida na pesquisa sobre a qualidade do leite, podemos, então, seguir as dicas do doutor Drauzio e da nutricionista Larissa Zangari, que fala mais sobre o leite no podcast “Vai de leite, aí?” disponível aqui no Conexão Ciência.
Para concluir, o doutor Drauzio nos lembra que o leite é um dos ingredientes mais versáteis da gastronomia. Talvez por isso, o consumo do leite tem aceitação significativa no nosso país: 54% dos brasileiros consomem o alimento, segundo o mesmo estudo.
Imagine que se não consumirmos o produto deixamos de ingerir, também, manteiga, queijo, requeijão, creme de leite, leite condensado, iogurte etc. Excluir todos esses alimentos significa abrir mão de inúmeras receitas, muitas enraizadas em nossa cultura, como pães, doce de leite, pão de queijo, brigadeiro e bolos. Até algumas receitas com legumes e verduras ficariam comprometidas: legumes na manteiga, purê de batata, brócolis gratinado, entre muitas outras. E aí, vai de leite ou passa?
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Ana Paula Machado Velho e Milena Massako Ito
Degravação: Milena Massako Ito
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior