Verônica Regina Muller cursava Educação Física e, dentro da graduação, descobriu a arte de brincar. Embora tivesse o histórico de atleta, se interessou pela diversão proporcionada pelo seu curso e abandonou as competições. Ao mesmo tempo, a gaúcha sempre se sentiu muito ligada ao desejo da justiça social e, por isso, após se formar, buscou uma pós-graduação que tivesse relação com essa questão.
“Não existia internet ou telefone celular, então, em uma biblioteca de Porto Alegre, vi a divulgação de um curso de Educação Social, em Barcelona”, conta Verônica, “fiz meu projeto, mandei para lá, disputei uma bolsa e tudo deu certo”.
Embora tivesse lido um pouco a respeito do assunto, Verônica não sabia exatamente o que era a Educação Social. Ao chegar em Barcelona, conheceu a professora Violeta Nunhez, que apresentou o assunto para ela. “Fiquei encantada”, comentou Verônica, “me senti profundamente gratificada, tanto que o meu doutorado é em Educação Social”.
Isso faz mais de 20 anos e, hoje, Verônica faz parte da equipe de coordenação do Programa Multidisciplinar de Estudos, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente (PCA), da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, como educadora social, além de ser presidente da Associação de Educadores Sociais de Maringá (Aesmar).
Mas, afinal, o que é essa tal Educação Social que tanto encantou a professora? Como o próprio nome diz, Educação Social é aquela aplicada ao âmbito social, que tem como função, atender às pessoas em suas dificuldades e ajudá-las a realizar seus desejos e sonhos.
Essas dificuldades podem se apresentar de diversas maneiras. Por isso, a Educação Social não pode ser definida a partir de uma classe social ou do espaço onde ela atua e, sim, de acordo com a sua função.
“A função do educador e da educadora social é ensinar às pessoas sobre seus direitos”, explica a professora, “ensinar e demonstrar o que existe em seu território de vida, para que ela consiga dar passos adiante em função do objetivo ou das dificuldades que ela tem”.
Ainda de acordo com Verônica, a Educação Social se encontra onde existem pessoas que têm dificuldades em atingir a garantia de seus direitos ou que possuem desejos que não conseguem ser realizados por falta de estrutura, conhecimento ou condições do grupo em que está inserida. Entenda mais sobre a função de um Educador Social ouvindo o áudio abaixo da professora Verônica Regina Muller.
A situação do Educador Social no Brasil
No Brasil, não há um curso de graduação em Educação Social, mas existe a Política Nacional da Assistência Social, que exige que cada município tenha um educador social em determinados programas, como abrigos de crianças, adolescentes e prisões. Ao realizar uma pesquisa, Verônica descobriu que os critérios de cada edital de convocação para educador social são diferentes, não existindo um padrão. E, muitas vezes, esses editais exigem apenas o Ensino Médio como condição básica.
“Um menino, uma menina de 17 anos pode ser um educador social na porta de uma prisão, por exemplo”, comenta Verônica, “achamos isso um absurdo e estamos lutando para que, aqui no Brasil, exista a profissão de educador social”.
Confira no infográfico abaixo outro modo de existência do Educador Social no Brasil.
Os educadores do PCA também fazem parte da Aesmar que, por sua vez, é a única representante, no Brasil, da Rede Dynamo Internacional de Educadores Sociais (ou Dynamo International Street Workers Network). De acordo com Verônica, a luta atual do grupo é pela regulamentação da profissão de educador social no Brasil. “O que nós queremos é que, no futuro, quem se considerar um educador social, tenha o curso de graduação nesta área”, declarou a professora.
Como tudo começou
O PCA surgiu em 1993, por causa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma regulamentação do Artigo 227, da Constituição Brasileira de 1988. Ele foi formado por assistentes sociais, advogados, sociólogos e pessoas que pensam na defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Neste meio tempo, em Barcelona, Verônica fazia seu doutorado e recebia jornais impressos que contavam novidades do Brasil, quando, um dia, leu sobre a criação do PCA na UEM. A professora conta que decidiu que seria nesse lugar que trabalharia, quando voltasse ao Brasil. E foi o que fez.
Em 1996, a gaúcha voltou ao seu país com um doutorado em Educação Social e, após passar em um concurso na UEM, começou a fazer parte da equipe do PCA.
“Acho que eu fui responsável por introduzir essa temática da Educação Social, mas foi bem devagar, a gente passou quase duas décadas num trabalho muito sério com a comunidade. Inventei um projeto de extensão, o ‘Projeto Brincadeiras’ e, mesmo agora, aposentada, ele nunca parou”, relata Verônica.
Em 2022, o Projeto Brincadeiras fará 25 anos. Seu principal objetivo é a formação e organização política de crianças e adolescentes da periferia, por meio de atividades lúdicas e brincadeiras. “É muito a minha identidade”, comenta Verônica, “tem direito, tem criança e tem brincadeira”.
Além de trabalhar com crianças e adolescentes, o projeto também faz, a cada 15 dias, uma formação virtual, no momento, devido a pandemia, na área política, científica, acadêmica, filosófica, antropológica, histórica e pedagógica para as pessoas que trabalharão com as crianças. “Por isso chamamos esses educadores do projeto de Educadores Sociais”, declara Verônica, “essas pessoas que vão trabalhar com as crianças são obrigadas a fazer um relatório, todas as vezes. Hoje, temos um banco de dados do Projeto Brincadeiras no PCA com 24 anos. É infindável o que a gente pode encontrar ali, naqueles registros”.
Durante esse período, o grupo não lutava por uma normatização, mas, em 2015, foi lançado um projeto de regulamentação da profissão de educador social. “Quando fomos ler o projeto, achamos abominável, um escândalo”, relembra Verônica, “então, a gente achou que tinha que se posicionar e lutar por uma outra proposta, e é isso que a gente está fazendo”.
No dia 28 de setembro de 2021, um dia antes de nossa entrevista com a professora Verônica, saiu o parecer do deputado Pedro Uczai sobre a luta pela regulamentação. Para que uma lei regulamente uma profissão no Brasil, ela é lançada no Senado e precisa passar por três comissões. “A lei foi lançada no Senado e fomos pressionando, acompanhando e descobrindo como fazer, e também falamos com senadores”, declara Verônica. “E, após muita luta, conseguimos. O projeto de lei foi aprovado nas três comissões”.
A luta foi longa. O projeto foi lançado em 2015 e, apenas em 2019, foi aprovado, em tempo considerado recorde. Além das três primeiras comissões, o projeto de lei teria que descer para a Câmara de Deputados, que também precisa ser aprovado em três comissões e depois para a sanção do presidente. Mas, apesar de ter ido para a Câmara, em 2019, somente em setembro de 2021 saiu o parecer do deputado.
“Tivemos que fazer várias audiências, nas quais escutaram a gente e escutaram as pessoas que não são a favor”, conta a educadora social, “o que o deputado queria era um consenso entre nós e aqueles que são contra o projeto. Então, ontem, após mais de dois anos, com muita luta e pressão, ele divulgou um parecer, que entrará em pauta e será votado na Câmara”, detalha Verônica Müller.
Assista o vídeo abaixo e entenda mais sobre a importância dessa regulamentação
Resultados
Em todos esses anos de trabalho e dedicação, a professora se alegra e se emociona com o impacto que a Educação Social pode ter na vida das pessoas. “É difícil a gente ter um resultado quantitativo na educação, porque a quantidade não é tão significativa”, conta a professora. “O que interessa mesmo são as marcas que a gente deixa e que as pessoas levam para as coisas fundamentais da vida delas”.
E, por vezes, esses resultados chegam para Verônica sem querer. Quando a Aesmar foi convidada para representar o Brasil na rede de educadores sociais, a Dynamo International Street Workers Network, uma das etapas desse projeto era convidar sete educadores do Brasil para uma formação com gente de todo o mundo, como uma espécie de presente pelo trabalho desempenhado. O que Verônica não esperava, era que um dos convidados se apresentaria da seguinte forma: “professora Verônica, a senhora não deve lembrar de mim, mas eu sou um daqueles meninos do Santa Felicidade [bairro pobre da cidade de Maringá], um dos locais em que era realizado o Projeto Brincadeiras. Hoje, eu sou pai de duas crianças e voluntário no projeto do Sopão. Aprendi com vocês que eu tenho que cuidar das pessoas que precisam”.
“Eu fiquei profundamente emocionada! A gente ia dar um presente para ele e, no final, foi ele quem deu pra gente”, declara Verônica.
Isso demonstra que, quando falamos de Educação Social, não estamos pensando apenas em números, mas em vidas que, de alguma forma, foram tocadas. Afinal, a Educação Social é um instrumento de luta pela garantia dos direitos das pessoas. “Talvez, algum dia, a gente possa contar quantas já passaram pela gente e, mesmo que sejam poucas, são vidas, não é o número que importa, é o que deixamos marcado nelas”, finaliza Verônica.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Isadora Hamamoto e Thamiris Saito
Edição de áudio: Isadora Hamamoto
Roteiro de vídeo: Isadora Hamamoto e Thamiris Saito
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: John Zegobia
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior