ELZAA! Chega de brincar. Entra e vai lavar a louça. Sua irmã já está limpando a casa…
A menina que ouvia da mãe essa frase com frequência, aos 10 anos, já rebatia o fato de os irmãos continuarem a brincar e ela e a irmã terem que fazer as tarefas domésticas.
Filha de japoneses, inquieta e curiosa desde sempre, Elza cresceu em constante disputa entre os irmãos que a provocavam em arriscadas aventuras. Além dos desafios, também a chamavam para lutar. O irmão mais velho observava a desigualdade e a injustiça com a pequena Elza e a ensinava valiosos golpes de ataque e defesa pessoal.
Seus pais chegaram ao Brasil em 1958 com o primogênito e tiveram mais cinco filhos. A quinta da escadinha, como costuma dizer, sempre estudou em escola pública e sonhava em conhecer o mundo. Na adolescência, acreditava que o jornalismo lhe daria essa oportunidade. Pais, irmãos, amigas, professores, ninguém incentivou essa ideia. Diziam que ela era muito miudinha para disputar uma entrevista com vários microfones concorrendo para captar a fala de alguém.
A paulistana nasceu em Lins, morou três anos em São Caetano do Sul e cresceu em São Bernardo do Campo. Na adolescência, sem entender ao certo, viu de pertinho a modificação política do país, entre 1977 e 1981. Ela lembra que o seu colégio ficava entre o sindicato dos metalúrgicos e a igreja matriz, onde aconteciam as reuniões menores. O estádio no qual praticava tênis de mesa era o palco das grandes assembleias. Quando havia manifestação, os policiais jogavam gás lacrimogêneo e os metalúrgicos se refugiavam na escola que era poupada pela polícia.
Para a “galera”, era um momento de festa. A professora nervosa com a situação e os alunos chamando os grevistas para se esconderem ao lado de cada carteira sem a real noção do perigo. “Vem aqui, fica aqui, se esconde aqui do meu ladinho”, lembrou Elza rindo da inconsequência juvenil. Nesse período, os pais nem imaginavam o que acontecia na escola. Em função do grande número de grevistas, haviam soldados do exército, principalmente, no entorno do estádio onde o técnico tinha que que ir até o portão autorizar a entrada para o treino.
A mesatenista lembra com muito carinho dessa época. A região do ABC paulista era muito movimentada, tinha vários jogos olímpicos entre todos os colégios da cidade e as escolas técnicas da indústria automobilística. Aos 12 anos, a caçula da delegação, participava de campeonatos regionais, abertos, entre outros. Conta ela, com muito bom humor, que, um dia, antes de uma competição, esqueceu de pegar o material no estádio, onde era guardado, obrigando o secretário municipal de esportes ir até o local buscar sua raquete para que pudesse embarcar em mais uma aventura sob o rigoroso cuidado do técnico.
Durante o dia, dividia o tempo entre escola, treino e muita brincadeira. A mãe, com seis filhos para cuidar e casa para administrar, só exigia que chegasse antes do pai. Ao nadar numa lagoa perto de casa ou em qualquer outra façanha, o olhar estava sempre atento ao relógio do sol. Quando percebia a luz do dia começando a baixar, era hora de voltar para casa. Naquele tempo a “vara da infância” era outra. Se chegasse após às 17 horas, era surra na certa. Elza não dava bobeira.
Competitiva por natureza, sempre praticou tênis de mesa, que lhe rendeu numerosas medalhas, muitas de ouro, várias peripécias e grandes histórias até na fase adulta.
Com o doutorado em andamento, terminou seu estudo em um ano e meio e aproveitou o tempo que restava para aprofundar sua pesquisa no Japão. Foi recebida como estrangeira, pois não sabia muito da cultura dos seus antecedentes. Também terminou seu trabalho em um ano e meio e, em um belo dia, foi chamada pelo orientador do doutorado para jogar uma partida. Ela ganhou do mestre e chocou a todos quando deveria deixar o “sensei” ganhar. Mais uma vez, se viu na infância, quando não entendia alguns conceitos. Ignorando as reações, simplesmente sorriu e disse “gente, foi ele que me desafiou”.
Nesse período, Elza mudou a vida de um antropólogo inglês, que também estava no Japão fazendo doutorado. Ao encerrar os estudos na Terra do Sol Nascente, ela perguntou ao então namorado se ele viria com ela para o Brasil. Ele prontamente redirecionou seus planos e tratou de aceitar o pedido de casamento. Esse ano, comemoram 20 anos de casados, com o filho encarando o vestibular.
Como qualquer criança arteira, Elza sempre gostou de brincar na rua, subir em árvore, nadar, correr, andar de bicicleta. Achava brincadeira de boneca sem graça, adorava jogar tênis de mesa e tinha outra grande paixão como passatempo: fazer misturinhas com ingredientes inusitados como shoyo, querosene, manteiga, detergente, álcool, entre outros. A lupa, dada por um amigo do pai, era o instrumento perfeito para analisar o efeito dos produtos em insetos e plantas. Para ela, as reações eram a melhor parte da brincadeira. Ali estava a menina curiosa que a pesquisa arrebataria.
Teria sido esse o grande gatilho para se tornar a grande cientista que se tornou? Não se sabe ao certo, mas sem apoio para cursar jornalismo, optou pelo curso de Farmácia, no qual poderia estudar misturinhas mágicas e contribuir para a sociedade como tem feito desde então. Com um vasto currículo em toda carreira, a professora Elza Kimura, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), também estudou e trabalhou na capital paulista e veio para o interior do Paraná em busca de mais conhecimento científico de olho na carreira de docente.
Recém graduada, Elza trabalhou três anos em uma multinacional alemã, o que lhe deu grandes oportunidades de desenvolvimento profissional. Contudo a irrequieta menina queria mais. Insatisfeita com o rumo da carreira, largou tudo, entrou para a docência e abraçou de vez a ciência. E, com a carreira escolhida, conheceu vários países dos cinco continentes.
Concursada, trilhou o caminho do desbravamento na universidade. Entre tantos feitos, e com a experiência da indústria farmacêutica, um dos destaques foi o projeto que colocou o Laboratório de Ensino e Pesquisa de Medicamentos e Cosméticos (Lepemc) para funcionar em escala industrial. Era uma vez um laboratório de ensino que fazia apenas medicamentos artesanalmente.
Elza enfrentou o machismo explícito de quatro irmãos, do pai, da mãe, rebateu a injustiça e encarou os desafios com muita dedicação ao trabalho. Ainda tem planos para o futuro, mas chega a esmorecer quando pensa no cenário atual com o movimento anticiência.
A professora, que chega a aconselhar alunos a buscarem carreiras fora do país, acredita que é “muito sofrimento para o jovem cientista”. A ciência não tem nação. Produzida, terá validade no mundo inteiro, diz. Para ela, o mais importante, principalmente para a mulher, é ter garra, ser ousada e curiosa. “Se não tem determinação, não tem mulher cientista”.
Pandemia
Deflagrada a pandemia, a professora, que há anos desenvolve trabalhos de ensino e pesquisa dentro do Hospital Universitário Regional de Maringá (HUM), não teve dúvidas em continuar a trabalhar presencialmente. Elza lembra que os farmacêuticos sofriam antes de todos e em absoluto silêncio, porque sabiam, antecipadamente, que o corpo clínico e de Enfermagem não teriam a medicação prescrita. Faltava tudo no primeiro momento, desde equipamentos de segurança, como a máscara, até medicamentos básicos e essenciais sempre presentes em hospitais em larga escala. No entanto, com a mobilização de todos os farmacêuticos nenhum paciente ficou sem tratamento.
Elza contou que, apesar do grande risco de contaminação que pairava no ar, naquele momento conseguia ver o orgulho da família ao vê-la no campo de batalha. A carga horária no papel era a mesma, mas a jornada de trabalho era insana. Correria no hospital superlotado, reuniões presenciais e muitas outras remotas, a qualquer momento da madrugada, com novas informações e protocolos. “Só quem viveu sabe”, disse Elza.
Com pós-doutorado em Farmácia Clínica, mestrado e doutorado em Fármacos e Medicamentos, coordenadora do Núcleo de Pesquisa Clínica e Bioequivalência (NPC-Bio), docente da graduação e pós-graduação, pesquisadora em Farmácia Clínica e Farmacocinética e membro do Comitê de Ética, Elza sentiu-se à vontade para ajudar a enfrentar a batalha contra o vírus que assolava o mundo. No doutorado, pesquisou sobre o mecanismo de ação do metotrexato e avaliação clínica de sua associação com a cloroquina no controle da artrite reumatoide juvenil. E viu o nome de um medicamento tão familiar dividir o Brasil e o mundo. Foi tudo muito difícil, declara.
Aos poucos, a vida vem tomando nova forma. Para Elza, professora, pesquisadora, cientista e, antes de tudo, mulher e mãe, os cuidados básicos com a higiene pessoal nunca deixarão de ser essenciais. Nem antes, nem depois da pandemia. “Lavem as mãos com frequência”, suplicou.
De bem com a vida e com tempo de trabalho suficiente para se aposentar, ainda não pensa no assunto. Como mulher, ao avaliar toda sua carreira, fala taxativamente que o mais difícil foi conciliar a maternidade. Ao se tornar mãe, a produção científica passa a ser educar o filho, disse. Com Oliver encarando o vestibular, Elza se sente tranquila. É uma mulher plena, segura, poderosa e bem humorada. Mas sua inquietude ainda quer mais. A ciência agradece, “profe”.
Confira a segunda temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Elza contada por ela mesma
Donas da Ciência – T2 E1 – Elza Kimura Grimshaw – Conexão Ciência C²
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Noth Camarão
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior