Engenharia Neural: o cérebro humano é uma máquina?

Pesquisadores do Paraná desenvolvem tecnologias assistivas para melhorar a qualidade de vida de pessoas com distúrbios neurológicos

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A gente sabe que o cérebro é uma das partes mais complexas do nosso corpo. Tão complexo que suas funções já passaram a ser comparadas ao trabalho que um computador realiza. Você, com certeza já deve ter ouvido falar da metáfora entre cérebro e computador, não é mesmo? Principalmente agora, tempo em que a inteligência artificial vem sendo discutida (e questionada) mais do que nunca e incorporada de diversas formas à nossa rotina.

Os bilhões de neurônios existentes no cérebro são responsáveis ​​por receber, processar e transmitir informações por meio de sinais elétricos e químicos chamados de sinapses. Essa comunicação entre os neurônios permite não só a execução de tarefas básicas e reflexos, mas também funções como pensamento, memória, emoção e criatividade. Por sua vez, os computadores processam as informações por circuitos digitais que seguem algoritmos específicos para realizar tarefas. Eles operam em uma série de comandos binários — tudo reduzido aos famosos zeros e uns. 

A aproximação da atividade neural com a forma que uma máquina opera já vem sendo integrada a um campo de estudo interdisciplinar conhecido como Engenharia Neural, que combina elementos de engenharia, neurociência, neuroanatomia, biologia, medicina e outras áreas para desenvolver métodos e tecnologias que interagem com, melhoram, substituem ou tratam funções do sistema nervoso. Essa Engenharia busca compreender os sistemas neurais em um nível tanto funcional quanto mecânico, e se vale dessa análise para criar soluções inovadoras para uma variedade de problemas e desafios relacionados à saúde.

A integração entre sistema nervoso e máquina parece algo que a gente não está acostumado a ver, somente na internet ou na TV, em uma reportagem do Fantástico, por exemplo. Achamos fascinante, mas não imaginamos que está tão próxima a nossa realidade. Aqui no Paraná, onde produzimos o C², existe um grupo de pesquisadores do Laboratório de Engenharia Neural e de Reabilitação (LENeR), localizado na Universidade Estadual de Londrina (UEL), que está antenado com essas questões.

O coordenador do LENeR e professor do Departamento de Anatomia, da UEL, Eddy Krueger, reforça a ideia de que a Engenharia Neural age de maneira similar às operações básicas de um computador, já que se utiliza de princípios da programação como Read e Write1 para interagir com os sinais neurais. Isso significa usar técnicas como eletroencefalogramas2 e eletromiografias3 para “ler” a atividade elétrica do sistema nervoso e, por outro lado, “escrever” ou enviar sinais que possam influenciar ou controlá-la, como “ligar” um nervo, fazendo um músculo paralisado voltar a contrair momentaneamente. 

Krueger ainda complementa que “a engenheira neural busca utilizar a parte que foi danificada da estrutura e do funcionamento do sistema nervoso e fazer pontes tecnológicas entre esse sistema com a tecnologia e o ambiente externo. E o contrário também, do ambiente externo com o sistema nervoso. A ideia é fazer com que a tecnologia substitua e auxilie algumas funções da estrutura do sistema nervoso que foi alterada, seja em nível macroscópico ou microscópico”.

O LENeR

O principal objetivo do LENeR é  mimetizar (“imitar”) o sistema nervoso, por meio das neurociências, melhorando a qualidade de vida de pessoas com distúrbios neurológicos e sequelas sensório-motoras advindas de um acidente vascular encefálico (derrame), por exemplo. Mas essas tecnologias podem ajudar a quem tem paralisia cerebral ou sofreu traumatismo crânio-encefálico, lesão medular, dentre outros traumas. Por essa razão, o trabalho desenvolvido no Laboratório é voltado para pesquisa e desenvolvimento de tecnologias assistivas relacionadas à Engenharia Neural e à de Reabilitação. 

As tecnologias assistivas englobam ferramentas ou dispositivos que ajudam as pessoas a realizar funções que são mais difíceis ou impossíveis de serem executadas devido a limitações físicas ou sensoriais. Ao trazermos para o nosso cotidiano, isso pode incluir desde os óculos, que ajudam a corrigir a visão, passando por cadeiras de rodas e próteses, que auxiliam na mobilidade, até os aparelhos auditivos, que amplificam os sons. Já no Laboratório, alguns exemplos são as interfaces cérebro-máquina e as garras robóticas.

Importante ressaltar que essas tecnologias não visam curar as condições que causam as limitações, mas proporcionar aos seus usuários maior autonomia e capacidade de participação em várias tarefas. Pense: o óculos não tira determinada deficiência visual, porém permite que uma pessoa possa enxergar nitidamente. Do mesmo jeito, uma muleta ou uma cadeira de rodas não restauram o caminhar de alguém, mas fazem com que a pessoa se movimente de maneira independente.

Em sua maioria, as pessoas assistidas pelo LENeR vêm de diferentes instituições parceiras espalhadas pelo Paraná. Algumas delas são: o Complexo de Saúde Pequeno Cotolengo (Curitiba), a Associação Flávia Cristina (Londrina) e a Clínica  de Fisioterapia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Jacarezinho).

Complexo de Saúde Pequeno Cotolengo, que fica em Curitiba/PR (Foto/Reprodução)

Além do mais, o Laboratório, que antes era concentrado apenas em Londrina, agora se expandiu e conta com a colaboração de uma equipe multidisciplinar, Engenharia Biomédica, Engenharia Elétrica, Engenharia de Computação, Medicina, Fisioterapia, Psicologia e Educação Física envolvendo estudantes e pesquisadores de universidades – como a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e a Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) , institutos de pesquisa e instituições de saúde do Paraná. A variedade de áreas presentes colabora para um maior refinamento dos projetos criados, aumentando, consequentemente, a eficiência deles. 

O refinamento no desenvolvimento de tecnologias assistivas no LENeR tem sido um processo complexo e gradual. No caso da interface cérebro-máquina, fundamental nesse contexto, não é uma ocorrência trivial devido à complexidade do processamento dos sinais cerebrais. “É muito complicado você, nesse mar de informações que está vindo do cérebro, extrair uma informação”, afirma Krueger.

Determinar quando o usuário deseja relaxar, pegar algo ou mover-se é apenas uma fração dos sinais capturados por máquinas computacionais. Em muitos casos, o computador só consegue interpretar corretamente cerca de 60% dos desejos de quem quer realizar uma ação. Por isso, o professor informa que, para lidar com esses desafios, são empregadas diversas estratégias de processamento de sinais, visando refinar a interpretação e a resposta da máquina. “A gente tem que escolher como vai classificar o sinal. Escolher a melhor estratégia para fazer esse processamento, porque o que está sendo expressado pelo cérebro humano precisa ‘casar’ com a interface, com o computador”, detalha o professor.

Como essas tecnologias são acessadas?

Para quem busca desenvolver tecnologias como as do LENeR, é possível acessá-las por meio da plataforma GitHub, em que o grupo de pesquisadores disponibiliza os códigos abertos dos projetos, bem como as produções bibliográficas que foram feitas em busca deles. Essa abordagem promove a transparência e permite que outros possam aprender, replicar ou mesmo modificar os projetos originais, incentivando usos diversos e criativos dos dispositivos desenvolvidos, que vão desde aplicações em jogos eletrônicos até potenciais usos em neuropróteses/neuro-órteses. 

O professor da UTFPR, José Jair Alves Mendes Junior, comenta que a publicação de trabalhos em plataformas como o GitHub também serve como um portfólio para os estudantes do Laboratório. Isso não apenas mantém um registro histórico do desenvolvimento de projetos, mas facilita o diálogo e a colaboração com outras instituições e pesquisadores, tanto nacionais quanto internacionais.

Página do LENeR na plataforma GitHub (Print)

Contudo, a visão de longo prazo é fazer com que os protótipos criados se tornem produtos  integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS), de modo a proporcionar maior acessibilidade e inclusão para pessoas com deficiências em todo o Brasil. 

“A nossa meta lá na frente, pela condição do nosso país, é que isso chegue no SUS. Da mesma forma que o Sistema oferece cadeira de rodas para as pessoas, medicamento, a gente espera que essas tecnologias sejam alocadas para o Brasil, como um todo”, reforça Eddy Krueger. 

O uso prático das tecnologias assistivas

Agora que você já conhece um pouco de todo esse trabalho na teoria e de como ela busca impactar positivamente a vida do outro, talvez esteja se perguntando como, de fato, esses projetos funcionam na prática. Errei?

Imagine a cena: um dos maiores desejos de um garoto de cinco anos era jogar futebol com o pai. Esse foi até seu pedido de Natal! Só que uma coisa impedia isso de acontecer, já que o pai é paraplégico. No início deste ano, esse desejo se tornou realidade. O pai participou de um dos projetos do LENeR, que explora o uso de interfaces cerebrais avançadas e permite pessoas com paralisia realizarem movimentos antes considerados impossíveis.

A tecnologia desenvolvida no Laboratório decodifica os sinais neurais do cérebro, que ainda são gerados mesmo quando as conexões com os membros estão interrompidas. E, nesse dia, a tarefa era simples: chutar uma bexiga. Algo inimaginável para alguém que perdeu sua capacidade de andar. Quando a bexiga foi solta, o homem se concentrou e uma sintonia entre cérebro e máquina fez com que ele conseguisse chutar a bexiga. Não foi um movimento físico, foi uma grande vitória sobre suas limitações.

Krueger relembra que a emoção tomou conta do ambiente, especialmente da esposa e do filho. Segundo o pesquisador, a mulher deixou escapar a importância de realizar esse sonho… o simples ato de brincar com o pai. A equipe do projeto não prometeu milagres. O que eles forneceram foi algo inestimável – a possibilidade de interagir de forma que a maioria das pessoas considera normal, mas que, para alguns, é extraordinária.

O vídeo abaixo mostra o uso dessa tecnologia em ação:

A Engenharia Neural não se resume apenas a tecnologias, circuitos e algoritmos. Ela abarca, também, a parte emocional humana, indo além das barreiras físicas e proporcionando momentos como os descritos acima. Mesmo os passos menores passos podem significar grandes conquistas em direção a uma vida com mais qualidade.

Para além da importância para a comunidade, no que se refere à melhoria da qualidade de vida de pessoas com distúrbios neurológicos, as atividades empreendidas por essa equipe de engenheiros também refletem em êxitos dentro de suas próprias instituições. Mais especificamente para os estudantes.  

De acordo com o pesquisador Paulo Broniera, do Instituto Senai de Tecnologia da Informação e Comunicação, de Londrina, muitos alunos  (seja os que ainda vão entrar na faculdade ou os que já estão) vão perdendo o interesse pela engenharia, muito por conta do nível de dificuldade que essa área apresenta. No entanto, essas percepções começaram a mudar após eles verem as aplicações dos projetos de verdade, pois se sentem motivados a fazerem pesquisas que vão contribuir para o próximo e fazer a diferença.

“Quando o pessoal vai lá no laboratório e vê isso sendo aplicado, eles dizem ‘Paulo, eu quero fazer um mestrado, eu quero atuar nessa área, eu quero pegar um trabalho dentro daquilo que eu conheço e aplicar’. E aí, de pouquinho em pouquinho, essa rede que a gente tem hoje, que eu acho que não é mais um laboratório, mas sim uma rede de tecnologia assistiva com várias áreas possíveis sendo aplicadas, acaba também motivando e trazendo pessoas para dentro da universidade”, relata o pesquisador. 

Com isso, a interseção entre tecnologia e neurociência, ilustrada pelo LENeR, funciona como um avanço significativo na forma como abordamos e entendemos a funcionalidade do sistema nervoso humano. Esse laboratório, junto a suas colaborações extensas e interdisciplinares, não apenas desenvolve tecnologias assistivas que almejam melhorar a qualidade de vida de pessoas com distúrbios neurológicos, como você pôde ler no relato sobre o pai do garotinho, mas também inspira a próxima geração de estudantes e pesquisadores a se dedicarem a uma área como a Engenharia, neste caso, Neural. É a Ciência a serviço de um mundo mais inclusivo. 

E aos que quiserem ver mais vídeos dos projetos sendo colocados em prática, é só clicar aqui.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Maria Eduarda de Souza Oliveira
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Guille Cordeiro
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Glossário

  1. Read e Write: na programação, “read” refere-se à operação de acessar e recuperar dados de um armazenamento, enquanto “write” refere-se ao processo de salvar ou modificar dados em um armazenamento. ↩︎
  2. Eletroencefalograma: é um exame que permite o estudo do registro gráfico das correntes elétricas espontâneas emitidas no cérebro. ↩︎
  3. Eletromiografia: é um exame realizado para medir a resposta neuromuscular. ↩︎

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