Milhões de brasileiros comemoraram quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o Instituto Butantan, de São Paulo, a iniciar a Fase III dos testes clínicos para verificar a eficácia e a segurança da vacina contra o coronavírus, a CoronaVac. O imunizante chegou ao Brasil a partir de uma parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac Biotech. Era uma segunda-feira, 6 de julho de 2020. Naquele dia, o Instituto começou a convocação de voluntários. Nove mil profissionais de saúde foram selecionados para participar dos chamados ensaios clínicos. Boa parte estava envolvida na linha de frente do atendimento a pacientes com Covid-19.
Outras vacinas estavam sendo testadas pelo mundo para, em breve, chegar aos braços da população. O planeta inteiro estava de prontidão. Já havia se passado cerca de sete meses desde que surgiram notícias de casos inexplicáveis de pneumonia na cidade de Wuhan, na China. O Brasil já tinha ultrapassado de 2,2 milhões de pessoas infectadas e 90 mil mortes.
Por causa disso, milhares de cidadãos, como qualquer um de nós, além de enfermeiros, médicos e outros profissionais se comprometeram a desnudar um ombro para receber uma dose dessa vacina em teste. Pessoas casadas, com filhos ou não, mas todos parte de uma família, de um grupo, filho de alguém.
O que é preciso compreender é que, sem esses heróis – obrigatoriamente anônimos, como determinam os protocolos das agências que regulam esses ensaios -, seria impossível comprovar, com segurança, a eficácia não só de vacinas, mas de medicamentos, equipamentos e outras tecnologias da área de saúde.
Em outras palavras, os enormes aportes de dinheiro feitos por instituições públicas, privadas e governos não valeriam nada não fossem essas pessoas que se colocam à disposição da ciência e permitem a comprovação do benefício de remédios e outros fármacos, insumos e diversas tecnologias relacionadas à assistência à saúde, porque eles só chegam às prateleiras das farmácias ou à disposição da população depois da terceira etapa de testes clínicos ou pesquisas clínicas, que envolve a testagem em humanos.
Histórico
Quem conhece bem essa história é a enfermeira Sandra Bin Silva. Ela pode ser encontrada diariamente nos corredores do Hospital Universitário Regional de Maringá (HUM), conversando com potenciais voluntários, convidando-os para a participar de algum dos estudos clínicos conduzidos no Núcleo de Pesquisa Clínica e Bioequivalência (NPCBIO), do HUM, ligado à Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Sandra é testemunha de que nem sempre é fácil encontrar pessoas dispostas a se voluntariar em pesquisas clínicas. Esse é o grande desafio que ela enfrenta desde a instalação do setor, em março de 2010. “O Núcleo já tem mais de 10 anos e sempre foi um órgão pouco conhecido no HUM, porque nossas ações exigem que adotemos protocolos de sigilo. A pesquisa clínica, diferente da pesquisa acadêmica, necessita de autorização da Anvisa para a sua realização e têm que atender a um conjunto de normas e resoluções éticas e clínicas universais, que fazem parte das boas práticas clínicas. Todas as organizações mundiais são signatárias da Declaração de Helsinki e, no Brasil, existe o Documento das Américas e a Resolução 466, de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, que trazem essas regras. Todo esse processo é baseado na ética em pesquisa com seres humanos. Assim, as análises exigem um controle rígido seguindo um método”, esclarece a enfermeira e coordenadora de Estudos Clínicos, do NPCBIO, do HUM.
Na verdade, o Hospital está envolvido no cenário da pesquisa clínica em nível mundial, por causa da sua estrutura física e pela competência e experiência da equipe. A entrada neste grupo seleto do mundo da pesquisa clínica, chamada patrocinada, se deu em decorrência do histórico de qualidade na condução de estudos clínicos na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do HUM.
Uma das pessoas que têm destaque nesta história é a professora e farmacêutica Elza Kimura Grimshaw, que é, desde o princípio, a coordenadora geral do Núcleo. Em 1999, o Brasil entrava na era dos medicamentos genéricos e deu início a uma estruturação nacional para fazer o que é chamado de estudos de bioequivalência; isto é, testes que comprovam que dois remédios produzidos a partir de um mesmo princípio ativo não apresentam diferenças significativas na quantidade e na velocidade de ser absorvido pelo paciente, quando administrados em doses iguais e sob as mesmas condições.
Naquele momento, a professora Elza elaborou um projeto para criar uma unidade de bioequivalência, no HUM. Somente em 2006, conseguiu aprovar mais de R$ 1,7 milhão para a criação de um centro de pesquisa clínica para condução de estudos na área, que previa a instalação de uma estrutura de consultórios, enfermarias e de um laboratório de Farmacocinética
Essa estrutura laboratorial foi um dos aspectos mais importantes para a entrada do HUM no cenário da pesquisa clínica. Paralelo a ele, o Departamento de Medicina (DMD), da UEM, recebeu recursos do governo do Paraná, naquele momento. Segundo o doutor Sérgio Yamada, que era o chefe do Departamento de Medicina naquela época, o dinheiro era dirigido à construção de três enfermarias.
“Mas não fazia sentido algum, não tínhamos como executar a obra, foi quando soubemos que a professora Elza estava procurando parceria para o projeto do laboratório. Sugerimos ao DMD a criação de uma unidade de pesquisa clínica”, lembrou o doutor Sérgio Yamada, ainda hoje coordenador clínico do NPCBIO, no HUM.
A soma dos recursos da professora Elza e do governo do estado permitiu, então, a construção da estrutura física do Núcleo. A proposta ganhou ainda mais combustível por causa de uma medida do governo federal, que abriu um programa para ampliar a Rede Nacional de Pesquisa Clínica. Havia 19 unidades no Brasil inteiro, que tinham sido criadas dentro do Ministério da Saúde para fomentar pesquisas direcionadas ao atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Em 2009, foi aberto um edital para essa ampliação da rede nacional e os diretores do Núcleo do HUM, na época, pensaram: “há a área física e a laboratorial, vamos entrar nessa chamada”. O grupo foi contemplado, em novembro de 2009, e o HUM se transformou no único hospital do Paraná, que faz parte da Rede Nacional de Pesquisa Clínica. São 32 serviços no Brasil todo.
Pesquisa patrocinada
A experiência do HUM na Rede Nacional de Pesquisa Clínica gabaritou o Hospital para que, hoje, ele faça parte da elite de instituições internacionais que são convidadas a realizar pesquisas clínicas de fármacos e equipamentos, patrocinadas por grandes empresas do mundo todo.
Essas empresas contratam instituições especializadas de pesquisa clínica, chamadas de Organização Representativa para Pesquisa Clínica (CRO). Estas organizações procuram os executores do processo, baseando os procedimentos em um dossiê elaborado a partir das necessidades do produto desenvolvido pelos fabricantes. Estes centros são convidados e respondem a um formulário de viabilidade (feasibility) e são escolhidos com base na competência do chamado Investigador Principal (PI, sigla em inglês), na qualidade das instalações clínicas e na capacidade de recrutamento de pessoas.
Os executores trabalham, na maioria das vezes, de forma colaborativa, conformando ações multicêntricas. O Núcleo do HUM está envolvido, desde 2020, em mais de 10 pesquisas clínicas voltadas para a área de Covid-19, algumas patrocinadas por laboratórios e farmacêuticas internacionais e outras vinculadas ao grupo Coalizão Brasil. Seis foram concluídos, com participação internacional. São estudos clínicos de tratamento com medicamentos, mas, também, pesquisas comparativas entre duas técnicas de ventilação mecânica.
Segundo o professor Yamada, o Núcleo do Hospital apresenta os principais pontos exigidos para a pesquisa clínica: estrutura física e equipe altamente qualificada.
“A pesquisa clínica, em primeiro lugar, deve ser feita por pessoas que têm a responsabilidade de prescrever medicamentos. Médicos, odontologistas e veterinários podem ser os coordenadores e investigadores principais, os PI. O papel do médico como pesquisador é analisar criticamente os projetos, saber se fazem sentido para os pacientes que serão incluídos nos estudos. Além disso, garantir a segurança de cada um até a ponto de retirá-los dos estudos se os riscos ao qual estão sendo expostos forem excessivos. Assim, a pesquisa clínica traz uma mudança no comportamento da equipe, que passa a entender a importância de seguir protocolos, se manter atualizada para entrar na vanguarda dos tratamentos em estudo de patologias no mundo”, esclarece o médico.
Outros pesquisadores fazem parte da equipe que toca a pesquisa clínica na ponta, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas… E todo o processo se torna muito “seletivo”, já que é necessário formar uma equipe eficiente. O grupo todo tem que conhecer a legislação e ganhar experiência em treinamentos com investigadores nacionais e internacionais. Além disso, é necessário que os integrantes produzam dados precisos, corretos e mais: tenham a capacidade de implementar esses dados sem nenhum erro nas plataformas eletrônicas, onde são reunidas todas as informações solicitadas e necessárias aos desenvolvedores do fármaco ou equipamento que está sendo avaliado.
A enfermeira Sandra reforça essa preocupação, destacando que, especialmente em pesquisas multicêntricas, feitas por diferentes instituições, um dado inserido na plataforma do banco de dados vai interferir no dado de outro centro e do centro global.
“Isso é muito importante, porque a análise destes dados vai referendar ou não o uso de uma medicação nova. Aquilo que eu gero de informação com o meu participante de pesquisa vai fazer diferença efetiva nas conclusões do estudo, nem que seja um efeito adverso de 0,001%. Por isso, o nosso médico vai lá fazer consulta e registra todo o detalhamento; eu vou lá e faço tudo isso de novo; o outro faz mais uma vez, para ver se eu, de repente, não percebi algo e o outro percebeu. Tudo precisa ser realizado com muito cuidado, porque vai contribuir para a determinação de conclusões que vão fazer parte da bula do remédio, aquele que vai para a prateleira da farmácia e vai ser usado no mundo todo”, diz Sandra.
Atualmente, além das pesquisas clínicas desenvolvidas com as indústrias farmacêuticas, a estrutura do Núcleo de Pesquisa Clínica do HUM está à disposição de todos os pesquisadores da UEM que tenham financiamento de pesquisa. Nesses casos, é necessário que cada protocolo tenha seu investigador principal e equipe própria de execução das chamdas pesquisas acadêmicas.
“A equipe fixa do Núcleo disponibiliza a estrutura, orienta, auxilia, organiza o cronograma de uso e facilita os processos para a condução destes estudos, mas não participa, obrigatoriamente, na condução de pesquisa de outros pesquisadores interessados em usar a infraestrutura que temos aqui”, destaca a professora Elza Kimura.
Cuidando de gente
Mas, voltamos a lembrar, então, que, diferente destas pesquisas e projetos de profissionais da UEM, a pesquisa clínica é um processo muito sério e cercado de muitos métodos, com o objetivo de atender às necessidades dos seres humanos utilizando seres humanos. Por isso, segundo Sandra Bin, é preciso estar disponível e atento todos os dias no trato com os voluntários: verificar o estado clínico deles, oferecer o fármaco, ver se ele apresentou algum sintoma após o uso do medicamento, coletar o sangue na hora certa, enfim, seguir rigorosamente o método determinado. Em resumo, é um trabalho minucioso, que não é feito por qualquer grupo e, também, não é divulgado na mídia e nem mesmo dentro dos centros executores, como o HUM.
“Nossa unidade é bem flexível, as salas são adaptadas para o desenvolvimento de cada estudo, hora usamos camas para participantes ficarem em observação por algumas horas, outras, colocamos poltronas. Certo que algumas salas não podem ser mudadas, como consultórios e a de medicamentos e materiais. Tem também a sala de arquivos, que reúne toda a documentação de todos os estudos. Muitos guardam sigilo industrial e devemos mantê-los por 15 anos. Estas salas ficam trancadas e têm acesso controlado. Além disso, nos comprometemos a guardar o sigilo das pessoas. Esse é mais um motivo de nós não divulgarmos nosso trabalho, porque é preciso resguardar as informações dos participantes. Então, mantemos essa porta fechada. Eu brinco que acho que as pessoas pensam que essa é a porta de Nárnia, aquela que, quando a gente abre, ninguém sabe o que vai encontrar do outro lado”, relata a enfermeira.
É certo que uma das questões mais delicadas de todo o processo de pesquisa clínica é a desmistificação do que é ser voluntário e do tratamento que é dado a esses verdadeiros heróis. Segundo Sandra Bin, as abordagens para a seleção de voluntários não são fáceis. Baseiam-se no lado humano, sentimental, mostrando que a pessoa não está fazendo algo para benefício próprio, mas para favorecer a humanidade inteira. Não é qualquer pessoa que consegue fazer a abordagem. Há de se ter certa habilidade, certo poder de convencimento. É necessário muito treinamento, principalmente, para se aproximar dos participantes dos estudos em que não se tem informações de segurança e eficácia.
Heróis e não cobaias
A diferença entre cobaia e participante ativo na pesquisa clínica
Enfim, pesquisas que custam milhões são imprescindíveis para que uma medicação chegue à prateleira da farmácia. Todo o processo leva, às vezes, 10, 12 anos, desde os estudos de laboratório até os testes com humanos e a venda para a população em geral.
Nos últimos anos, a pesquisa clínica ganhou visibilidade, por causa da pandemia da Covid-19. Passou a fazer parte das conversas do dia a dia e das matérias da mídia. Tudo em razão da necessidade de se encontrar fármacos e até vacinas para tratar ou prevenir a doença. Um universo inteiro de pessoas que faziam pesquisa clínica em diversos focos estão, agora, focadas no cenário da Covid. Isso incluiu pessoas comuns preocupadas, querendo ajudar e se dispondo a participar de diferentes estudos como voluntárias.
Sandra Bin lembra que, na época do desenvolvimento da vacina da Gripe A, a relação era a de que, talvez, entre 500 casos, uma pessoa pensava na humanidade e se dispunha a ser voluntária. Agora, no cenário da Covid-19, muitos cidadãos se voluntariaram pelo mundo. Rapidamente, os pesquisadores conseguiram atingir o número necessário de participantes para conhecer mais de perto esses imunizantes em diferentes países.
“Mas, nem sempre é assim. Por isso, é importante uma reportagem como essa sobre o que é pesquisa clínica, como ela funciona e a importância dos voluntários. O papel fundamental deles. As pessoas precisam compreender que, mesmo em momentos críticos, é imprescindível contar com o apoio de voluntários. Nós fazemos ciência e eles fazem história. Esse gesto precisa ser mais comum, precisamos de heróis também em tempos sem pandemia. E não precisa ir longe para ajudar. Há grandes pesquisas sendo feitas aqui, no nosso HUM”, completou a enfermeira.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Ana Paula Machado Velho
Degravação da entrevista: Karoline Yasmin Cera da Silva e Milena Massako Ito
Edição de áudio: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Thamiris Rayane Shimano Saito
Ilustrações: John Zegobia
Fotos: ASC – UEM
Receba nossa newsletter
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: