‘Escrevivência’. A primeira vez que tive contato com esse termo foi em 2017 enquanto pesquisava sobre a literatura de Conceição Evaristo. Eu tinha recém-terminado a leitura do livro “Olhos D’Água” e queria saber mais sobre o que a autora tinha para dizer.
O termo foi cunhado por Conceição no início dos anos 2000, algo que, na prática, ela já usava há muito mais tempo. A escrevivência vem para nomear uma forma de fazer literatura, ligada às suas vivências enquanto mulher negra, periférica e brasileira. Trata-se, portanto, de uma literatura entrelaçada com a experiência: a vida, a história coletiva, a ancestralidade e os afetos.

Nesse sentido, Evaristo escreve como quem também faz um ato político. “A nossa escrevivência não pode ser lida como história para ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”, explica a autora em seu ensaio “Escrevivência: a escrita de nós”. São, portanto, narrativas que buscam subverter a lógica estabelecida, denunciar desigualdades e escancarar apagamentos ao longo da história de um país como o Brasil.
Conceição Evaristo integra, ao lado de outros autores brilhantes, um corpo de escritores que produzem a literatura afro-brasileira.
Literatura Afro-Brasileira: a identidade de um povo
A literatura afro-brasileira representa um conjunto de produções literárias escritas por autores negros brasileiros que abordam a cultura, vivências, lutas e identidade da população negra no nosso país.
Essa é uma literatura que reconta a narrativa: a do povo negro e dos povos originários, entrelaçando com pautas históricas e contemporâneas como a ancestralidade, a diáspora africana, questões de gênero, especialmente de mulheres negras, religiões de matriz africana, a oralidade e também a maneira como as desigualdades buscaram, e ainda buscam, apagar essas vivências.
“Quando você diz que estuda literatura afro-brasileira, é também demonstrar que aqui, na língua portuguesa, nós vamos conseguir produzir materiais que vão reintroduzir de forma valorativa – de forma não negacionista – a essência de corpos potentes de pessoas não brancas”, explica Dejair Dionisio.

Dejair Dionisio é docente da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro), onde atua nos cursos de Letras. As pesquisas e produções de Dionisio abordam, principalmente, a literatura afro-brasileira, a cultura da população negra e a ancestralidade, como consta na matéria do C² ‘Quem são os pesquisadores do Brasil?’.
Dejair enfatiza que “a literatura afro-brasileira ainda é um devir, porque ela está na Universidade por força de lei 10.639 de 2003, que tornou obrigatório o ensino da história de África e dos valores civilizatórios, da diáspora1 africana, compreendendo o Brasil e compreendendo os demais países onde nós tivemos a escravidão negra, pensando nos 54 países africanos”.
Embora exista desde o período colonial, com nomes como Luís Gama e Maria Firmina dos Reis, a literatura afro-brasileira passou a ganhar maior reconhecimento somente na segunda metade do século XX. Autores como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Abdias Nascimento integram esse novo momento da literatura.
O que a língua representa para um povo
A língua portuguesa é falada oficialmente em nove países, que formam a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ou CPLP. Desses, além do Brasil e Portugal, estão: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Guiné Equatorial. O português também é falado em outras regiões autônomas, como é o caso de Macau, na China.

Com mais de 260 milhões de falantes, a língua portuguesa aparece entre as 10 línguas mais faladas no mundo. Desse número, a parcela mais expressiva está no Brasil: são mais de 210 milhões somente em território nacional.
Embora os números representem a potência de uma língua como o português, eles também escancaram uma violência: dos nove países falantes, oito deles falam a língua por força da invasão e colonização de terras, imposição da língua falada em Portugal e apagamento de inúmeras línguas nativas.
O projeto de dominação europeu se configurou em diferentes aspectos: territorialmente, culturalmente, religiosamente e economicamente. Isso escancara, entre outras questões, um silenciamento: das línguas nativas, dos povos originários, da população negra, de culturas e modos de vida.
O mês de maio, nesse sentido, é marcado por duas datas: o Dia Mundial da Literatura Brasileira (1.º de maio) e o Dia Mundial da Língua Portuguesa (5 de maio). A celebração dessas datas não deve, entretanto, vir senão carregada de reflexão.
“Tudo que você tem um dia é uma tentativa de manutenção de uma ideia original, uma tentativa de manter a ideia de pureza. O que é um complicador, porque a ideia de pureza representa o apagamento do outro. Portanto, quando falamos de pureza, nós estamos falando de apagamentos, de violências, de estupro, de invasão de terra, e de aniquilamento de povos”, reforça o professor Dejair.

Quando pensamos no Brasil, temos hoje somente em torno de 20% das línguas nativas que eram faladas antes de 1500. De acordo com o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente são 274 línguas indígenas no país e estima-se que existiam em torno de 1.175 antes da colonização. Entretanto, mesmo com esse número ainda existente de línguas, nenhuma delas é considerada oficial ao lado do português.
O professor de Letras da Unicentro ainda comenta que “a maneira como a gente se expressa e se comunica, é a maneira como a gente atribui valor no mundo para determinadas coisas…”, o que se entrelaça à forma como a história do Brasil foi e ainda vem sendo marcada por ausência de símbolos verdadeiramente nacionais e por narrativas emprestadas.
Escrever uma nova história (possível)
“O Brasil fez muitos empréstimos: da língua, da literatura… Mas a ideia é que nós tomemos o empréstimo e usemos da maneira que convier […] E a literatura vem para falar de uma realidade que é desconhecida por muitas pessoas. É a realidade do dia a dia, de uma população negra e dos povos originários”, justifica.
Pensar a língua portuguesa, a literatura brasileira e, sobretudo, a literatura afro-brasileira é pensar como recontar a narrativa a partir de outros pontos de vista. É, de certa maneira, realizar uma denúncia e exigir um lugar de direito.
Ler e impulsionar livros escritos por autores negros e indígenas simboliza, portanto, também uma reescrita da história. é um uso da arte, precisamente a literatura, com o poder da língua para escrever um novo caminho.
Repensar os símbolos nacionais e a história do país também significa construir uma identidade nacional que seja forte e representativa do povo que vive aqui. Além disso, é construir uma identidade que não reforce ou celebre as violências, mas que retome o que é de direito para que seja possível construir um futuro e um Brasil.
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Texto: Camila Lozeckyi
Revisão de texto: Silvia Calciolari
Arte: Camila Lozeckyi
Supervisão de arte: Lucas Higashi
Edição Digital: Guilherme Nascimento
Glossário
- Diáspora: deslocamento forçado de um povo para fora de seu território de origem, mantendo laços culturais, identitários e históricos com sua terra ancestral. ↩︎
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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