Espécies invasoras no litoral: ameaça ou negócio?

A imagem apresenta uma ilustração artística do litoral do Paraná, com o mar e grandes mexilhões em destaque, simbolizando espécies invasoras. As cores em tons de verde e azul transmitem a ideia de natureza e mar, enquanto os mexilhões remetem ao impacto ambiental. A arte é assinada por Lucas Higashi para o projeto Conexão Ciência.
Com o apoio das comunidades tradicionais, pesquisadores da Unespar coletam, analisam e monitoram a presença da fauna exótica no Paraná

compartilhe

No começo da década de 1960, o filósofo e teórico da comunicação canadense, Herbert Marshall McLuhan, entra para a história ao vislumbrar a internet como um fenômeno tecnológico que iria conectar a todos, independente de onde se estivesse, e promover uma profunda transformação cultural e social. 

Trinta anos antes da revolução provocada pelo computador e as telecomunicações, McLuhan cunhou a expressão ‘aldeia global’ no livro “A Galáxia de Gutenberg”, sua segunda obra, ao propor que estaríamos de saída da era escrita para a dimensão oral da comunicação eletrônica. 

Para dar a dimensão desse fenômeno, o teórico se vale de duas palavras aparentemente antagônicas, aldeia, que significa pequena vila, e global, aquilo que diz respeito ao planeta, para designar o que ele vislumbrava estar por vir. A sociedade do futuro de McLuhan seria mais ou menos como o título do ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2023: “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”.

Ou seja, estamos conectados pelas tecnologias e inovações na comunicação, a todo tempo e lugar, influenciando e sendo influenciados pelas informações que nos chegam em volumes monumentais a cada segundo, o que hoje chamamos de metaverso. 

Bioinvasão: ciclo sem fim?!

Mas, afinal, será que somente os humanos estariam sujeitos aos efeitos dessa revolução antevista por McLuhan, que transforma radicalmente nossa forma de se comunicar, os ambientes e, no extremo, em como viver no planeta? 

Nos valemos da alegoria de uma ‘aldeia global’ para ‘navegar’ no mundo das coisas reais e chegarmos à problemática que esta matéria do Conexão Ciência, o C², traz nesta semana. E, saibam, a palavra navegar não é aleatória. 

Para além dos satélites e cabos submarinos que sustentam a comunicação ‘galáctica’, como diria nosso teórico, os países começam a se deparar com um fenômeno que guarda semelhanças com o caos originado pela internet na comunicação: litorais de vários países estão sendo severamente impactados pela presença de espécies invasoras em suas regiões costeiras, principalmente onde há intensa atividade portuária e grande movimentação de navios cargueiros e de passageiros.

É o que os pesquisadores definem como bioinvasão, ou seja, espécies não nativas estão ocupando novos ambientes e causando grandes, e ainda não mapeados, impactos. Elas competem com a fauna local, provocam desequilíbrios ecológicos, além de trazer problemas sociais e econômicos.

E a explicação para essa proliferação de espécies exóticas é quase singela, para não dizer óbvia: todos os navios que se dirigem ao mar aberto, antes de partir, precisam encher compartimentos internos com a chamada ‘água de lastro’, que dá estabilidade às embarcações, bem como capacidade de manobrar. Outra função para essa água é que o uso constante de combustível, quando em navegação, causa perda de peso. Esta perda pode ser neutralizada pelos tanques de lastro. 

O problema é que quando a água de lastro é retirada do mar no local de origem, significa que organismos microscópicos daquele ecossistema também vão parar no tanque. Por sua vez, ao ser descarregada no desembarque, a água armazenada no outro lado do planeta, introduz espécies exóticas que viajaram no compartimento, se transformando num dos grandes problemas ambientais da nossa era. 

E não se pode esquecer que para retornar ao país de origem, os navios precisam retirar a água do local em que estão ancorados, iniciando um novo ciclo para uma nova potencial bioinvasão.

“Maré de Mudanças”

Ora, sabemos que as rotas marítimas para o comércio mundial não são novidades neste milênio, e nem nos anteriores. E que para além de trocas comerciais, o transporte marítimo também é responsável por intercâmbios que provocam efeitos socioeconômicos e ambientais. Só que agora, as dimensões dos impactos causados aos ecossistemas costeiros parecem ganhar uma dimensão catastrófica, muito em função das informações que circulam sobre os prejuízos causados pelas espécies invasoras no mundo.

No Paraná, mesmo com um litoral de aproximadamente 100 quilômetros, ou apesar deste tamanho, o problema já se faz presente e preocupa as comunidades tradicionais do litoral, bem como cientistas e gestores públicos. 

Através do Projeto “Maré de Mudanças”, desenvolvido em conjunto nos laboratórios de Biologia Marinha (Labmar) e de Ecologia e Conservação (Labec), vinculados à Universidade Estadual do Paraná (Unespar), do campus de Paranaguá, entre outros parceiros, começou em 2022 uma busca ativa por amostras das novas espécies detectadas no litoral do Paraná.

Antes, é importante destacar que o “Maré de Mudanças” nasce no contexto de diversos projetos anteriores, mas que foi consolidado a partir de recursos de uma compensação ambiental proveniente de multa aplicada à Petrobras em 2001, por vazamento de óleo diesel na Serra do Mar. Após 23 anos, foram lançados editais que direcionaram recursos para estudos em biodiversidade no litoral do Paraná. Assim, a bioinvasão na costa paranaense passou a ser objeto de um estudo mais robusto.  
“A cada ano, estamos verificando pelo menos uma nova espécie invasora na costa paranaense e já temos mapeado diversas ocorrências, selecionando as que achamos mais importantes. No momento, o Perna viridis está se alastrando dentro do Complexo Estuarino de Paranaguá, se adaptando muito bem às condições do nosso litoral”, explica o coordenador do Labmar, o ecólogo e pesquisador Pablo Damian Borges Guilherme.

  • Galeria com três imagens coloridas de amostras do mexilhão-verde, o Perna Viridis, encontrado no litoral do Paraná. O molusco tem a casa na cor marrom com detalhes em verde, de vários tamanhos. A imagem 1 é de exemplar único de 16 centímetros; as imagens 2 e 3 são vários tamanhos da espécie invasora distribuídas em caixas.
  • Galeria com três imagens coloridas de amostras do mexilhão-verde, o Perna Viridis, encontrado no litoral do Paraná. O molusco tem a casa na cor marrom com detalhes em verde, de vários tamanhos. A imagem 1 é de exemplar único de 16 centímetros; as imagens 2 e 3 são vários tamanhos da espécie invasora distribuídas em caixas.
  • Galeria com três imagens coloridas de amostras do mexilhão-verde, o Perna Viridis, encontrado no litoral do Paraná. O molusco tem a casa na cor marrom com detalhes em verde, de vários tamanhos. A imagem 1 é de exemplar único de 16 centímetros; as imagens 2 e 3 são vários tamanhos da espécie invasora distribuídas em caixas.

O mexilhão-verde (Perna viridis), um molusco bivalve nativo do Indo-Pacífico, tem sido identificado como um invasor de alto risco em diversas regiões do mundo. No Brasil, seu primeiro registro ocorreu no Rio de Janeiro em 2019, e, desde então, sua distribuição tem se expandido rapidamente.

Segundo o pesquisador, a espécie foi detectada no Paraná em 2022 em estruturas artificiais do Porto de Paranaguá e, em 2023, em rochas naturais. Para entender o impacto dessa invasão e compará-la com populações nativas, é essencial conhecer seus parâmetros populacionais, bem como se oferece riscos para a biodiversidade marinha e às comunidades, ou se, após as análises, poderá ser comercializado e consumido.

“Nosso projeto busca estimar o tamanho da população desse molusco no litoral paranaense e se há contaminação por metais pesados, contribuir para estratégias de manejo e conservação, além de atender um apelo dos pescadores que estão preocupados com possíveis prejuízos para suas atividades na baía”, afirma Guilherme.

🎙️ O pesquisador Pablo Guilherme, do Labmar/Unespar, relembra o começo do interesse pela ciência e como o ambiente em que cresceu o levou para a Ecologia e o estudo dos ambientes costeiros.

Além do Perna viridis, outras espécies já foram catalogadas e estão sendo monitoradas com a ajuda das comunidades tradicionais, que vivem da pesca e abastecem o comércio de várias localidades do Paraná. “Eles (os pescadores) falam pra gente abertamente com o que estão preocupados. Há um siri invasor (Charybdis hellerii) que impacta diretamente na pesca do siri nativo, além de uma outra ostra (Saccostrea cucullata), chamada ‘ostra capuz’, que vem prejudicando diretamente a coleta de ostras”, enfatiza.

Pesquisadores e bolsistas envolvidos no projeto têm realizado coletas de amostras das espécies em rochas e até em infraestruturas artificiais, como trapiches de concreto e piers. Já se sabe que estas estruturas introduzidas no ambiente beneficiam as invasoras, até porque outras pesquisas na Unespar de Paranaguá já confirmaram esta hipótese. Assim, a análise dos dados e material coletados deverão apontar prováveis diferenças no desenvolvimento. 

 A imagem colorida em tons de azul, com desenhos em preto, traz o título - Algumas espécies invasoras presentes no litoral do Paraná; Perna Viridis - ‘Mexilhão-verde’ é um molusco bivalve nativo do Indo-Pacífico; Charybdis hellerii - Siri que agora vive no Complexo Estuarino da Baía de Paranaguá; Saccostrea cucullata -‘Ostra de capuz’, que é facilmente achado no litoral do Paraná; Nassarius foveolatus - Caramujo nativo do Pacífico, foi encontrado pela primeira vez no Brasil na área portuária de Paranaguá; Microcosmus exaperatus - Tipo de ascídia (maria-mijona) comum em regiões portuárias, também invasora; a fonte é o Labmar/Unespar e Labec/Unespar.

Ciência Cidadã

Um dos aspectos que chama atenção na dinâmica do Projeto “Maré de Mudanças” é a demanda vir da comunidade, o que mobilizou pesquisadores, recursos e saberes para encontrar soluções para um problema que, diante do que já se verificou, veio para ficar. Na academia, chamamos de Ciência Cidadã esse movimento em que há a consciência de que o avanço da ciência depende também da sociedade, e versa. 

“Tem sido muito importante a troca de informações com os pescadores, com eles participando da coleta de dados e dos registros, para poder mapear a presença das espécies não nativas. Assim, nos ajudam a entender que impactos eles estão vendo no ambiente, que nós não teríamos vivência nem condições de supor”, afirma Rafael Metri, pesquisador e coordenador do Labec/Unespar de Paranaguá, também participante do “Maré de Mudanças” desde o início.

Professor Adjunto em Ciências Biológicas e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ambientes Litorâneos e Insulares (PALI) da Unespar, Metri reforça essa interação com os pescadores, que tem ajudado, inclusive, na localização, monitoramento das populações exóticas e os impactos na biodiversidade marinha.

“A coleta das ostras nativas já está bem prejudicada, porque com o aumento da população invasora, ocorre a substituição de uma espécie por outra. O pessoal que cultiva a ostra está preocupado, já que a exótica é mais ‘magra’, ou seja, tem menos ‘carne’, e ela não tem um sabor tão bom”, informa.

A imagem colorida mostra cinco pessoas à frente de uma barraca azul com banners sobre o Projeto “Maré de Mudanças”, numa espécie de feira realizada numa praça, com outras barracas e pessoas ao lado. À direita está uma mulher branca jovem, de cabelo comprido castanho, camiseta branca e calça preta, sorrindo; ao lado um jovem rapaz brfanco de cabelos curtos pretos, de colete e bermuda; depois vem outra jovem, mulher branca de cabelos pretos e óculos preto, também de colete e calça jeans; na sequência está o professor Pablo Guilherme, homem branco, cabelos curtos e barba volumosa grisalha, de bermuda e camiseta colorida usando um crachá; e, por último, à esquerda, o professor Rafael Metri, homem branco, de cabelos curtos pretos, barba grisalha, de camiseta verde escuro e bermuda cinza com listras pretas.
Os pesquisadores Rafael Metri (à esquerda) e Pablo Damian Borges Guilherme, ao lado de bolsistas Alice Gomes Cordeiro, Guilherme Mischur Nascimento e Samylli Rizzi de Lima, do Projeto “Maré de Mudanças” da Unespar, campus Paranaguá (Foto/Labmar)

Neste contexto de participação mútua, o grupo de pesquisa disponibiliza um formulário online nos aplicativos de mensagens, com imagens das espécies invasoras, para que possam encaminhar informações, localização e imagens do que for achado nos diversos cantos do litoral paranaense.

Metri nos conta que até localidades distantes do Complexo Portuário de Paranaguá já registram a presença de espécies invasoras, como a região de Guaraqueçaba, onde o grupo esteve recentemente para uma ação de informação sobre a pesquisa e a problemática na bioinvasão.

“As comunidades tradicionais e indígenas já estão em polvorosa com a ocorrência de várias espécies exóticas nos seus territórios, o que de certa forma a gente já tinha relatos. Após apresentar o projeto, falar e mostrar imagens do mexilhão-verde, da ostra de capuz, do siri, eles nos confirmaram a presença destas espécies”, relata. 

🎙️ Rafael Metri é pesquisador do Labec/Unespar e nos conta o início dos projetos desenvolvidos a partir da problemática da bioinvasão no litoral do Paraná.

A partir da autorização do Fórum de Comunidades Tradicionais de Guaraqueçaba, o objetivo dos pesquisadores agora é coletar material no local e conscientizar a população da região. “A informação, realmente, é a melhor prevenção para evitar que as pessoas corram riscos ao consumir algo desconhecido”, adianta Metri.

O Projeto “Maré de Mudanças” deve encerrar esta etapa de análise até o final do ano, quando deverá ser lançado um relatório detalhado com informações técnicas destinado aos gestores ambientais e responsáveis pelas Unidades de Conservação. A pesquisa ganhou um reforço de peso com a aquisição de um microscópio estereoscópico Ivesta 3, da Leica Microsystems, através da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI), no valor de R$ 107 mil, que deverá refletir no resultado final. 

Além do relatório técnico, a proposta é elaborar ainda uma cartilha ou atlas, com imagens em alta definição das espécies exóticas mais importantes para a preservação da biodiversidade marinha, contendo orientações às comunidades para cada fase da invasão, monitoramento, controle e prevenção.

As perspectivas do projeto continuar em 2026 são reais, já que deverá ser inserido no Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação – NAPI 2030, articulado com fomento da Fundação Araucária e apoio da SETI. 

Afinal, assim como temos que combater diariamente as fakes news que proliferam na ‘aldeia global’, também precisamos estar atentos e fortes para as espécies invasoras no nosso litoral.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Silvia Calciolari
Revisão de texto: Milena Massako Ito
Edição de áudio: Gustav Bartmann
Arte: Lucas Higashi e Eliesa Nakano
Supervisão de arte: Lucas Higashi
Edição Digital: Guilherme Nascimento

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Gostou do nosso conteúdo? Nos siga nas nossas redes sociais: Instagram, Facebook e YouTube.

Edição desta semana

Artigos em alta

Descubra o mundo ao seu redor com o C²

Conheça quem somos e nossa rede de parceiros