Etarismo: a mídia e suas representações

Formatos midiáticos atuais permitem que pessoas idosas sejam protagonistas de suas próprias narrativas

Pessoas idosas saltando de paraquedas, correndo maratonas ou, até mesmo, se formando na faculdade. Esses são alguns acontecimentos que, quando ocorrem, ganham grande destaque em portais de notícias. Aposto que se eu te perguntar como você imagina pessoas com mais de 60 anos que são ativas, as primeiras imagens que virão a sua mente são exatamente delas em funções semelhantes com as citadas na primeira linha deste texto. 

Por qual razão nós, quando pensamos em pessoas idosas ativas, não lembramos de casos como o da Dona Irene, minha avó materna, que, agora, com 82 anos e, tendo em seu histórico uma fratura no joelho e outra no fêmur, continua realizando tarefas domésticas diárias, como limpar a casa, cozinhar, lavar a roupa e regar as plantas? Pois é. Não deveríamos considerar ativos somente as pessoas idosas que estão realizando feitos que parecem ser extraordinários para sua idade.

Porém, isso tem muito a ver com tudo o que vemos desse público por aí. Você já parou para pensar em como as mídias e outros meios moldam nossa visão do que é uma pessoa idosa? A professora Daniela Polla, já! Formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ela saiu do Rio Grande do Sul e veio para Maringá realizar o mestrado em letras. Em 2011, já na Universidade Estadual de Maringá (UEM), conheceu o seu orientador, o professor Pedro Navarro, do Programa de Pós-Graduação em Letras, e, partindo do tema que era afinidade dele na época, começou a pesquisar a forma como a pessoa idosa aparece nos discursos.

Professora Daniela Polla (Foto/Arquivo Pessoal)

Os discursos podem ser da mídia, da ciência e até da forma que o meio jurídico fala da pessoa idosa. Porém, no mestrado, a professora selecionou a mídia e foi analisando como ela fazia a construção e a objetificação de ‘idoso’. “É como se os discursos, todos esses citados, construíssem para o público a forma que eles devem entender a pessoa idosa. Isso foi lá em 2013. Naquela época, a gente ainda não falava pessoa idosa, a gente ainda usava idoso”, conta Daniela Polla.

No período da análise, entre 2011 e 2013, três caminhos discursivos se destacaram durante a pesquisa da dissertação. O primeiro, era a pessoa idosa que começava a aparecer dominando as tecnologias. Em segundo, aqueles que procuram manter a beleza. E o terceiro que, segundo a professora, é o que engloba a maior parte dos discursos, são aqueles citados no início do texto, os chamados ‘idosos ativos’. 

“Esses discursos vão se orientando no sentido de uma experiência, das pessoas que têm mais de 60 anos, em questão de atividade. É uma pessoa idosa que viaja, faz escalada, publica livros e realiza outros feitos. Em comparação, por exemplo, aquilo que a gente chamou, na falta de um termo melhor, de idoso tradicional, que poderíamos pensar, talvez, na Dona Benta, do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, que fica sentada, cuidando dos netos, fazendo crochê”, explica a docente.

Dentro desse contexto, Daniela Polla traz uma observação que é super importante para pensarmos: não existe apenas uma forma de ser uma pessoa idosa. O Brasil é um país imenso e muito diverso, que permite às pessoas viverem em contextos muito distantes. Por exemplo, uma pessoa de 60 anos, que passou a vida inteira morando no ambiente urbano, tendo um modo de trabalho mais intelectual e não de força física, vai, por uma questão de forma de vida, existir na terceira idade de maneira diferente de uma pessoa com a mesma idade, mas que vive no meio rural, com pouco ou sem acesso à informação, às vezes, não foi alfabetizada ou é alfabeta funcional, enfim, que não teve acesso a uma série de facilidades que essa pessoa do espaço urbano teve.

“Os estilos de vida são fatores que afetam e que pesam sobre a existência e corpo dessa pessoa idosa, e que, às vezes, a gente não percebe essa dispersão das formas de ser, mas, precisamos olhar para isso. Só porque a legislação coloca o marco de 60 anos para definir um grupo de pessoas, não quer dizer que todo mundo que passou dessa idade existe da mesma forma. E isso, por vezes, a mídia falha em mostrar”, afirma a professora.

O tema rendeu muito, tanto que, terminando o mestrado, Daniela Polla entrou no doutorado ainda pesquisando o tema, mas sob uma abordagem diferente. Enquanto no mestrado ela apenas olhou para aquilo que os discursos diziam sobre a pessoa idosa, na tese de doutorado resolveu expandir o assunto e entrevistar essas pessoas. Foi uma pesquisa de opinião para saber como elas se entendiam nesses grandes temas que apareceram no corpus da dissertação.

A tese de doutorado foi defendida em 2018 e, naquele momento, o discurso que circulava na sociedade era o da velhice saudável, muito por conta do tema que estava em destaque na área científica, em relação à pessoa idosa. Na época, se falava muito do declínio das capacidades físicas com o avançar da idade. “A maior parte [dos discursos] é sobre questões que podemos agrupar na área da saúde, como ter uma alimentação mais saudável e manter o corpo ativo, para você postergar essa perda de capacidade. Tanto a ciência, como o discurso da mídia e dos próprios idosos, vão se orientar nesse sentido. Isso é uma afirmação de Michel Foucault, um teórico que eu uso no trabalho, é uma ideia de não levar a vida necessariamente o mais longe possível, mas, que ela seja útil, então, saudável”, conta a professora. 

Na parte de entrevistas do trabalho, Daniela selecionou instituições de Maringá que atendem pessoas idosas. Falando com eles, a professora percebeu como esses discursos voltam, pois, os entrevistados falaram sobre alimentação saudável, prática de atividades físicas e até sobre beleza, com algumas citando a preocupação em esconder rugas e os cabelos grisalhos. Ou seja, os discursos, além de contribuírem na construção da visão que os outros têm das pessoas idosas, também moldam a percepção que esse grupo tem de si mesmo. 

Etarismo 

Atualmente, a professora tem desenvolvido análises do discurso relacionadas ao etarismo, que refere-se a formas de discriminação e preconceito direcionadas às pessoas com base na idade que elas possuem. “Lembrando que não é, necessariamente, apenas com a pessoa idosa. O etarismo é um preconceito com relação a qualquer idade, mas, em relação a essa faixa etária, ele é um pouco mais marcado”, destaca Daniela.

As discussões sobre etarismo são recentes. Só para termos uma ideia, em 2022, foi sancionado o Projeto de Lei nº 3.646, de 2019, que substituiu, em toda a legislação, as expressões ‘idoso’ e ‘idosos’ pelas expressões ‘pessoa idosa’ e ‘pessoas idosas’, inclusive o nome do Estatuto do Idoso passou a ser Estatuto da Pessoa Idosa. Buscando uma perspectiva inclusiva, a justificativa para a mudança é que o termo ‘pessoa’ lembra a necessidade de combate à desumanização do envelhecimento. Segundo o Governo Brasileiro, essa terminologia reflete a luta dessas pessoas pelo direito à dignidade e à autonomia.

Segundo o IBGE, o índice de natalidade do Brasil diminuiu, enquanto o número de pessoas com 60 anos ou mais passou de 11,3% para 14,7%. Com o aumento dessa faixa etária no país, é preciso olhar com mais atenção para as necessidades desse público, não só pensando em políticas públicas, como também, melhores formas de tratamento e representação dessa população.

Como visto anteriormente, a mídia desempenha um papel notório nas representações do que é ser uma pessoa idosa na atualidade. Isso torna extremamente importante a inserção de pessoas com 60 anos ou mais em novelas, notícias, comerciais e outros meios midiáticos. Porém, não é apenas colocar esses indivíduos nesses cenários, é preciso pensar nos diferentes modos que existem de ser uma pessoa idosa e, assim, não propagar ideias equivocadas sobre esse grupo. “Mostrar essa diversidade seria um caminho para, até mesmo, ter menos etarismo na sociedade”, destaca Daniela Polla.

“Outra questão, também em relação à mídia, é a da abordagem. Por exemplo, 1º de outubro temos o Dia Internacional da Pessoa Idosa, como a gente vai abordar essa pauta? Utilizando o mesmo assunto, eu posso trazer tanto do ponto de vista de políticas públicas, do que pode ser feito, o que os idosos estão fazendo, ou, eu posso abordar o lado, muitas vezes negativo, que é o do preconceito. Então, como a mídia constrói as notícias e trata esses conteúdos que chegam para o público, também é algo fundamental”, explica a professora. 

Estudando o tema desde 2011, a docente tem notado um crescimento da representatividade das pessoas idosas nos meios midiáticos. O aumento de espaço que esse público vem conquistando para falar de si mesmo, não acontece apenas nos formatos de mídias tradicionais. Com o fácil acesso às tecnologias atuais, as pessoas idosas também têm tomado frente e criado seus perfis em redes sociais, compartilhando suas vivências e, ao mesmo tempo, contestando o etarismo que circula na sociedade. Alguns exemplos são o canal do YouTube “Avós da Razão” e a página no Instagram “Quiz dos Idosos”.

“Esse movimento que tem acontecido nas redes sociais é importante, pois, uma coisa é a pessoa idosa falando sobre si mesmo, e outra é a mídia falando sobre ela. Tomando frente, ela pode observar aquilo que está sendo dito sobre ela, a partir de sua própria perspectiva”, conclui a professora. Colocar os idosos como figuras centrais de sua própria história é o que vem fazendo a Universidade Estadual de Londrina (UEL). A seguir, você vai conhecer o projeto Entretons e seus desdobramentos.

Grupo Tecer Idades – Entretons

“Eu perguntaria: Você está no fim da linha? Você chegou em um ponto agora que você pode viver realmente. Já fez tudo que precisava ter feito”. Essa frase é da Dona Lia Silvany, uma senhora com 80 anos, mãe de 3 filhos, artista plástica e pioneira no grupo “Tecer Idades”, uma das frentes do projeto “Entretons”, atualmente presente na Rádio UEL FM. O projeto está dentro do programa Universidade Aberta à Terceira Idade da UEL (Unati – UEL).

Dona Lia Silvany, integrante do grupo “Tecer Idades” (Foto/Arquivo Pessoal)

O projeto começou em 2014 como uma ideia para ser um programa para a TV UEL, produzido e pensado por e para idosos. A iniciativa foi do professor Reginaldo Moreira, graduado em jornalismo e mestre em Gerontologia (área que busca compreender as questões envolvendo o envelhecimento humano). Segundo o professor, a ideia é que o programa pertença à comunidade, desde a produção até o direcionamento do público na lógica de comunicação comunitária.

Segundo o levantamento mais recente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), a população idosa no Brasil é de 10,5%, Já em 2050, estima-se que 30% da população brasileira terá mais de 60 anos, de acordo com previsão do Ministério da Saúde.

Nos seus primeiros anos o grupo ‘Tecer idades’ produziu alguns programas para TV UEL, que ainda podem ser encontrados no YouTube, no canal @teceridades2904. Por volta de 2018, o grupo de idosos migrou do formato audiovisual para o rádio, onde estão presentes até hoje em um programa mensal na UEL FM. Com temáticas variadas, esse grupo aborda assuntos de interesse dos idosos, sejam relacionados diretamente a eles, ou com um olhar específico para a terceira idade.

Na montagem de cada episódio, como relatou o senhor Luiz Gonzaga, 72 anos, também membro pioneiro do projeto, cada um fica responsável por uma função e por um dos quadros do programa. Um desses quadros, por exemplo, é o ‘Cultura Viva’. Nele, o repórter conta a história de vida de uma pessoa, descrevendo sua trajetória e seus momentos marcantes. O senhor Luiz descreveu uma das histórias narradas no quadro: “Entrevistei o sambista Joaquim Braga. Ele fundou a escola de samba ‘Quilombo dos Palmares’, quando ainda os cinco conjuntos estavam se formando. Então, são histórias interessantes que fazem parte da história da cidade”. 

Luiz Gonzaga, integrante do grupo “Tecer Idades” (Foto/Arquivo Pessoal)

O efeito que o Programa acarreta na vida dos idosos é notável. “É o evento da semana, afinal de contas, tem um programa na rádio universitária. Quem que tem programa na rádio universitária? Isso muda completamente a autoestima e o poder da comunicação, que às vezes na família, o idoso não tenha. No rádio ele é o dono do programa”, explicou o professor Reginaldo. Há também a questão de conhecimento próprio, já que o desenvolvimento de cada episódio é uma oportunidade de tirar dúvidas, de aprender um pouco mais. “Todos os programas são temas relacionados ao idoso, ou que tenha o ponto de vista dele. Por exemplo, o programa que eles quiseram falar de autonomia, da diferença entre autonomia e dependência, então, vão falar de autonomia.”

Porém, o impacto positivo que o programa causa poderia ser ainda maior se não fosse pela pouca procura de pessoas mais velhas com baixa renda. “Às vezes, a pessoa não se sente nem autorizada a vir para a universidade. E, quando vem, não permanece. Talvez, seja pela falta de locomoção. Mas, pode ser uma falha da própria universidade em não ofertar aquilo que é do interesse desse idoso”, lamenta o professor. Além da questão de classe social, o professor também expressou o seu desejo de ter no projeto os idosos LGBTQIA +: “Eles existem, mas eles não chegam no projeto”.  

Para a dona Lia, citada anteriormente no texto, participar do projeto foi uma oportunidade de mostrar para outros idosos que agora é a hora de viver, de fazer aquilo que se tem vontade. “O melhor presente que nós temos é estarmos vivos. Eu me vejo nesse contexto de mostrar para as pessoas que a gente tem que procurar outras coisas, sair desse padrão, ter coragem”, afirma ela.

Glossário:

Corpus: é o conjunto de documentos e informações analisado pelo cientista durante sua pesquisa.

Michel Foucault: filósofo, professor, psicólogo e escritor francês, que produziu várias obras que refletem o poder e o saber.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Lucas Worobel e Milena Massako Ito
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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