Etnomatemática: educação para todos

A imagem mostra quatro crianças sorrindo em frente a um quadro. Nele, há uma representação de bandejas de ovos somadas, totalizando "2 dúzias", sugerindo um conceito matemático. A arte é colorida e educativa, com estilo ilustrativo. No canto inferior direito, há os créditos: “© Conexão Ciência | Arte: Mariana Muneratti”. A cena remete a um ambiente escolar de aprendizado colaborativo.
Em uma viagem pelos números que passa pela cultura, o C² te leva a desvendar a importância de olhar o conteúdo dos livros no cotidiano

compartilhe

Existem diversas formas de ser criança e adolescente no mundo. Para muitos, o processo de se autoconhecer inicia com o entendimento da sua identidade, etnia, raça ou origem. Essa fase é envolta por um turbilhão de sentimentos e sensações que ultrapassam o espaço familiar chegando, por exemplo, ao ambiente escolar.

No meu caso, esse movimento de me entender como uma menina negra foi dolorido. Por fazer parte de uma família branca, o sentimento era de estar deslocada e, quando chegava na escola, não era diferente, já que nas disciplinas oferecidas não havia a representação de pessoas parecidas comigo.

Mesmo sendo estudiosa e dedicada a entender os conteúdos de Matemática, não havia meninas iguais a mim nos exemplos dos livros ou nas atividades entregues pela professora. Isso, em um contexto em que já estava sendo implementada a lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos da educação básica em todas as escolas, tanto públicas quanto privadas. 

Mas qual é a relação da lei 10.639 com a Matemática?

Essa lei é um marco quando o assunto é a educação antirracista, porque reforça a importância de abordar questões que compreendam crianças não brancas desde o ensino fundamental, uma vez que a história dessa população faz parte da história do Brasil. Estudar as relações étnico-raciais nas escolas, permite que os jovens conheçam a sua identidade, valorizem as suas origens e ampliem a visão que têm na sociedade.

Imagem colorida, que tem um fundo preto que imita uma lousa escolar, com bordas marrons. No centro está escrito, em destaque, “Lei nº 10.639/2003” em letras grandes e de cor amarela. Ao redor desse título central, há três informações organizadas com setas amarelas que criam uma sensação de movimento: No canto superior direito, está escrito “O que faz”, seguido de “Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)”. No canto inferior esquerdo, está escrito “Quem se aplica”, seguido de “A todas as escolas públicas e privadas, do ensino fundamental ao médio”. No canto inferior direito, está escrito “O que inclui”, seguido de “Ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”.

Esse ensino não se limita às disciplinas de História e Sociologia, mas abarca a Matemática e todas as áreas de conhecimento. A estudante Emily Camily Silva Damasceno do Carmo nos conta a importância da lei 10.639. Ela é cotista racial-social bacharelanda do curso de Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiros (NEIAB-UEM). Atualmente, desenvolve um projeto de pesquisa sobre a implementação da política de cotas raciais na Universidade, intitulado “Os primeiros cotistas raciais na UEM: transformação, vivências e resistências”.

Imagem colorida de uma mulher negra olhando para a câmera, ela tem um grande cabelo crespo na cor castanho e está com uma roupa social.
Entender como a lei 10.639/2003 funciona é essencial para pensar a Etnomatemática. A Emily Damasceno do Carmo nos contou mais sobre essa lei tão importante (Foto/Arquivo pessoal)

“A gente enfrenta muita resistência quando se trata de reconhecer os saberes afro-brasileiros como legítimos. Por isso, trazer esse debate para a sala de aula é essencial, não só na universidade, mas também no ensino básico. Isso mostra que a população negra também produz conhecimento, que também faz ciência e que a cultura é válida assim como qualquer outra”, relata Emily.

Quando ignoramos esses saberes, comprometemos a nossa capacidade de compreender e solucionar questões que afetam grupos específicos, já que essas realidades acabam sendo, por muitas vezes, desconsideradas. Isso acontece com frequência no ensino da Matemática nas escolas, disciplina que tem possibilidade de se desenvolver a partir de exemplos que se relacionam com a realidade das crianças. Essa iniciativa já existe e chama-se Etnomatemática! Quem nos traz mais detalhes é o outro autor desta matéria, o João. Confira…

A Etnomatemática

Caro leitor, eu tenho certeza de que eu não sou o único que tem traumas com os números. Atrás de muitas telas há grandes chances de ter alguém que diga, “eu odeio Matemática” e tenha arrepios ao ver um conglomerado de números reunidos por símbolos. Esse não é um sentimento que se restringe a mim.

Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), uma pesquisa feita periodicamente em 65 países nos dão indicações disso. A edição do PISA do primeiro trimestre de 2023, mostrou que pelo menos um a cada três estudantes têm medo do nível de dificuldade das aulas de Matemática. Ainda de acordo com a pesquisa, os países com maiores níveis de ansiedade matemática são também aqueles com pior desempenho. Esse é o caso do Brasil, em que apenas 20% dos alunos que completam o 9º ano do Ensino Fundamental em escolas públicas chegam a um nível adequado de aprendizagem em Matemática. 

Ainda de acordo com as pesquisas, esse déficit na performance nacional em Matemática talvez seja o sintoma mais claro da deficiência estrutural na educação, com efeitos diretos na economia do país. Isso é o que mostra outro estudo, realizado pela Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Segundo a investigação, o Brasil deixa de ganhar, todo ano, dois pontos percentuais de Produto Interno Bruto (PIB) por conta da baixa qualidade da educação, mensurada por provas internacionais como o PISA.

Mas o que nós podemos fazer para mudar esse cenário? 

Esse sentimento de rejeição pela Matemática se expressava em mim porque não conseguia responder a uma simples pergunta: “como esse tanto de número pode fazer parte da minha vida?” Só agora eu consegui perceber que, realmente, o conteúdo não se encaixava à minha realidade. Isso se deu quando comecei a refletir sobre a Etnomatemática, pauta desta reportagem.

A Etnomatemática é uma abordagem pedagógica que reconhece a diversidade cultural e a relevância social da Matemática. O principal objetivo é apresentar uma perspectiva mais próxima do ensino desta disciplina, que vai além dos métodos tradicionais. 

Todo esse esforço resulta na promoção e compreensão da aplicação da Matemática em contextos culturais diversos valorizando a pluralidade cultural e promovendo a descentralização do conhecimento.

A Etnomatemática inclui o uso de atividades práticas, jogos, histórias e problematizações que refletem a diversidade cultural dos estudantes. Imagino eu, que, durante o processo de reconhecimento das unidades, dezenas e centenas, ainda no ensino básico, alguma professora apresentou a você o material dourado – pequenos blocos de madeira que auxiliam na compreensão de quantidades. Mas e se em uma região cafeeira, como no Norte Pioneiro do Paraná, esse recurso pedagógico for substituído por grãos de café?

Imagem colorida, tem um fundo verde-claro. No topo, em letras grandes e escuras, está o título “Como tirar do papel”. Abaixo do título, há um subtítulo que diz: “Integração do aluno ao ambiente escolar com exemplos familiares ao cotidiano”. Mais abaixo, está o texto “Substitua o material dourado por:”. À esquerda da imagem, há uma ilustração do material dourado (um conjunto de cubos, barras e uma placa quadriculada, usados normalmente para o ensino de matemática). À direita, uma seta preta curva aponta para duas ilustrações: Um monte de grãos de milho. Um saco aberto de onde saem grãos de café. Ao lado dessas ilustrações, está escrito: “Grãos de café e Grãos de milho”.

Para entender melhor sobre o assunto, o Conexão Ciência – C² conversou com a doutora e mestre em Ensino de Ciências e Educação Matemática, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e professora do Departamento de Matemática e Estatística da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Ana Lúcia Pereira

Imagem colorida de uma mulher branca olhando para o lado esquerdo, tem em seu rosto um sorriso pequeno com um batom vermelho, o seu cabelo é loiro com mechas escuras, está sentada em um sofá branco, em sua mão há um livro e um óculos.
O ensino da Etnomatemática abrange todos os tipos de crianças. A professora Ana Lúcia Pereira teve a oportunidade de ensinar Matemática para crianças do assentamento do MST (Foto/Arquivo pessoal)

Ana explica a etimologia do termo. “Como o próprio termo diz, etno reflete sobre a etnia, e Matemática, está relacionada à disciplina. Como ensinar a Matemática a partir da etnia; da origem; da vivência; do lugar e da cultura da pessoa”. 

E continua, “como é que eu posso ensinar Matemática para o meu aluno a partir do contexto da vivência e da etnia dele?  Então, por exemplo, se eu estou dando aula numa escola indígena,  num agrupamento, num assentamento do MST, como é que eu posso ensinar Matemática a partir do contexto em que esses alunos vivem?”, reflete Pereira. 

O legado de Ubiratan D’Ambrosio

No Brasil, é impossível falarmos sobre Etnomatemática sem tocar no nome do professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Ubiratan D’Ambrósio, que faleceu em maio de 2021, aos 88 anos. O brasileiro foi o primeiro a cunhar o termo.

Imagem colorida de um homem branco mais velho olhando para o canto esquerdo, ele tem sobrancelhas grisalha e cabelo castanho com luzes cinzas nas laterais, ele está vestido com roupas sociais.
O professor Ubiratan D’Ambrósio é referência quando falamos de Etnomatemática (Foto/Reprodução)

Na década de 70, em entrevista ao canal History of Science, com trechos republicados no Jornal da Unicamp, D’Ambrósio disse que começou a questionar a limitação da visão da ciência e da Matemática promovidas a partir de uma concepção eurocêntrica1. “Comecei a questionar quando percebi a riqueza de coisas que não são chamadas de Matemática ou de ciência, mas que têm na sua raiz a conceituação de uma Matemática e de uma ciência rigorosa e organizada, que era trabalhada pelos povos africanos para construir a sociedade deles”.

Anos depois, nos anos de 1985, o movimento em torno da Etnomatemática tornou-se um Grupo de Estudo Internacional. Na concepção inicial do autor, essa abordagem tratava de “diferentes formas de Matemática que são próprias de grupos culturais”.

Um π de desafios

Na Matemática, assim como a sequência de números e os valores de π são infinitos, os desafios para a implementação da Etnomatemática, também apontam para lá. É preciso rever as bases de ensino de toda uma cadeia de professores e profissionais que replicam ideias eurocêntricas já consolidadas e investir nessa área. 

Esperamos que você, caro leitor, tenha entendido o que é a Etnomatemática durante a leitura dessa matéria, que foi escrita por uma mulher negra apaixonada por matemática e por um estudante que aprendeu a importância dessa disciplina e como ela deve ser para todos. E que juntos, consigamos construir um futuro e um cotidiano que a Matemática não seja mais um pesadelo e sim um suspiro de inspiração valorizando nossas origens e ampliando a visão que temos na sociedade como povo.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Maysa Ribeiro Macedo e João Luiz Lazaretti da Silva
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Lucas Higashi
Edição Digital: Guilherme Nascimento

Glossário

  1. Eurocêntrica: é um adjetivo que descreve algo relacionado ou centrado na Europa e nos europeus, frequentemente em detrimento de outras culturas e regiões.  ↩︎

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Gostou do nosso conteúdo? Nos siga nas nossas redes sociais: Instagram, Facebook e YouTube.

Edição desta semana

Artigos em alta

Descubra o mundo ao seu redor com o C²

Conheça quem somos e nossa rede de parceiros